8.10.24

O PREC e uma barrigada de riso

 

The Horrors, “Mirror’s Image”, in https://www.youtube.com/watch?v=0EOPIi4Q3lM

(Pensamentos avulsos após a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, encenação de Gonçalo Amorim, Teatro Carlos Alberto, 6 de outubro de 2024)

Aprende-se muito com aqueles de quem se discorda. 

O coletivo de autores (ora pois) prometia “problematizar e contrariar a ideia de que [o PREC] foi um período dominado pelo caos e por excessos ideológicos”. A “Comissão de Festas” (o tal coletivo) advertia: o espetáculo era “(...) intimamente parcial. De esquerda. Antirreacionário e antifascista. E, por isso mesmo, é celebratório, festivo e popular.” Quando li a sinopse, abri um espaço obrigatório na agenda para assistir ao exercício encomiástico do PREC, em versão teatralizada. Sempre me interessei pelo período, sobre ele li bastante e considero-o paradigmático dos riscos da polarização política em curso.

Depois de quase três horas e meia de fragmentos que mergulhavam no PREC (“precformances”), dois dias depois ainda estou para perceber se assisti a uma peça de teatro ou a um comício. A peça é sobre a nostalgia do PREC, misturando ingenuidade com um embrião de violência, com uma entrega plena à intervenção política. Não vale a pena voltar à vexato quaestio da fusão entre arte e política, ou de que como a arte pode ser invadida pela ideologia política, tornando-se instrumento da política. Já escrevi no passado e reforço a minha posição a cada peça em que a cumplicidade é visível: a arte expõe-se à (auto) decadência quando é instrumentalizada pela política.

Aprendi com a peça que os que pactuam com o regime em vigor são burgueses, vendidos ao capitalismo (ou por ele hipnotizados) e metidos num largo baú onde medram como “fascistas”. Depois de ter sido informado que fascistas e liberais são da mesma cepa, concluí que se não nos mobilizarmos contra o grande capital que nos oprime somos coniventes com um fascismo disfarçado de democracia. E eles, os saudosistas do PREC, que deixaram passar em branco os mandatos em branco assinados pelo líder do COPCON, eles que usaram a palavra “democracia” à exaustão para, quase no fim, defenderem a “ditadura do proletariado”, num ativismo arrancado ao fundo da alma, ensinaram como a democracia burguesa continua a condenar os explorados a serem explorados. Estes saudosistas do PREC, se pudessem mudar o curso da História, não teriam permitido eleições e teriam demitido (ou condenado a degredo, ou a cárcere) uma parcela considerável do povo. Justamente todo aquele povo que foi condenando os partidos da extrema-esquerda à insignificância em sucessivas eleições. 

A peça incluiu tragédias narradas que tiveram o efeito Photoshop previsível para quem se amordaça num autismo intelectual. Os tribunais populares, porque a justiça que se aprende nas Faculdades de Direito é uma justiça enviesada, malsãmente burguesa, que se inclina sempre a favor dos poderosos. Ou a cena, contada com uma elevada intensidade dramática, do homem que, enquanto rapaz, celebrava o primeiro de maio de 1980 às cavalitas do seu pai, evocando as cabeças de carneiro empaladas como metáfora do que os revolucionários gostariam de fazer ao então primeiro-ministro, Sá Carneiro. E como a personagem ajuizou o desfile de cabeças de carneiro decepadas como uma “encenação carnavalesca”. Poderia discordar e considerar a encenação macabra, ou seria condenado ao açaime se me tivesse levantado em pleno ato para propor a correção do qualificativo? No momento de elevada intensidade dramática, o ator que sai da personagem de toupeira e encarna na pele de ator com um nome próprio desfila os nomes que serviram de inspiração para a “democracia” que o coletivo celebrou na peça. Não faltaram Baader e Meinhof! A páginas tantas, num momento de maior exaltação, não aceitou que lhe digam que é de extrema-esquerda. 

No fim da récita, olhei em redor, com a ajuda das luzes acesas. Os aplausos foram demorados, num abraço excitado do público ao coletivo de atores (com a exceção de meia-dúzia de espectadores que saíram apressados e sem o obrigatório aplauso). Uma das atrizes gritou o pregão sacramental “fascismo nunca mais”, esquecendo-se que a peça passou grande parte do tempo a denunciar o fascismo em que vivemos. O exercício de nostalgia tinha tocado o público profundamente. Este público pratica uma espécie de onanismo intelectual: só adere às artes desde que as artes estejam politicamente comprometidas com aquilo que esse público gosta. Este viés é significativo da sua linhagem democrática.

E se fosse possível um exercício contra-factual, só para perguntar o seguinte: se a extrema-esquerda tivesse vingado no PREC, em que regime político viveríamos? Como não faço parte do proletariado, a liberdade de escrever este texto seria garantida pelos tutores da “ditadura do proletariado”, como foi defendido, sem pejo, num momento da peça?

No intervalo da récita, em conversa com uma conhecida que estranhou a minha presença naquele momento celebratório de “esquerda”, disse-lhe, em tom provocatório: “ainda bem que ainda temos a liberdade de expressão”. Disse-o sem que ela pudesse deduzir que estava a insinuar o contrário. Repito: ainda bem que a liberdade de expressão está enraizada e, apesar de algum salazarismo entranhado até aos ossos, visível em vários quadrantes da sociedade (da direita à esquerda, por mais que a uns e a outros custe admitir), é uma pedra de toque do regime. Disse-o, admito, em tom de provocação e não fiquei propositadamente agarrado a um sussurro, para perceber se nas imediações estava um entusiasmado com o tempo-volta-para-trás do PREC que acusasse o toque. Ela confessou que gosta muito de “teatro comprometido”. Fiquei sem resposta quando lhe perguntei se teria elasticidade mental para assistir a uma peça que encenasse (por exemplo) um texto de Ezra Pound.

Depois de ter assistido a esta peça, puxei a fita atrás. Tivemos muita sorte durante o PREC. Podíamos ter escorregado para um banho de sangue se as coisas não tivessem corrido bem. Ou então foi apenas um episódio de uma ópera bufa que, à distância, provoca uma gargalhada sonora. O coletivo de atores, afinal, fez-me um favor.

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