1.12.25

XLIII

Pixies, “Where Is My Mind”, in https://www.youtube.com/watch?v=N3oCS85HvpY

With your feet on the air

and your head on the ground.”

Almoço. Na mesa ao lado, dois casais de reformados. Falam de viagens. São pessoas viajadas, se a mentira não estiver a falar por eles. (Quem te manda ser desconfiado?) Episódios de aterragens difíceis voam de boca em boca. A cada episódio assustador, sucede outro ainda mais assustador. Parece um concurso de horrores passados com aterragens à força, umas, e aterragens borregadas (no jargão do meio), outras. Os homens narram-nos com o ar de quem precisa de provar a valentia – a miúda do lado desatou em prantos quando o avião, mal tocou na pista, levantou voo com toda a força, investindo contra a turbulência, “mas eu não tive medo nenhum”. As mulheres são mais contidas, fazem fé nos episódios narrados pelos consortes.

Uma das senhoras sobressalta-se: não sabe da carteira. Sonda as imediações: “tenho a certeza de que entrei no restaurante com a carteira; não pode estar longe.” A carteira repousa na cadeira à minha frente, escondida pela toalha de mesa. Pega na carteira com alívio e dirige o olhar na minha direção. Não fosse desconfiar que eu já tinha notado a presença da carteira e quisesse dar-lhe um destino ilegítimo (na perspetiva de quem deita a mão na propriedade alheia), desanuviei o ambiente:

- Vamos trocar de carteiras, para ver quem tem mais dinheiro?

- Vamos. De certeza que é o senhor, com esse ar que tem...

        Não trazia ar de maltrapilho. Devia ser o ar de alguém, pelo menos, mais endinheirado do que a senhora – ou a senhora está habituada a que o marido seja o homem das finanças. Retorqui, depois de entreabrir a carteira e espreitar o pecúlio guardado (era uma nota de dez euros):

- Aposto que eu ficava a ganhar se trocássemos as carteiras.

- E os cartões, os cartões não contam?

- Não. Só contam as notas. De certeza que não quer trocar as notas que temos nas carteiras? – desafiei a senhora, como se fosse um profissional do jogo e o bluff não amedrontasse. Não sabia quantas notas a carteira da senhora agasalhava e se, caso avançássemos na troca de pertences, ficaria a ganhar ou a perder. O marido, sentado à sua frente, contestou:

- Ah, não vale! O dinheiro de plástico é mais importante do que o dinheiro contado.

A conversa foi interrompida pelo serviço que chegou à mesa dos quatro reformados. Mais tarde, já tinham sanado a fome, a senhora levantou-se para ir à casa de banho. Cruzámos olhares. E ela sentenciou, atrevidamente, falando na minha direção:

- É o senhor que paga a nossa conta.

   Não reprimi uma gargalhada (coisa rara). Nada disse. O silêncio costuma corresponder a consentimento – pus-me a pensar. Como estamos a entrar no mês do Natal, e às vezes dá-me para ser exageradamente generoso em épocas que sejam à altura da generosidade, terminei a refeição antes de a senhora regressar da casa de banho e dirigi-me à caixa. Pedi a conta. Da minha mesa e da mesa ao lado, para espanto do empregado. E saí de mansinho, com um discreto “boa tarde” dirigido aos três reformados que ainda esperavam pelo café.

     Depois percebi: esta generosidade foi um ato de ostentação. Tão gratuito quanto o ato normal de restringir o pagamento à mesa própria.

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