1.8.25

A União Europeia foi “comida” pelos Estados Unidos? (Oito breves notas)

Max Richter, “Non-Eternal”, in https://www.youtube.com/watch?v=RKf7MuDdp4Q

1. Segundo Viktor Orbán, “Trump comeu von der Leyen ao pequeno-almoço” durante as negociações comerciais na Escócia, em 27 de julho. (Se Orbán reproduzisse o linguarejar nativo – o nosso –, diria que a presidente da Comissão foi “comida de cebolada”.) Só uma análise infantil, ou a idolatria, consegue chegar a tamanha conclusão. 

2. Este processo negocial tem de ser entendido para além da espuma do dia. As atenções têm de se virar para a estratégia da estratégia. Trump é um ator político que navega à vista dos efeitos imediatos. Se estivesse vocacionado para uma política (interna e internacional) que enfatizasse os efeitos de longo prazo, não era errático como é. A União Europeia (UE) é mais cuidadosa na configuração das suas políticas. Pode ter de lidar com diferentes sensibilidades nacionais, o que muitas vezes a obriga a adotar compromissos minimalistas; mas também porque, na articulação entre as instituições envolvidas no processo de decisão, procura orientar a estratégia política para obter proveitos no médio e no longo prazo. A União tem demonstrado, em várias iniciativas políticas, que é preferível sacrificar o curto prazo em favor dos efeitos diferidos no tempo. A espuma dos dias e a aparência de que a UE saiu perdedora neste processo negocial não consideram os efeitos significativos que se esperam deste acordo comercial.

3. Uma negociação internacional não é o retrato de um viril braço de ferro nem se enquadra na correspondente imagem marialva que apura quem sai por cima. Perfilhar esta interpretação não só passa ao lado da dinâmica das negociações internacionais como reproduz uma visão pueril, talvez condicionada por uma abordagem eivada de masculinidade (tóxica). Quem negoceia para dobrar o braço da outra parte, não está comprometido com uma negociação autêntica; limita-se a impor a sua vontade à outra parte. Não passa de uma ostentação de poder.

4. Em qualquer negociação, por vezes é preferível aceitar a lógica da limitação de danos. Um mal menor, e com (alguma) garantia de cumprimento, é preferível à incerteza desenfreada, o pior dos males. Tanto os EUA como a UE têm a perder com a manutenção da beligerância comercial, ou com as constantes ameaças de recurso à bagagem de armas protecionistas, seguida das medidas retaliatórias consequentes. O comportamento racional está do lado de quem recusa a incerteza inerente a uma guerra comercial sem quartel. Se, do outro lado, está um parceiro que não receia obter ganhos de causa à custa da ameaça e da pressão e do sequestro da vontade, os custos da contingência negocial correm por sua conta.

5. Alguns críticos do resultado destas negociais propõem uma leitura simbólica do acordo alcançado. Destacam a assimetria visível, manifesta nas muitas concessões feitas pela UE sem que os EUA tenham cedido em medida equivalente. Se a UE fez mais concessões, isso enfraquece-a? Parece que é, antes, um sinal da assimetria negocial e das diferentes estratégias adotadas (competitiva e hostil pelos EUA; cooperativa e construtiva pela UE). Só quem não entende os rudimentos da negociação internacional é que pode associar a fraqueza da UE às maiores cedências que fez.

6. Recomenda-se o reconhecimento de outros efeitos simbólicos que passaram à margem do radar dominante: foi a UE que se empenhou mais em fechar o acordo, logo, foi a UE que adotou o comportamento construtivo – daí as concessões e a ausência delas da parte dos EUA. É à Europa que se fica a dever o privilegiar de uma via negocial por oposição à ameaça de retrocesso vertida no unilateralismo de quem, à partida, ameaçou sequestrar o processo negocial. É à UE que se fica a dever o travão ao abismo do protecionismo, com todos os ganhos (económicos e não económicos) associados a esse resultado, até para quem (os EUA) estava menos comprometido em alcançar esta solução negociada. Não se diga desta postura da UE que é reveladora da sua fraqueza.

7. Ler “estados de espírito” (como alguns, possivelmente especialistas em decifrar expressões faciais, fizeram) pode ser um equívoco. O rosto fechado de Ursula von der Leyen, a contrastar com o ar folgazão de Trump (e novidades?), não é o barómetro fidedigno do processo negocial e do seu resultado e dos consequentes “estados de espírito”. Trump tem-se destacado pela rudeza que dedica a congéneres seus, o que pode ser intimidatório. Já alguém se perguntou por que estava von der Leyen desconfortável perante a bazófia e a mal disfarçada má educação do presidente dos EUA – e que tenha sido esse o fator explicativo do seu ar combalido?

8. O acordo é assimétrico – e depois? Talvez seja a materialização de uma espécie de psicologia invertida (em sentido metafórico): quem mais cedeu foi o parceiro negocial que, à partida, está numa posição competitiva privilegiada; ou seja, quem mais tem a perder no plano da competitividade internacional é que assumiu a posição hostil e ameaçou com a bomba retardadora do protecionismo. Já a UE deu-se ao luxo de sujeitar as suas exportações para os EUA a direitos aduaneiros de 15% sem prejudicar o sucesso dessas exportações. Afinal, a UE foi forte pela disponibilidade em fazer concessões. O elo fraco foi a outra parte. Para grande convulsão das leituras eivadas de virilidade máscula, virando essa masculinidade do avesso e tornando-a, definitivamente, inaplicável como grelha interpretativa das negociações internacionais. 

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