Primal Scream, “Swastika Eyes” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=0ZPvqEE0X0I
“Blood and revenge are hammering in my head.”
Titus Andronicus chega triunfante a Roma. Triunfante e cansado. Já foram muitas as guerras que o general travou e viu cair em combate vinte e um dos vinte e quatro filhos, que não tem força para ser imperador. Nomeia Saturnino, que não esconde a acrimónia perante Titus antes de ser acalmado como imperador. Como seu primeiro ato, Saturnino desposa Tamora, rainha dos godos, que Titus tinha acabado de desfeitear e trazia perante os romanos como relíquia arrebatada na guerra.
Mal foi nomeado, Saturnino quis vingar-se de Titus. A rainha, que acabara de ser deposta pela guerra e reempossada pela arte do calculismo humano, teceu um enredo que iria de vingança em vingança até que as mortes de todos os vingados se acumulassem numa pira de desonra. Ela própria, um filho seu, um filho de Titus, Saturnino e até Titus perecem no apocalíptico ato final em que todas as vinganças se consumam no imenso vazio que se cola à posteridade.
A peça “Titus”, adaptação de Cátia Pinheiro, Hugo van der Ding e José Nunes de “Titus Andronicus”, de Shakespeare (em cena no Teatro Carlos Alberto), aproveita um clássico intemporal do teatro. Como intemporal que é, os encenadores quiseram mostrar que a trama explica as guerras que têm sancionado a humanidade ao longo dos séculos. O orgulho que irradia com fulgor, o prazer pérfido de impor a vingança ao inimigo, fazendo-o vergar diante de uma humilhante derrota, serve de combustível para vinganças futuras ainda mais dolorosas e humilhantes – eis o retrato que um pessimista antropológico subscreveria sem hesitar. Num esforço de adaptação ainda mais contemporânea, a peça mostra o grande vencedor da trama de intermináveis conspirações que fervilharam no desejo de vingança irreparável: o negro e mouro, escravizado no passado, que se libertou das amarras dos poderosos e conspirou nos interstícios para aproveitar a sucessão de vinganças que tiveram o seu epílogo no colapso apocalíptico dos protagonistas que ainda estavam vivos.
“Titus”, na sua aplicação moderna, também legou ensinamentos sobre o discurso de ódio. Este é um discurso motivado pelo ressentimento. Os que são acometidos pelo ressentimento medram no úbere da vingança. Querem vingar-se do passado que não foi generoso. Querem repor um passado que se julgava sepultado. Querem vingar-se daqueles que, durante muito tempo, foram as forças vivas da sociedade que instruíram a delimitação face aos proscritos. Querem vingar-se contra as bandeiras hasteadas na evisceração do conservadorismo de se constituíram procuradores. Arregimentam lealdades com base num discurso de ódio que ateia a intolerância e não quer saber dos meios desde que os fins sejam atingidos. Perante um discurso de ódio que fermenta a acrimónia e levanta pontes para a arrogância ilimitada, que reação devem ter os que não se revêem nesse discurso?
A melhor reação é condenar o discurso de ódio à surdez. Os seus fautores devem ficar a falar sozinhos, ignorando as ramificações do que é dito em público, tecendo uma censura construtiva que consiste em não dar ouvidos a manifestações que exsudem discurso de ódio. Ao contrário dos empenhados militantes que reavivam o fantasma do fascismo que se levanta da sepultura, que decretam a imperatividade de combater, com armas idênticas, os radicais que adestram o discurso de ódio.
O discurso de ódio não deve ser proibido pela democracia, para que a própria democracia não caia em estado de autonegação. Não devem ser os democratas a delimitar o discurso de ódio, impondo-lhe as fronteiras de quem, com a necessária arbitrariedade, se empossa na condição de juiz político. O discurso de ódio deve ocupar o seu lugar no palco da democracia. Prefiro agarrar-me ao otimismo antropológico para acreditar que a lucidez emergirá para restringir o discurso de ódio à tumefação que ele é. O discurso de ódio é o melhor escudo da democracia.
Podem argumentar que deixar passar em branco o discurso de ódio tem efeitos contraproducentes. Dirão que, se não forem levantadas barreiras ao discurso de ódio, ele seguirá seu caminho, desimpedido de minas que devem ser colocadas para travar a cavalgada dos radicais. Não avaliem como capitulação a medida cautelar que preconizo. Não o proponho como quem estende uma passadeira triunfal aos que deixamos a falar sozinhos. Aos soezes deixa-se o silêncio como resposta à sua desbragada retórica. Os que quiserem habitar o mesmo lugar pútrido, respondendo à letra, trocando discurso de ódio pelo criterioso amputar de Liberdade ao quererem ser juízes arbitrários das liberdades, serão tão responsáveis pela propagação do discurso de ódio quanto os autores desse discurso.
Em “Titus Andronicus”, Shakespeare ensinou que estamos destinados à vingança. Por assim ser, a lucidez obriga a não jogarmos a mesma carta dos radicais, a carta do discurso de ódio. Têm de ficar a falar sozinhos. Para exibirem o espetáculo grotesco que é o discurso de ódio. Esperando que a esperança do otimismo antropológico se cumpra, os otimistas de fora lamentando o grotesco espetáculo, percebendo por que não falam essa gramática.
Quando Titus decidiu endossar o papel de imperador a Saturnino, o menos apto para o suceder à frente do império, saberia, no seu íntimo, que Saturnino o desafiaria sordidamente por vingança contra o general que nunca o reconheceu como o candidato predileto ao trono. Titus terá previsto a sede de vingança que haveria de sufragar depois de Saturnino confirmar a certeza que Titus teve antes do tempo. Há vinganças que se arquitetam antes do tempo. Mas as vinganças devem ser banidas, independentemente do tempo em que se tecem.
Se respondermos à letra ao discurso de ódio, acabaremos submersos pelos demónios que o instruem. Ficaremos à mercê da sua vingança e da vingança de que seremos procuradores para responder à vingança precedente. Quando dermos conta, também somos instrutores do discurso de ódio. A democracia estará, então, a um passo do suicídio.
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