26.6.25

O cavalo de Troia que a cidade ganhou de presente

New Order, “Transmission” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=KhIstqstFNg

Não sabiam o que era o cavalo de Troia. Parecia um presente – mandam os preceitos da boa educação que não se rejeitam presentes, não vá a recusa ser entendida como uma deselegância que ofende quem os ofereceu. O intenso sabor da curiosidade era a sela em que se situavam os que inspecionavam o cavalo de Troia desde o exterior. Dizem que a curiosidade pode matar os gatos, mas deviam estender o anexim aos humanos que se consomem numa insaciável sede de abrir os presentes de que sejam destinatários.

O cavalo de Troia não tinha remetente. Era um presente anónimo. Não era altura para desconfiar. Esse é o comportamento habitual quando a humanidade congemina a sua atuação: a autodesconfiança é sintomática. Desta vez, a iminência do presente forçou os presentes a suspenderem o metódico pessimismo que sobre a espécie vertem. E nem sequer a contingência inerente ao anonimato os demovia da sua infatigável curiosidade. Em seu abono, elucubraram que nem tudo que é anónimo vem vestido de ameaça e de efeitos malignos. Ele há denúncias anónimas que se fundamentam na hipocrisia dos denunciantes, ou na convicção que estão a semear rumores sem fundamento. Mas também há anonimatos que não se reveem nesta distopia e se manifestam em elogios bem digeridos.

Empurraram o cavalo de Troia para dentro da cidade. O momento era tão solene que exigia comparência geral na praça mais ampla da cidade. As pessoas foram convidadas para a cerimónia. Seria no dia seguinte. Um contingente de militares fortemente armados estava de atalaia ao cavalo de Troia ainda embrulhado. As pessoas podiam admirar o presente na sua forma exterior. Muitos não dormiram e prolongaram a véspera até ao dia marcado para a solenidade. 

As forças vivas da cidade aprumaram-se o melhor que souberam – fatiotas bem apessoadas, medalhas à lapela para os militares agraciados, as senhoras com penteados de última hora e os sacrossantos sapatos de tacão alto a perturbarem o caminhar na calçada, a banda filarmónica a fazer das tripas coração para disfarçar as desafinações, o edil que abriu uma exceção ao padrão dos tempos recentes e não acordou com a dor de cabeça consequente à embriaguez de véspera, uma parada militar preparada para ostentar a força que, só de ser sentida, dissuadia os inimigos que o quisessem vir a ser (esse era o convencimento geral). O edil fez um discurso breve e que não ficou emoldurado nas memórias. Ouviu-se uma salva de tiros  que corroborava a audácia das forças armadas em presença. As senhoras tossicavam com aqueles meneios femininos que aprenderam nos cursos de etiqueta para senhoras da alta sociedade e que ajudavam a disfarçar o nervosismo. Algumas das forças vivas da cidade não sucumbiram à canseira do protocolo e foram deixando cair o sono a tiracolo. 

Até que o silêncio foi endeusado por uns segundos, aqueles segundos que precederam o desembrulhar do cavalo de Troia depois de o mestre de cerimónias ter anunciado o momento tão esperado. Quase se se conseguia escutar o palpitar uníssono dos corações de todos os cidadãos (independentemente da sua condição social e política) – não houve silêncio tão democrático como este na história da cidade. Um dos ícones da cidade, um veterano que esteve em guerras em nome da pátria, acompanhou o edil no descerramento do presente. Quando o cavalo de Troia foi desembrulhado – tarefa que demorou quase cinco minutos e exigiu a colaboração de uns contínuos do município recrutados à pressa –, a estrutura do cavalo desabou, como se a exposição aos olhares dos circunstantes tivesse ativado um súbito efeito de erosão que desfez o presente em cinzas.

Os dias que se seguiram foram de incredulidade. Não se falava de outra coisa. Quem teria sido o autor da oferta e que propósito teria ao consumar um presente que se desfez em cinzas assim que foi desembrulhado? Começaram a desfilar as teorias da conspiração. Os lugares-comuns estavam efervescentes. Assim como assim, a voz do povo adverte para a possibilidade de presentes envenenados. 

À cautela, mandaram analisar as cinzas em que se decompôs o cavalo de Troia. Os dias seguintes foram de ansiedade. O que diriam as cinzas sobre a possibilidade de envenenamento da cidade?

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