12.9.25

Portugalidade a metro

Dino Santiago & os Tubarões, “Djonsinho Cabral”, in https://www.youtube.com/watch?v=udRPa46Vp7c

Dino Santiago vê-se “(...) mais português do que quase todos os portugueses” que conhece. O cantor também defende que a melhor maneira de esconjurar o fantasma da extrema-direita é experimentá-la no poder, outra vez. Juntando as duas partes da entrevista, interpreto o excesso de portugalidade de Dino Santiago como uma provocação bem pensada para desafiar os zeladores da portugalidade que, como é sabido, se encontram no bairro da extrema-direita.

Começo a escrever este texto sem ainda ter lido a entrevista. A frase de Dino Santiago dá que pensar. Não pela possível provocação, que terá desalinhado os cristais de muitos adeptos do Chega, mas pelo que ela significa. Impõe-se uma pergunta: podemos medir a portugalidade de uns e de outros a metro? Em caso afirmativo, quais são os critérios que permitem aferir a portugalidade?

Quando alguém se diz português a oração remete para a pertença, um sentimento de identidade que se fundeia num substrato cultural e histórico, mas que não pode perder de vista a sua significação política. Os Estados são entes políticos e a pertença nacional (ou a identidade, dependendo de como encaramos o fenómeno) é ainda em grande medida aferida na relação que estabelecemos com um Estado-nação. E se a palavra “ainda” aparece a meio da ligação entre o cidadão e o Estado é porque a modernidade contempla fenómenos e formas políticas que têm amortecido a predominância desse vínculo. 

Por um lado, há quem dirija a lealdade política para níveis infranacionais, reconhecendo no regionalismo, ou até no localismo, o fator preponderante de identidade. Por outro lado, à globalização imparável correspondem formas políticas supranacionais (União Europeia; outras organizações internacionais) que enfraquecem a pertença nacional. Por fim, acontece com maior frequência a pulverização de pertenças. As pessoas não se identificam apenas com um dos níveis mencionados, reconhecendo múltiplas fontes (sub e supranacionais e até extrapolíticas) que constituem o cimento da sua identidade política.

Suponho que a declaração de Dino Santiago enfatiza a dimensão histórico-cultural da portugalidade. Desconto o prazer que sinto ao adivinhar a turba de adoradores de Ventura a darem cambalhotas na atmosfera depois de lerem, ou de lhes terem feito chegar, a frase do artista. São eles que ainda acreditam na “raça lusitana” – com a ajuda do primeiro-ministro que, ao celebrar proezas desportivas de atletas nacionais, convocou a “raça lusitana” repetidas vezes – e na exaltação da pureza da portugalidade como ideal messiânico. 

Imagino uma peça de teatro que tome de empréstimo a metáfora da portugalidade para apurar a métrica da portugalidade de uns e de outros. Assim seria a lista: clássicos da literatura portuguesa; História de Portugal; usos e costumes que ordenam as relações sociais; gastronomia; romarias e festas populares; estatuária e sua representatividade; pintura e escultura que definiram um escol; domínio do idioma sem significativos atropelos gramaticais (pois se é uma exigência de atribuição de nacionalidade aos estrangeiros); hino nacional (e, para fazer a vontade aos radicais de direita que continuam sem sair da sacristia, saber o “pai nosso” de cor); instituições, seus titulares e suas competências; para os mais puristas, que ligam à genealogia dos nomes patrícios, os nomes que exibem o perfume da pureza da portugalidade.

Também imagino como a seriação seria em alguns casos problemática. Porque muitos patrícios há que conhecem Camões, Camilo, Pessoa ou Herberto apenas de nome (e, alguns casos, nem isso); outros reprovaram a História, ou não passaram de uma nota medíocre; alguns estão à margem de certos usos e costumes porque não se reveem pessoalmente neles (se moro em Ovar sou obrigado a gostar do carnaval? Se moro na lezíria tenho de ser aficionado da “festa brava”?); outros recusam iguarias que constam dos manuais de gastronomia típica (os sarrabulhos e outros pratos com sangue de animais causam-me repulsa); alguns emigram na altura de romarias populares para se porem a salvo do chinfrim; outros passam diariamente por estátuas e nunca dedicaram um minuto a saber quem é são essas personalidades; alguns não sabem o que são os Painéis de São Vicente de Foram ou quem foi Maria Vieira da Silva ou Cargaleiro; muitos, até os mais eruditos, tropeçam nas armadilhas do idioma; quase todos os que sabem o hino de cor não se detêm uns minutos para o sacrificar na necessária hermenêutica (o comodismo leva a palma); muitos não sabem os nomes dos edis, ou de ministros com a tutela de pastas que os afetam, ou o que podem as instituições fazer pelos problemas quotidianos; e alguns que perseguem os muçulmanos por serem responsáveis de uma conspiração para desmontar a civilização ocidental enquanto escondem o nome Cid que está no cartão de cidadão.

Termos em que se mobiliza uma pergunta irrecusável: que serventia tem esta aritmética da portugalidade, senão para alimentar um pueril concurso em que os proponentes exibem as medalhas para saber quem chega mais longe em pergaminhos de portugalidade. Como se isso fizesse alguma diferença. 

Entretanto, li a entrevista de Dino Santiago. O artista justifica a sua extra-portugalidade por conhecer a geografia e as gentes ao percorrer o país de norte a sul, do litoral para o interior, para os concertos que dão a conhecer a sua música. É muito pouco para alicerçar uma portugalidade além da portugalidade da maioria dos portugueses que conhece. Nem sei se isto não é uma espécie de xenofobia invertida.

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