16.12.25

LIV

The XX, “Crystalised”, in https://www.youtube.com/watch?v=Pib8eYDSFEI

“I’m floating on a moment, don’t know how long”

Carta do pai Natal a um destinatário anónimo e ao acaso:

Querido(a), ou não tanto, destinatário(a) que hás-de ler esta carta. Desta vez é ao contrário: eu é que escrevo uma carta. Eu, que não gosto de escrever e hesitei muito antes de começar a verter umas palavras na folha em branco, sei agora que prefiro escrever uma carta em vez de ler todas as cartas com que os adoradores do Natal, esses esperançosos ingénuos que não cessam de acreditar que o Natal patrocina a redenção, entupem o meu apartado postal.

Tu, que já começaste a ler o primeiro parágrafo desta carta, saberás, por muito ingénuo que sejas, que não é a meta-narrativa das cartas de Natal que me traz à escrita – tanto que, como saberás também, não há conhecimento anterior de cartas remetidas pelo pai Natal (desculpa falar de mim mesmo na terceira pessoa, estou ao corrente tratar-se de uma forma disfarçada de narcisismo, mas qual é o mortal que consegue resistir aos modismos?).

O que me traz a esta missiva é um par de conselhos, ou talvez um pouco mais, que considerei deixar-te em herança do Natal deste ano. Como se fossem presentes que se somam aos que fizeste constar na carta que me dirigiste. As prendas não esperadas são as mais saborosas. É o que ouço dizer, não é por experiência própria que te lo digo, pois não existe a tradição de prebendar o pai Natal. Uma injustiça do tamanho do mundo que seria denunciada se houvesse um sindicato dos pais Natais. 

Imagino que estejas cansado da habitual música alusiva à época. Chegam-me relatos de pessoas que odeiam o Natal por causa da insistência com que essas músicas colonizam o éter sempre que dezembro entra em ação. Se não for o caso, se fores daqueles que trauteiam essas musiquetas quase sem dar conta, contribuindo para a sua perenização e para a angústia dos que são diferentes de ti, toma esta carta como uma oferenda a considerar. 

Não quero que me vejas como um moralista de terceira categoria que aproveita o Natal para adulterar os usos, enviando uma carta a um destinatário desconhecido. Também acompanho as tribulações do mundo e tenho opiniões próprias. Não fujo dessa responsabilidade. E como pairo acima do comum dos mortais – é o privilégio de quem conduz as parelhas de renas na distribuição de prendas de Natal – não enjeito deixar-te algumas recomendações para que não sejas vítima destes tempos tumultuosos.

É que tumultuosos são estes tempos desde há muito tempo. Não vou teorizar sobre a crise que passa de crise em crise e se embebe nos hábitos e nos comportamentos das pessoas. As pessoas são exageradas durante a maior parte do tempo. Não são diligentes como a prática da esperança, que é intrínseca ao Natal. Se abrem uma exceção à desconfiança metódica e ao oportunismo cabal que lhes corre nas veias, é porque acreditam (ou querem acreditar) que é seu dever fingir que as coisas são diferentes quando dezembra pelo calendário fora.

Por isso, recomendo que continues a ser filho-da-puta como habitualmente és. Assim como assim, já desconfias que os outros são filhos-da-puta como tu, uns piores e outros em vias de te apanharem antes da meta. Quem eu represento não anda a dormir. Não penses que o fingimento com que cobres o comportamento natalício o apanha desprevenido. Ele sabe ler intenções e palavras nas entrelinhas. Se não acreditares que ele existe – ou se contestares o viés de género, reclamando que devemos divinizar uma ela –, considera a minha advertência na mesma. O julgamento final está sempre mais próximo do que julgas. Podes começar a tremer de medo. Mas sossega, essa não é a prenda que te quero anunciar.

Não aproveites a época para te cobrires de uma generosidade artificial. O fingimento não abona em teu favor. Não esperes uma retribuição equivalente à farsa em que te constituis só porque se aproxima o Natal. No jantar da empresa, continua a manifestar o azedume com aqueles a quem destinaste azedume. Abusa da bebida e enche-te de coragem para contar um par de verdades às chefias. Quando chegares a casa, dedica um carinho que vai rareando à pessoa que dizes amar. Ao pequeno-almoço, dedica dois minutos de atenção à descendência (e se eles continuarem a ignorar-te, quero que saibas que a culpa é só tua). Ou então, prolonga a tua filha-da-putice à casa da família. São tão pessoas como os outros, lá fora.

Nunca consegui entender esta humanidade. Ela seria despojada de hipocrisia se não aproveitasse o Natal para fingir ser aquilo que não é. Eu sou o primeiro a odiar um Natal quando o Natal é feito desta maneira. Se calhar, já me devia ter reformado. Ou feito greve, em Natais sucessivos, até as pessoas se terem convencido de que têm de ser diferentes. Ou até elas se terem convencido da inutilidade do Natal.

Não o posso confessar em público, ou eu, o pai Natal, estarei condenado à irrelevância. Peço-te segredo. Não contes a ninguém que recebeste esta carta do pai Natal. Prometo ser mais generoso contigo se fores o túmulo que guarda o segredo desta carta.

Rovaniemi, 16 de dezembro de 2025. 

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