The Psychedelic Furs, “Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=4G_CAYf-itw
Do ditado se aprende que curta é perna da mentira. Deduz-se, da sagacidade popular, que a mentira é quase sempre apanhada numa armadilha qualquer. Ou porque os mitómanos se enredam numa teia complexa e não é difícil darem um passo em falso quando se estilhaça uma das peças em que a mentira se tece. Ou porque o mentiroso nem a mentir é diligente, ou porque é apenas um amador da mentira. Ou porque a mentira é tão obnóxia que se denuncia a si mesma. Ou, apenas, porque os cânones da pureza moral ensinam que não compensa mentir e os mentirosos são pescados pela rede em que labora a imensa maioria dos castos da boa-fé.
Seria anã, a mentira, se estes fossem os preparos que a retratam. No entanto, as mentiras acastelam-se: às vezes, reforçam-se umas às outras, outras vezes negam a mentira anterior sem que a verdade seja devolvida. Outras vezes, o fio condutor das mentiras leva os intervenientes a um estado de alucinação que nenhum reconhece: de tanto insistirem no rosário de mentiras, já as têm por verdadeiras. Os (alegados) puristas da verdade contestam os mentirosos quando não estão nesta posição. De outro modo, sentam-se no lugar dos mitómanos e abreviam a mentira para passar sob o escrutínio dos defensores da verdade quando intuem que podem tirar partido da mentira. Deste posto de observação, argumentar-se-á que os mentirosos não coincidem todos ao mesmo tempo na carnificina da verdade, tal como não há uma só circunstância em que todos se abraçam à verdade.
O problema torna-se mais complexo se ao observador chegarem rumores de mentira, ou a impressão de que alguém está em débito com a verdade. Ou naqueles casos em que há gente dúbia presa a um emaranhado ético que se dispensa da verdade por omissão da mentira. De acordo com a prescrição do Estado de direito, até prova em contrário ninguém é mentiroso. Ainda que alguém seja apanhado com a boca na mentira, os pudores da relativização tendem a amortecer o seu efeito: são as circunstâncias que atenuam a mentira, a posição de ignorância que impede de pesar todos os elementos que contribuem para distinguir a mentira da verdade, ou outros casos e acasos que servem de máscara à mentira, disfarçando-a do que não é.
A mentira presta-se à condescendência. Por efeito de uma solidariedade corporativa: toleramos a mentira porque, num salto mortal sobre a consciência, admitimos que somos assíduos na sua visitação. Ou porque podemos precisar da indulgência dos outros quando o futuro chegar e em nós for lançada a âncora da mentira.
A mentira, mesmo quando é anã, é um gigante que se disfarça atrás do nanismo. Como se fosse possível a um elefante disfarçar-se de formiga. O primeiro de abril é apenas a exceção.
Sem comentários:
Enviar um comentário