10.10.24

Esticar a corda e depois voltar ao curral

Deftones, “You’ve Seen the Butcher”, in https://www.youtube.com/watch?v=woAcXSMyCEw

(Ainda sobre a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, um diálogo ficcionado entre o encenador e um espectador crítico)

Um ator, num monólogo trespassado pela emoção, recorda a primeira vez que festejou o primeiro de maio. Levado às cavalitas pelo pai, viu algumas estacas onde estavam empaladas cabeças de carneiros. Sá Carneiro era o primeiro-ministro. De acordo com a personagem, os “ideais de abril” tinham sido atraiçoados antes, mas a eleição que empossou Sá Carneiro foi um ultraje, a total corrupção do 25 de abril. Os seus conterrâneos, revolucionários de boa cepa, nascidos e vividos no Alentejo profundo e miserável, lembraram-se de usar o primeiro de maio para protestar contra o primeiro-ministro. Daquela maneira.

- Espectador crítico: A imagem dos carneiros decepados não foi por acaso. A personagem fez questão de nos situar no tempo: o primeiro primeiro de maio de que se lembra foi em 1980, era Sá Carneiro primeiro-ministro. Daí à traição ao 25 de abril e à punição (apenas simbólica, para bem de todos) retratada nas cabeças empaladas dos carneiros, foi mais do que um mero recurso estilístico.

- Encenador: A intensidade dramática tinha de atingir o auge com o monólogo da personagem que faz de toupeira. É o epílogo da peça. Situar a cena no Alentejo, onde ainda medrava um espírito revolucionário condizente com a pureza do 25 de abril, foi o catalisador da intensidade dramática, para prender o espectador. (Em jeito de confissão:  a peça durava há três horas, para prevenir o cansaço era preciso agarrar o espectador até ao fim.)

- Espectador crítico: E quando a toupeira, na sua roupagem de ator com nome próprio, relativizou o cenário macabro das cabeças de carneiros cravadas nas estacas, a ele se referindo, em tom condescendente, como um “cenário carnavalesco”? Ficamos por um cenário carnavalesco, quando a cena – muito bem narrada pelo ator, com a remissão para o consulado de Sá Carneiro – é macabra e reveladora de uma violência potencial?

- Encenador: Não te esqueças, é uma peça de teatro. Não podes levar à letra a linguagem, nem as imagens que se insinuam de uma determinada cena devem ser interpretadas literalmente. De outro modo, o espectador está a cercear a liberdade de expressão do criador da arte – pior: a liberdade de criação artística.

- Espectador crítico: Sou sensível à liberdade criativa e aos múltiplos significados que a linguagem das artes pode conter. Naquela cena, fui mais sensível à mensagem: os revolucionários daquele sítio alentejano, sentindo que o “seu abril” foi traído com a chegada da AD e de Sá Carneiro ao poder, encenaram a degola de carneiros. A imagem dos carneiros decepados em fila é macabra, a imagem em si, sem a associação entre o animal e o nome de Sá Carneiro. A ideia associada à cena não pode ser amortecida na paternalista fórmula de um “cenário carnavalesco”. É violência pura. A violência não quadra com nenhum carnaval. A encenação sinaliza as intenções dos seus autores. Do que encarnou aquela personagem e dos que assinaram o texto que dá corpo à peça.

- Encenador: Temos diferentes perspetivas. Eu tenho a cena à conta da liberdade artística. Repito: a linguagem das artes transcende o sentido literal. O desfile de cabeças decepadas de carneiros pode ser macabro se for descontextualizado. O contexto foi revelado pelo ator. Por dentro desse contexto, não chega a ser macabro. É uma forma radical de um grupo de pessoas manifestar o seu descontentamento com o curso que a política levou depois de a direita ter chegado ao poder, traindo o espírito do 25 de abril. Concluir que essas pessoas degolariam Sá Carneiro se ele aparecesse a jeito, é excessivo. É uma conclusão que fica por tua conta.

- Espectador crítico: Caracterizar as cabeças empaladas de carneiros como “encenação carnavalesca” é uma tentativa de esvaziar a violência que a cena transporta consigo. O facto de o ator o dizer, e no tom condescendente e vagamente paternalista com o que o faz, não é uma confissão por meias palavras? Ao procurar diminuir o alcance da cena, despromovendo-a de macabra a carnavalesca, não está a admitir o exagero e a querer desculpá-lo com truques de retórica?

- Encenador: Insisto no princípio da liberdade artística e da fluidez da linguagem e das imagens usadas na arte. 

- Espectador crítico: Vamos fazer um jogo de espelhos: se a peça fosse encenada por um encenador com visível simpatia pela extrema-direita, e se as cabeças empaladas fossem de animais em representação de imigrantes, qual seria a tua reação?

O encenador teve de atender o telemóvel. “É uma chamada urgente, vou ter de atender. Até à próxima”, acenando em jeito de despedida enquanto se afastava do café. No uso da linguagem flexível que é apanágio das artes, dir-se-ia que recolheu ao curral (sem ofensa).

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