27.9.24

Já foram quantas voltas ao mundo? (Às vezes, os números não contam)

Royal Blood, “Figure It Out”, in https://www.youtube.com/watch?v=jhgVu2lsi_k

O velho vendia poemas, sentado no chão da rua pedonal. Escritos em cartões retangulares, a escrita desenhada a tinta azul, poemas espartanos, a crer na não exaustiva mancha que ocupava cada cartão antes de a tinta azul ter corrompido a sua alvura. O velho não teria o juízo inteiro, diriam os mais atentos, aqueles, e eram a maioria, que passavam com a pressa de quem tinha pressa, ou não a tendo fingia tê-la, só para fingir não reparar no homem mentecapto que vendia as poesias da sua lavra – ou só para fingirem, porque era a sua especialidade.

Ninguém parava para apreciar a poesia do velho. Preferiam correr para apanhar o comboio, ou parar na pastelaria para enganar o sono com um café, ou para à fome lançar um engodo com um lanche intermédio, ou fazer pose de turista e dirigir o olhar compenetrado para as fachadas das casas que apontam ao alto, ou olhar a ponte ao longe e com ela adivinhar o rio soporífero, ou apreciar os muitos e diferentes turistas que percorriam a rua pedonal, esses sim com um legítimo olhar atirado para a parte mais alta do edificado.

Ninguém quis saber da poesia do velho. Ou se o velho era um louco autêntico, ou apenas uma personagem excêntrica que não tinha vergonha de vestir uns andrajos e posar na rua concorrida. Ninguém quis fazer perguntas ao velho: onde nasceu, o que fez na vida, e o que desfez, se esteve preso e qual o crime que o condenou a suspender a liberdade, se o espalhafato era propositado ou ele não dava conta dos preparos, por onde andou na vida, se é um monogâmico territorial ou se foram muitas as terras que coincidiram com as suas demandas. 

Ninguém acabou por saber que o velho não é mentecapto. Ninguém quis experimentar a poesia espalhada numa manta por sua vez espalhada no chão ladrilhado da rua pedonal. Ninguém pôde atestar que era poesia a sério. Ninguém acabou por ouvir o velho protestar, em voz alta, que todas as demandas que nos fazem percorrer voltas ao mundo são insensatas (e fê-lo, lendo um poema resgatado ao chão). E que não devemos ser prisioneiros dos números, que a nosso favor não são testemunhas cabais. 

Ninguém parava para apreciar a poesia que era o velho sentado no chão a vender poesia da sua autoria. Quando o velho partiu em direção a lugar incerto, a sua poesia ficou tatuada no chão ladrilhado da rua turística.

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