O registo apocalíptico nunca deixou de estar agarrado às folhas do calendário, mesmo que elas sejam díspares no tempo. Perpassa um sentimento de crise perene. Por uma das várias causas que podem fermentar numa crise, os apóstolos do apocalipse esgrimem o anátema da crise como diagnóstico da sua contínua insatisfação com o estado do mundo.
Podem ter estirpes variegadas: os pessimistas antropológicos descrevem a humanidade como se ela estivesse trespassada por sombras inalienáveis; os que trazem a tiracolo a bagagem ideológica que, menos ou mais dogmática, se mobilizam contra as inúmeras desigualdades que não deviam ter lugar num mundo a caminho de um estado tão avançado de desenvolvimento; e todos os apóstolos da desgraça que, por razões pontuais e não sistemáticas (como as duas categorias anteriores), se insurgem contra o estado em que o mundo se encontra e acusam os responsáveis pelo impasse em que caímos; ao nível do conteúdo, as críticas podem ser fundamentadas em aspetos materiais (com ênfase na persistência de desigualdades) ou em questões do foro imaterial, sendo os valores trazidos à colação.
Nos últimos tempos, as atenções têm estado na crise de valores das democracias liberais. Relatórios vários, dados a conhecer por instituições não governamentais que atuam como observatórios da democracia, insistem no retrocesso dos valores que sustentam as democracias tradicionais. A oposição já não é apenas entre democracias e regimes autocráticos; as democracias meramente formais têm vindo a ganhar terreno e a adulterar o que conhecemos da democracia liberal. Começam a prosperar as “democracias iliberais”, uma contradição de termos.
Um dos piores sintomas que fundamenta o sentido apocalíptico contemporâneo é a invasão das democracias liberais por partidos, movimentos e personagens que se demarcam dos valores democráticos. A polarização dos radicais tem crescido à medida que o tempo passa, estendendo sua mancha geográfica. Emergem sintomas que se afastam dos valores da democracia liberal: a maximização da intolerância; a incapacidade para um debate esclarecido e civilizado, por não saber ouvir quem discorda de nós; a violência motivada pelas divergências entre diferentes, o derradeiro recurso que, lamentavelmente, tem-se transformado cada vez mais no recurso primeiro para resolver pendências. O atual sentir apocalíptico baseia-se na adulteração de valores que está a abastardar a democracia. O aumento do tom da violência, quer a violência que tem expressão física, quer da violência implícita que se extrai da incapacidade de reconhecer o outro e debater com ele, enxerta um odor pestilento a fim dos tempos. Com a agravante de que esse sintoma não é estranho a quem conhece a História do século XX (nem é preciso andar mais para trás). Cheira a apocalipse. Somos os náufragos desse apocalipse, com a democracia tradicional sitiada, e por dentro, pelos seus oponentes.
Em sentido contrário, há correntes otimistas que clareiam o ar pesado que é marca registada dos pessimistas. Não omitem o receio pelo retrocesso civilizacional que está a turvar as democracias tradicionais. Todavia, levam a análise para outros domínios que equilibram o diagnóstico sombrio. A inovação tecnológica que cresce a um ritmo alucinante, trazendo benefícios intangíveis à vida quotidiana de muitos; o aumento do rendimento, pese embora não seja compatível com a erradicação das desigualdades (como os otimistas são lestos a admitir), garante a satisfação de necessidades de outra grandeza, contribuindo para a melhoria dos níveis de vida; o aumento da informação e as facilidades para a sua obtenção que ajudam na formação das pessoas e na compreensão de certos fenómenos que, há pouco tempo, eram inacessíveis ao cidadão comum; tudo contribui para o reforço da cidadania ativa, sendo também a caução para a emancipação das pessoas de outras tutelas, visíveis ou que apenas se insinuavam, e que acabavam por limitar o potencial da cidadania. Para estes otimistas tecnológicos, o fator preponderante é reconhecer que as pessoas mais depressa são astronautas do que náufragos.
O confronto das duas visões antagónicas pode-nos deixar desorientados. Elas partem de pressupostos diferentes, de mundivisões que não se reconhecem mutuamente e de uma ordem de valores que dificilmente ordena um diálogo recíproco. Mas, sobretudo, porque o destino do Homem se expõe a uma fratura tão significativa que até parece que ambas as abordagens não estão a observar fenómenos contemporâneos e verificáveis na mesma geografia. Existe uma diferença abismal entre nos termos como náufragos ou como astronautas. Talvez seja possível fundir as duas perspetivas. Elas encerram um código semântico que não as torna tão incompatíveis quanto parece.
Somos, ao mesmo tempo, náufragos e astronautas, em doses variáveis de pessoa para pessoa, no mesmo lugar ou em lugares diferentes.
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