Primal Scream, “Star” (live from Later...with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=H_1dq-1a4HE
“I’m feeling like a little boy.”
O pequeno barco desafia as ondas ainda não invernais, enquanto a manhã se esforça por derrotar a neblina. Três pescadores manobram as artes de pesca perto dos rochedos que separam o mar do areal. O mar ainda não está invernal, mas já mostra as convulsões próprias de quem foi o espelho das habituais tempestades outonais. O mar prepara-se para o seu estado iracundo quando vierem as tempestades afuracanadas que, às vezes, o Inverno transporta para esta latitude.
Os pescadores intrépidos fingem ignorar quão arriscada é a sua demanda. O bote bamboleia, levado pela coreografia do mar que parece discreta, mas que já traz ondas à lapela que, por vezes, deixam a pequena embarcação fora do alcance de quem a vê desde terra. É sinal do risco que os pescadores decidiram assumir para uma safra que não compensa tanta audácia. Se chegasse à fala com os três homens, perguntaria se tinham medido o risco e se a fita métrica que usaram não estava desfigurada. Perguntaria se a safra esperada é a medida para superar os riscos de não voltarem a terra. Perguntaria se perguntaram às suas companheiras se aprovaram esta saída despropositada para um mar já tão assustador. Perguntaria, mas em tom moderado, para que os pescadores de circunstância não sentissem que da minha voz se erguia um muro de censura.
Guardo na memória, em pleno Verão, o aparato da salvação de dois homens que, exatamente na mesma zona, tinham ido à pesca. Num pequeno bote, como o dos homens que ontem desafiavam o azar. O bote estava virado do avesso. Uma senhora ao lado falava para quem a queria ouvir: “vi tudo, veio um golpe de mar e o bote virou ao contrário. Eram dois homens.” Repetia a deixa quando sentia a presença de novos mirones. Dois rapazes, nadadores-salvadores naquela praia, tentavam chegar a um dos homens que havia sido atirado ao mar e se debatia para contrariar a sua força centrífuga. O outro estava desaparecido. Nas notícias do dia seguinte, o veredicto: um homem foi salvo; o outro continuava desaparecido.
Há exemplos formidáveis na literatura que narram os infortúnios de pescadores. Alguns, no exímio estilo realista, descrevem como os homens do mar têm de sair ao mar para trazer pão para a mesa da família. E como, algumas vezes, a família fica sem o homem que trazia o pão, para sempre sepultado no mar distante e profundo onde a embarcação naufragou.
Somos temerários quando não sabemos sopesar o medo; ou, quando transidos pelo medo, superamos os medos e medimos o risco por baixo, com a intencionalidade de quem fecha os olhos e arremete pela loucura. Fechamos os olhos à contingência e, quando damos conta, fomos suas vítimas. Uns, por saírem extemporaneamente para o mar. Outros, por estarem a dormir para a lucidez e serem atraiçoados por um erro de julgamento.
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