Big Thief, “Grandmother” (live at The Tonight Show Starring Jimmy Fallon), in https://www.youtube.com/watch?v=6RhWupp8fBE
“I hear her voice/calling my name (...)”
No quarto dos arrumos, onde os desastrados são desterrados, tudo é à prova de bala. Os desastrados são capazes de provocar um sismo de proporções bíblicas só por um “leve bater de asas” (como o da borboleta que, depois, vem a causar tufões inomináveis).
Os desastrados são os poliglotas dos cataclismos pessoais. Deles se pode esperar desastres – ou não fossem conhecidos por desastrados – tanta a proficiência para causar acidentes em cadeia a partir de um gesto inicial e simples. É aquele que transporta a bandeja com o seu almoço e o da amiga (ainda há cavalheiros como no império britânico) e, distraído com a companhia e com o privilégio que lhe foi dado de ser tão generoso para a amiga, tropeça no pé distraidamente mal colocado de um colega de trabalho e se estatela no chão, mergulhado na bolonhesa que encimava o esparguete.
Ou o estudante finalista que, em festim noturno depois do jantar de gala, verte acidentalmente um whisky na gravata do professor que, já sabia, faria o exame derradeiro antes de concluir a licenciatura, e tudo porque quis oferecer a hora do momento ao lente e não reparou que, para inclinar o relógio, o mesmo gesto se contagiava ao copo que tinha sido reabastecido uns instantes antes.
Ou o aspirante à promoção a um cargo mais importante na empresa que quis impressionar o conselho de administração e, chamado a pronunciar-se sobre um assunto de sua lavra, querendo discursar com a erudição que não lhe assistia, trouxe para o inventário da fala um amontoado de palavras gongóricas e duas ou três piruetas gramaticais (a terceira ficou por consensualizar entre os presentes), deixando os presentes boquiabertos pela ininteligibilidade do discurso.
Ou o noivo que ficou tão nervoso, tão nervoso, enquanto aguentava a tradicional demora da noiva, que começou a ficar com a bexiga apertada, e cada vez mais, e mais ainda, e ele não se podia ausentar porque a sogra estava sempre a advertir que se a noiva chegasse ao altar e ele estivesse temporariamente ausente a boda ficava sob os auspícios do azar, não tendo, ato contínuo, o noivo aguentado a traição da bexiga urinando abundantemente pelas calças abaixo à vista de todos os convidados.
Ou aquele político apanhado com a boca na mentira, não lhe valendo nem os melhores (ou piores, dependendo da perspetiva) dotes para convencer os demais que não houvera dito o que estava a ser entendido como a prova material de uma mentira, pois as palavras tinham sido retiradas do contexto, “truncadas”, disse ele em sua defesa, para continuar a meter as mãos pelos pés e a cavar ainda mais fundo a cova onde ele e a sua amiga, a mentira, estavam quase a ser sepultados.
Estes desastrados, e outros que não vêm ao caso, pediram proteção de si mesmos à justiça das almas. Queriam ser salvos da elevada propensão para asnear. Não se importavam do desterro para o quarto dos arrumos. Podia ser que aprendessem a arrumar-se.
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