2.10.24

Quando deu conta, a inteligência artificial desmentiu-o sobre a sua pessoa

Fontaines D.C., “Starbuster”, in https://www.youtube.com/watch?v=KHocVRUlvkk

(Baseado numa história que aconteceu)

Tinha tanta a curiosidade para saber como pensa a artificial inteligência que se deitou à exploração, como se fosse um descobridor quinhentista a avançar por territórios ermos. Ao contrário dos seus antecessores, não partiu no vazio. Leu o que pôde antes de se deitar à empreitada.

Com um módico de conhecimentos sobre o assunto, e sentindo-se preparado para colher os frutos do investimento que, a propósito, forçara a desviar-se de algumas pendências em carteira, começou a falar com a inteligência artificial. Percebeu que a inteligência artificial (IA, para os amigos) pode não ter um rosto, mas está longe de ser anónima, tanta a bagagem de conhecimento. Segundo as regras não escritas, é preciso dar de comer (conhecimento) para a IA se alimentar da sua inteligência e devolver a confiança na forma de conhecimento com estrutura. Nós damos o lamiré e a IA faz o resto.

Foi adicionando peças no puzzle de coalescência com a IA. Como se fossem sendo limadas arestas, à medida que a máquina devolvia mais nacos de conhecimento e respondia às solicitações que acrescentavam novas camadas à demanda. Até que ficou satisfeito com o resultado que a IA apresentou. Começou a ler atentamente o arrazoado. Era um produto legítimo, se à coerência fosse perguntar se se sentia ultrajada. Começou a acreditar nos predicados da IA. Até que descobriu, mesmo no final do texto, que a IA descobriu um livro escrito por ele que se juntava à bibliografia a propósito do assunto. Só que ele não tinha escrito aquele livro.

Ele é que estava errado. Se a IA participou que tinha a honra de pertencer ao escol que iluminava de conhecimento o texto acabado de produzir, é porque foi assim. E não era esquecimento: a sua memória estava impecavelmente lubrificada e os mais próximos sempre comentavam como ela era prodigiosa. 

Lutou com denodo contra a IA para a convencer que ele não era autor daquela obra. (Quantos não desdenhariam a oportunidade de passar por autores de uma coisa que não tinham feito?) Se a IA dizia que sim, que ele era o autor, é porque ele estava enganado. Não era obra proscrita, porque ainda não chegara a esse estado de recusa terminante do que escrevera no passado, nem tem o feitio judicioso de escritores que ficaram famosos por terem tanto de genialidade como de irascível. Sabia que não tinha sido o autor do livro, mas a IA insistia em dizer o contrário. 

Foi-se convencendo que a IA não conta mentiras. Dizem por aí que é infalível. Percebeu, então, que a IA sabe mais das nossas vidas do que nós mesmos; era um modo alternativo de atirar o ónus da desinformação para cima de nós. Se calhar – alvitrou, sem desdém e apenas com uma modesta dose de cinismo – deus reincarnou na forma de IA.

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