30.9.24

Quem gosta de óleo de fígado de bacalhau?

Explosions in the Sky, “Ten Billion People”, in https://www.youtube.com/watch?v=7CqIe34ghgs

G20 vai discutir, em novembro, um imposto especial de 2% aos “super ricos”, as pessoas com uma riqueza superior a mil milhões de dólares. Para o(a) leitor(a) se situar no contexto, o G20 é o fórum internacional onde os países mais ricos se reúnem e que frequentemente é acusado, da esquerda para a extrema-esquerda, de ser insensível às desigualdades de riqueza e de estar a soldo dos interesses do “grande capital” e dos muito endinheirados. Quando o assunto foi agendado na Assembleia da República, por iniciativa do Livre, PS e PAN, todos os partidos situados à direita do PS manifestaram-se categoricamente contra.

Antes de prosseguir a análise, é imperativa uma declaração de interesses: sou liberal, não sou (nem de perto) abastado nem estou isento de IRS, e faz-me espécie a sanha anti-ricos e anti-empresas “pornograficamente” lucrativas que os partidos à esquerda do PS personificam. Diante desta recusa perentória dos partidos à direita aceitarem discutir o imposto sobre os muito endinheirados para começo de conversa, devo acrescentar às irritações pessoais a recusa sistemática das direitas em contemplarem a hipótese de os ricos desviarem um pequeno naco das suas fortunas em favor dos que mais precisam.

Em vez de serem advogados de defesa acríticos dos que nadam em privilégios materiais, talvez os partidos à direita ganhassem em prescindir de dogmatismos, deixando-os no regaço da extrema-esquerda. Pois um dogmatismo é sempre um dogmatismo, mesmo que venha disfarçado em diferentes pressupostos e que obedeça a bandeiras diferentes. 

O meu liberalismo não se encaixa em certas intransigências da IL: em vez de se agarrarem, quase por reflexo condicionado, à abjuração imediata de tudo que soe a (aumento de) impostos, sem refletirem sobre o que está em causa e das razões que explicam que até se justifica uma exceção aos seus princípios, a IL deve saber ler o tempo e a circunstância em que nos encontramos. Todos os partidos, de um lado ao outro, deviam estar menos presos aos dogmas e deviam perfilhar o pragmatismo. Afinal, aprende-se que a política foi inventada para resolver os problemas das pessoas. (A menos que o(a) leitor(a) subscreva a visão cínica de Groucho Marx: “a política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em todos os lados, diagnosticá-los incorretamente e aplicar as piores soluções”.)

Para ajudar a este lampejo de pragmatismo, que é uma necessidade para os partidos à direita, vem a calhar um shot de Filosofia. Ter a capacidade para nos colocarmos no lugar do outro é um cânone da Filosofia moral. Bem sei que para os apóstolos da política como a conhecemos, tão dependente da partidarite cega e das táticas que levam os partidos a esquecer para o que foram inventados, invocar aquele preceito filosófico pode soar a ingenuidade. 

Aceito: sou ingénuo. É desta ingenuidade que parto para justificar por que faz sentido, até para um liberal, apoiar a proposta de tributar excecionalmente os muito abastados. Uma pessoa que seja titular de uma grande fortuna aceita o exercício de substituição de lugar com alguém que seja carenciado e acaba a perguntar: se eu estivesse no lugar daquela pessoa, gostaria que um rico me ajudasse. Não estou a pensar numa troca bilateral, um deles fazendo pura filantropia em benefício do outra, que dela beneficia; estou a pensar nessa pessoa a aceitar que a redistribuição deve operar através do Estado, que cobra impostos e depois os distribui de acordo com um mapa de preferências que dá corpo às políticas públicas.

A recusa terminante de muita direita é contraproducente. Alimenta a tensão social, podendo, em situações-limite, ser o rastilho para atos de violência descontrolada de que ninguém sai a ganhar. Configura a insensibilidade social que trespassa muita direita, oferecendo um trunfo às esquerdas: elas é que defendem os desvalidos, elas é que se libertam daquela insensibilidade social, são elas que, à conta destes pergaminhos, constroem uma imagem pública decente; construindo esta linhagem, ufanas em delimitar as trincheiras que as separam “da direita”, montam-se na superioridade moral e depressa descaem para a arrogância, todavia tolerada por ser um instrumento da superioridade moral.

O imposto sobre os super-ricos é a oportunidade para “a direita” deixar de ser obstinada e, com essa obstinação, oferecer um tesouro valioso às esquerdas. Para mais, a mudança de atitude não poderia ser determinada por uma mera inflexão oportunista, como quem muda de opinião apenas para esvaziar os argumentos do adversário. Não: a mudança teria de ser genuína; essas direitas teriam de reconhecer a justeza em impor aos muito abastados um tributo excecional por terem uma fortuna excecional. Se não for uma mudança genuína, é preferível que estas direitas se mantenham agarradas aos seus atávicos padrões. Para fingimentos e táticas que sopesam oportunismos, levamos com a lamentável encenação a propósito da negociação do orçamento de Estado para 2025.

Antecipando algumas críticas que me possam sere feitas, direi que não guinei à esquerda, contrariando os que, da direita, assim me ajuizarem. Aos da esquerda que quiserem esvaziar a minha ideia, também direi que não me juntei a eles. Desminto os que, presos às suas convenções herméticas, me acusarem de estar a ver as coisas do avesso, porque a sensibilidade social é um monopólio das esquerdas. Se me for permitido enviar um par de recados, às direitas recomendo que não sejam os habituais defensores dos ricos; às esquerdas sugiro que reconheçam que também estão presas a dogmatismos que costuram um viés de que não dão conta (ou fingem que não). 

Todos gostamos de comer um trufa de chocolate. Mas todos fazem um esgar de desprazer se tiverem de ingerir uma colher de óleo de fígado de bacalhau. Quando é preciso, temos de ingerir óleo de fígado de bacalhau. Para que mais gente possa deliciar-se com trufas de chocolate.

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