Soundgarden, “Limo Wreck” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vrnxtk-zP0k
Na alta roda dos figurões e dos seus satélites, os aspirantes que, todavia, não passam de figurantes, vive-se numa imersão de fingimentos. As bocas críticas – os visados diriam: as bocas maledicentes – terçam enredos conspirativos que deixam os mandantes emaranhados numa teia de confirmações. Invertido o ónus da prova, são condenados pela suspeição até prova em contrário. Casos há em que a má formação que serve de aval às críticas contundentes tem o lastro prévio de condenações em tribunal. Todavia, haveria de nascer o dia da sua homenagem.
Na alta roda montada a preceito, vozes que foram outrora ouvidas em acerbadas críticas ao homenageado sobem a palco e escrevem os capítulos de uma hagiografia. Desce a cortina sobre o passado, esquecem-se as palavras críticas, cauterizadas por cicatrizes a preceito, e eleva-se o homenageado à condição beata.
Até para fingir é preciso saber fingir. Num palimpsesto de fingimentos, um em cima do outro e o último só à espera da melhor circunstância para ser desmentido no opúsculo de um fingimento neófito. Ou a memória tem curto pavio, ou a cerviz das pessoas dobra com flexibilidade réptil. E as pessoas, as mesmas que do homenageado diziam o que Maomé não diz do toucinho, comparecem em peso à cerimónia e com genuflexões alimentam a entronização da personagem soez e canhestra que deles próprios terá, em determinada ocasião, emitido juízos em desabono.
Este é um intempestivo exercício de lavagem coletiva da memória. Como se um milagre súbito tivesse concorrido para a revisão da memória dada e as pessoas rendessem homenagem encomiástica a quem foram seus diletos críticos. O fingimento que medra dentro de um fingimento deixa tudo imerso numa confusa nebulosa, não se desse o caso de o fingimento ser o manual de instruções com mais saída no mercado. Ou então, um fingimento por dentro de um fingimento deixa de ser fingimento.
A hagiografia esgotou-se no dia do cerimonial. No dia seguinte, vingando a desmemória seletiva, já ninguém evoca a hagiografia. Provavelmente, nem o hagiografado, diligente praticante da hipocrisia vertida na sequência interminável de fingimentos que se acumulam num fingimento de proporções bíblicas. O homem situado ao nível dos anjos pactuou com a encenação, num delírio coletivo que só encontra explicação pela atração vertiginosa das pessoas pela continuidade dos fingimentos.
O dia seguinte foi um dia normal. As bocas voltaram às falas verrinosas. O homenageado não é um santo e a hagiografia da véspera foi apressada e sem significado. Ficou confirmado o estado da humanidade, sentada num imenso palco que aloja múltiplos fingimentos. Talvez estas vidas sejam uma metáfora do complexo teatro em curso. E valha a pena mudar o significado de hipocrisia.
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