11.10.24

Troca-tintas

Royal Blood, “Typhoons”, in https://www.youtube.com/watch?v=k9SQ2xfHEiM

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O operário foi acusado de trocar as tintas depois de ter pintado as paredes da casa. O empreiteiro não perdoou o equívoco. “Andas com a cabeça na lua, ou és burro?”, disparou, inquisitivo e boçal, com o tratamento rude que é devido no sector. “Vou descontar no teu salário. O que me custarem as tintas para pintares a casa outra vez e os dias de trabalho que precisares para retificares a asneira”. O rapaz, acabrunhado, ficou em silêncio. Resignado. Ah, mas ninguém saberia porque naquele dia estava com a cabeça na lua. Esse era um prazer que dinheiro nenhum pagava (ao contrário do empreiteiro que, ao que constava, pagava para ter prazer.)

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O antigo presidente da câmara saiu da sabática para concorrer às eleições. Não será candidato pelo partido a que todos estavam habituados. Envelheceu e o envelhecimento radicalizou-o. Alguns cidadãos, ouvidos por um jornal local, estranharam a deriva. Não percebem como se aliou aos radicais. Outros cidadãos, mais realistas, desvalorizaram a manobra. Como o partido do ex-edil renovou a confiança no atual presidente da câmara, o antecessor teve de escolher outro ninho partidário. Encostou-se aos radicais como podia ter-se encostado a outro partido qualquer. O mercado eleitoral não olha a nomes nem se incomoda como o oportunismo. Quem avalia se um troca tintas perde confiança são os eleitores. 

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De repente, a mulher começou a ser evasiva. Distante e fria. Esquecendo-se mais vezes do era habitual à conta de ser estruturalmente distraída. Um dia, tinham combinado um almoço numa esplanada em frente do mar. Ela não apareceu. Não atendeu o telefone. À noite, durante o jantar, era como se o corpo presente estivesse desligado do resto, perfeitamente ausente, indiferente. Quis sair depois de jantar. Sozinha. Só apareceu no início da manhã. Para fazer as malas e comunicar que ia embora. Preferiu não dar justificações. Para não o magoar. Mesmo sabendo que o dano estava feito. 

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Era assíduo nos concertos daquele grupo. Apesar da veterania dos músicos e de eles não renovarem o repertório há quase vinte anos. Já conseguia identificar os rostos habituais nos concertos. Tal como ele, gente de meia-idade, reféns da nostalgia, parados musicalmente no tempo. Não faziam o menor esforço para estarem ao corrente da música que se ia fazendo. Nos concertos, a tribo recuava no tempo e avivava tempos memoráveis. Admitiam que as suas vidas atuais, a caminho do envelhecimento, eram entediantes e banais. Um dia, anotou à margem do dia que ir a todos os concertos daquela banda chamava a decadência para perto. Começou a ouvir a música nova, feita por músicos novos. E nunca mais foi a um concerto da banda veterana. Talvez por coincidência, a banda parou de tocar ao vivo. E nenhum dos seus músicos morreu. 

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