22.7.25

O naufrágio da civilização (conta a fascização de tudo)

Sonic Youth, “Shadow of a Doubt”, in https://www.youtube.com/watch?v=tFNnvQLvs7I

O fascismo cerca-nos. Nós, os que recusamos (e recusámos) o fascismo, sentimo-nos acossados como se fôssemos ilhas e o fascismo fosse o soberano das marés que empurram o fascismo para dentro dos arquipélagos. O lugar-comum que tomou conta do discurso político e de alguns comentadores influentes transfigurou o fascismo num arsenal monotemático que se atira contra o inimigo ou o adversário (consoante o grau de radicalização do sujeito que desqualifica), reduzindo-o a um banal “fascista”. Assim se reinventa um conceito e se ofende a História e as vítimas do fascismo nela emolduradas. 

Quando o anátema é titulado por intelectuais, o caso fica mais sério. Se até eles trivializam o conceito e encerram quase todos os males numa categoria operativa ao atropelo da História e a Ciência Política, é o incómodo que aflora. Segundo António Guerreiro (“A vida não fascista”, Ipsilon, 11.07.25), “independentemente de estar a acontecer uma disseminação de algumas formas históricas do fascismo, o triunfo das afecções fascistas marca o nosso clima epocal”. Entre os vários exemplos oferecidos como prova do enunciado (nos quais revejo sintomas que contaminam a sociedade contemporânea), Guerreiro avança com os “(...) actos e [os] prazeres que nos são incutidos (por exemplo, a televisão, o turismo e o entretenimento são actualmente concentrados de vida fascista)”. 

Os populismos assustam-me. Também os de esquerda radical – convém não sermos seletivos. Os partidos de extrema-direita, ou de direita radical, como lhes queiramos chamar, que transpiram fascismo ou são portadores de uma retórica que se aproxima do fascismo tal como o conhecemos, são miasmas que devem ser combatidos com as ferramentas da democracia e da cidadania. A sua linguagem, a reação a assombrações fantasiosamente esgrimidas, a forma como se servem de uma bagagem de “ideias” (as aspas são intencionais) vão ao encontro do que muita gente quer ouvir ou ver defendido nas instituições representativas dessas vozes; tudo isto se abeira do grotesco; é um retrocesso civilizacional, a trincheira da denegação da História; no limite, conspurca o espaço demoliberal que medrou depois da derrota dos totalitarismos em 1945 e em 1989.

A banalização do mal, reincarnado no fantasma fascista agitado por vozes militantemente de atalaia, pode ter contraindicações. Primeiro, a banalização do espectro fascista é o úbere de um cansaço social, deslegitimando as sucessivas advertências tituladas por um paternalismo que gera anticorpos. Alguns destes ativistas deviam interiorizar os efeitos do (seu) ativismo antifascista. Aos olhos dos resultados eleitorais, numa mancha que se alastra pelo mapa fora, retira-se uma de duas consequências: cada vez menos gente se revê na retórica dos diligentes antifascistas e desvaloriza o cenário dantesco que esbracejam; ou cada vez mais gente manifesta escolhas erradas quando se depara com a urna de voto, assim se derrapando para uma sobranceria que não abona a favor de quem a pratica. 

Segundo, por maior que seja a repulsa provocada pelos abencerragens desta amálgama a-ideológica, protagonizada por personagens que não passam de oportunistas; por maior que seja o temor que causam, eles e aqueles que representam (não interessando saber se estes aderem espontaneamente ou se é por reação epidérmica contra quem os ataca), pelo pressentimento de quererem corromper a democracia por dentro; a História recente prova que quando chegaram ao poder não cancelaram eleições nem mataram a democracia por dentro (dou de barato, como exceções, os acontecimentos no Capitólio e no Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal depois de Trump e de Bolsonaro terem perdido eleições). 

Por último, é legítimo questionar os pergaminhos democráticos de algumas dessas vozes que continuam vigilantes a desfeitear os planos fascistas de implosão da democracia. Os curricula vitae não se apagam dos registos.

Olhando em retrospetiva, já não sei ao certo onde está a causa e o efeito. Diria um observador atento e preocupado com a preservação da democracia que a emergência da extrema-direita (e de uma gramática que ressoa tempos atávicos do totalitarismo correspondente) é a causa e o recrudescer de uma militância antifascista é o efeito. Tenho a impressão que as variáveis se inverteram. A abnegação dos empenhados combatentes antifascistas que já não resistem ao fascismo a partir da clandestinidade, atuando desde confortáveis posições garantidas pela democracia demoliberal (que alguns deles abjuram na sua declinação liberal), a insistência com que esbracejam o espectro do fascismo, ainda em forma embrionária ou já como materialização (decerto exagerada), tornou-se na causa de muitas pessoas se refugiarem em partidos de extrema-direita que podem ser reincarnações do fascismo, reagindo contra a arrogância intelectual que é instrumental a esse ativismo. Este refúgio é o efeito.

Para se perceber a complexidade dos tempos modernos, e de como somos (menos os fascistas) ilhas cercadas pelo fascismo, Guerreiro propõe o conceito de “não-fascismo” como “(...) uma atitude crítica que se subtrai às afecções fascistas. Estas não são um exclusivo dos fascistas que ousam ou não dizer o seu nome, habitam também muitas vezes o espírito e as acções de gente que proclama o antifascismo.” Por este andar, temo que, através deste texto que apenas reivindica o direito ao pensamento crítico, esteja a dar o meu contributo para o catecismo fascista que tem sido servido como uma maré-alta entre cada vez mais gente. Quem não se revê no fascismo pactua com o fascismo, sendo contaminado por essa lama hedionda que vem alastrando no tempo e no espaço. Ou se é ativista na denúncia do fascismo latente que ameaça liquidar a democracia, ou é-se fascista por omissão. O “não fascismo” não admite meio-termo. Pergunto-me se esta irredutibilidade não é, no código semântico do “não fascismo”, uma variedade de fascismo.

Para meu sossego, dispenso que me imputem responsabilidades que não reconheço. Quanto ao demais, convenço-me, a cada passo desta coreografia que segue a linha do tempo, que há quem perderia a razão de existir sem a causa da luta antifascista. E essa, talvez, seja uma das piores doenças da nossa civilização. O efeito da fascização de tudo é contraproducente: quanto mais se fala do fascismo e dos perigos que encerra, maior a atração pelos partidos de extrema-direita.

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