Lamb, “Gorecki”, in https://www.youtube.com/watch?v=tSRYvYN1ayw
O fado que nos subjuga é feito de uma História longa, repleta de proezas e de contrariedades, embebida numa memória sujeita a reinterpretações. Uma História instrumentalizada com propósitos opostos (a ideia da imorredoira nação ínclita que se opõe à reivindicação da colonização como um cortejo de erros à espera de emenda), uma História que embacia olhares aprisionados atrás da estatura que foi arrematada com a trajetória do tempo.
Confunde-se portugalidade como pertença com um sentido histórico de grandeza que deixou de medrar. Piora o diagnóstico quando há quem traga à colação a desinspirada herança da “raça”, porque os tempos avançam e com eles o que as pessoas (a maioria delas) pressentem sobre o termo e a sua relevância. A portugalidade que continua a ser solenemente celebrada a cada dez de junho não é um atavismo, se dois dias depois da sua encomiástica celebração se assinala o 40.º aniversário da assinatura do Tratado de Adesão às (então) Comunidades Europeias? O contraste não pode ser mais vívido pela contiguidade de datas: a portugalidade continua a ser o mote para amores, indiferenças e desamores e a Europa continua a ser uma nota de rodapé quando devia ser celebrada como a redenção de que estávamos a precisar depois da redução à exiguidade geográfica que herdámos com a deposição da ditadura.
A insistência no cortejo laudatório da portugalidade não se devia desprender das circunstâncias do momento. Há quase um mês, a extrema-direita festejou um resultado nas eleições que ninguém conseguiria profetizar há seis anos. Até então, éramos parte da excecionalidade europeia: a extrema-direita era insignificante. Agora deixámos de pertencer a essa excecionalidade com a cavalgada eleitoral que a extrema-direita tem protagonizado. Entre 2019 e 2025, o número de votos do Chega cresceu vinte e uma vezes.
Esta crescente visibilidade tem efeitos no dia-a-dia, nas relações comezinhas entre os pares. O que dantes era reprimido porque a extrema-direita não estava na moda é agora verbalizado em público sem que os seus fautores tenham receio de ser abjurados: vulgarizam-se comportamentos soezmente racistas e o bolçar xenófobo que antagoniza um “nós” contra “os outros”. No dia da portugalidade, estes comportamentos atrozes vieram para as notícias: ex-combatentes mandaram o imã de Lisboa para a “sua terra” durante uma cerimónia em que esteve presente o muito presumível futuro presidente da república (sem que este tivesse tido o incómodo de dar uma pública reprimenda, que, agora sim, seria acertada); um ator da companhia de teatro “A Barraca” foi agredido por uma chusma de neonazis antes de subir a palco; e alguns comentadores desencantados com o discurso da comissária oficial do dez de junho, Lídia Jorge, protestaram uma suposta “traição à pátria” da escritora porque ela teve a lucidez e o desassombro de tocar em feridas que, para estes críticos, continuam escondidas atrás de convenientes tabus.
Admito que os assertivos percursos mentais destes radicais libertaram-se da hibernação forçada porque o contexto lhes é favorável. Estão de peito cheio, agora que se sentem representados por uma bancada parlamentar de gente que pensa e fala como eles dantes não tinham coragem de pensar e falar. Neste contexto altamente contaminado, celebrar o dez junho e o orgulho da portugalidade é convocar os radicais para saírem das suas remotas coutadas e virem para a rua tresler os festejos. É dar-lhes uma oportunidade para gritarem as suas agendas radicais e atávicas, com o uso da violência como argumento derradeiro no caso dos mais radicais entre os radicais. Sem perceberem que, pese embora 26% dos deputados estarem do seu lado, os restantes 74% reprovam as suas ideias e os seus métodos. O dez de junho de 2025 levará esta nódoa à lapela para memória futura.
Quando vejo estes retrógrados treslerem as celebrações para as empurrarem para algo que só existe no seu pobre e desatualizado imaginário, sinto uma incómoda pulsão para usar os métodos de que são useiros e vezeiros. Bem sei que o recurso à força quase sempre determina que a razão se dissolva entre os dedos. No caso vertente, como as sinapses estão deslaçadas e o raciocínio se move por corredores vãos, fica inviabilizada a hipótese de os radicais responderem a algumas questões que reputaria do foro existencial.
Eis alguns exemplos: como têm o topete de mandar os outros para a terra deles se alguns dos seus antepassados estiveram emigrados em terras estrangeiras e prosperaram na condição que agora querem negar a outros “outros” que nos procuram? Como podem destilar esta irada devolução à origem se os nossos mais longínquos antepassados, quando chegaram a terras estranhas e desataram a colonizá-las, eram o outro forasteiro e mesmo assim se impuseram pela força? E já que se fala de força bruta, uma pergunta encomendada aos neonazis: um dos seus, Mário Machado, teve tratamento a preceito ao dar entrada no estabelecimento prisional que o esperava, sendo agredido por alguns dos seus pares; é desta força bruta que estão à espera de serem as próximas vítimas, para, talvez, então aprenderem que a violência perante os outros não pode ser curricular?
Timidamente, no seu discurso do dez de junho o presidente da república procurou desfazer lugares-comuns quanto à pertença associada à portugalidade. Porque no final do primeiro quartel do século XXI impõe-se falar de uma portugalidade reinventada, uma portugalidade cosmopolita, ao sabor dos tempos atuais. Era bom que os radicais se desprendessem das suas fronteiras mentais e não forçassem uma grelha de análise que não quadra com o mundo atual. Para que a celebração da portugalidade não tenha um sabor azedo, como aconteceu neste dez de junho.
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