18.7.25

Amanhecer (capítulo II)

Ólafur Arnalds & Talos, “A Dawning”, in https://www.youtube.com/watch?v=nEBbhgMp8Ok

De cada vez que amanhece sinto as estrofes outonais a colonizar as veias. Amanhecer é um sortilégio, o lento evaporar da noite a levantar as bandeiras para a vertigem-que-aí-vem. Aqueles momentos em que o torpor demora a imolar, como se o corpo resistisse a olhar de frente para o dia, são o tributo ao sortilégio do amanhecer. 

O silêncio à volta, a discreta ocupação do crepúsculo pela luz inaugural, o orvalho deitado sobre as janelas, embaciando a rua, como se demorasse mais tempo a devolver a noite à sua vez de hibernar. É ao amanhecer que as forças autênticas são convocadas, tomando conta da inspiração espontânea e o pensamento flui sem se intimidar com embaraços. As ideias organizam-se em esboço, preparadas para irem a concurso ao longo do dia. A alvorada é abençoada por umas nuvens finas e dispersas e feixes alaranjados tingem as nuvens. Todo o céu parece que está a gritar através dos primeiros raios de sol que se fazem notar com a mediação dos tons alaranjados. Como se fosse o parto da manhã, doloroso como são os partos. 

Mas a manhã não se lamenta. Apenas se faz anunciar através dos primeiros lampejos que são uma amostra de timidez, porque quem assim se condói não consegue falar através de uma voz vívida exteriorizada por uma cor desimpedida e luxuriante. A manhã faz de propósito: os tímidos raios inaugurais que arejam o céu cor-de-laranja anestesiam os pálidos aventureiros que desafiam a alvorada. O dia não tem de nascer de parto forçado, feito de um impulso súbito e bruto. Seria como olhar para o sol de frente e sem pré-aviso, o olhar instantaneamente cegado pelo aluvião de luz desembaraçada, e as pessoas imersas numa paradoxal escuridão durante uns instantes. 

Amanhecer acompanhando a inauguração da manhã é o testemunho de um modo de vida que recusa a urgência da palavra, a violência das decisões forçadas, as escolhas descompensadas pela vertigem de um tempo que se teme ser sempre efémero. Se o amanhecer de hoje não reproduzir este quadro, é porque o dia nasceu plúmbeo e a constelação de cores e luzes ficou embaciada pelas nuvens. Mas um amanhecer sortílego está ajuramentado para um dia dos que estão para vir. Nunca se perde por essa demora. 

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