24.11.25

XXXVIII

Deftones, “976-EVIL”, in https://www.youtube.com/watch?v=y8Fy2HcuVcU

“It’s like you never had wings.”

Hoje é o dia internacional de qualquer coisa. Porque há sempre alguma coisa digna de celebração, para que a coisa qualquer não caia no esquecimento e se extinga da memória coletiva. É preciso preservar a memória coletiva para que não sejamos reféns da desumanização por mote próprio. É por isso que os dias internacionais reconhecidos por instâncias superiores levam maiúscula no início; devem ser escritos assim, para impedir a banalização dos dias internacionais, como Dia Internacional Disto ou Daquilo.

Hoje pode ser o dia de uma árvore. Há dias foi o dia internacional da Filosofia, precedido pelo dia internacional das casas-de-banho. Hoje é o dia internacional dos irmãos gémeos. Amanhã será a vez do dia internacional contra a violência exercida sobre mulheres – no mesmo dia em que por cá muitos comemoram o dia nacional da reposição da normalidade democrática. Os dias internacionais desmultiplicam-se ao gosto dos fregueses, daqueles que irrompem com a sua voz influente e conseguem marcar lugar no apertado calendário de trezentos e sessenta e cinco dias que cabem num ano, que só habilitaria a existência de trezentas e sessenta e cinco celebrações a propósito de um dia internacional do que quer que seja. 

A páginas tantas, perante as reivindicações galopantes dos mais variados interesses que também queriam ostentar na lapela a medalha de um dia internacional a si consagrado, o mesmo dia passou a acolher mais do que um dia internacional. Hoje, os dias internacionais de qualquer coisa já superam o número de dias que pertencem a um ano. Para quem quiser saber o que se celebra no dia em que se lembra do assunto, a principal organização internacional inventaria os dias internacionais nesta ligação: https://www.un.org/en/observances/list-days-weeks

(Protesto um lamento: no dia do meu aniversário, não há dia internacional de coisa nenhuma.)

Dantes, os dias internacionais eram raros. Mas era na altura em que a democracia ainda não tinha chegado ao domínio dos dias internacionais, antes de se terem tornado pródigas as celebrações de tudo e mais alguma coisa. Assim são satisfeitas vontades plurais. Só as vozes distraídas é que se esquecem de peticionar um dia internacional em seu favor. A igualdade, a maior patranha da democracia, assim exige. Que interessa se, do outro lado do labirinto, se encontra um cartaz gigantesco ostentando a palavra “banalização”?

Há dias, foi o dia internacional do gato preto. Na minha casa vive um gato preto. Mas dispenso o dia internacional que lhe é consagrado. Porque o meu gato preto é o meu gato preto nos restantes trezentos e sessenta e quatro dias do ano. Estas celebrações ocultam a hipocrisia que fica esquecida nos outros dias do ano, que são o avesso do dia internacional do que quer que seja. É a fatura do princípio geral da imediatização de tudo e mais alguma coisa, parente próximo da banalização intrínseca à existência de dias internacionais para tudo e um par de botas.

Não temos outra serventia para o tempo que nos é dedicado.

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