19.8.25

Também há americanos sem Coca-Cola (short stories #497)

The Cure, “Trust” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=iXNBF6yPkas

Beber Coca-Cola participa da identidade comum de um norte-americano (Alexandre Lefebvre, “Como Viver Como um Liberal”, Gradiva, 2025). Como não bebo Coca-Cola porque não aprecio o refrigerante, se tivesse a nacionalidade dos Estados Unidos a minha identidade seria amputada? Não se estranhe que uma característica tão comezinha (só o facto de a reconhecer como característica pode ser controverso) represente um fator de identidade nacional. Nela participa uma amálgama de fatores que retratam a cultura de um povo. A gastronomia (neste caso, uma bebida que até se emancipou dos cânones gastronómicos) é um ingrediente dessa identidade. Pode ser a baleia fermentada na Islândia, a tarte de rim na Inglaterra, a cobra em certos países africanos, toda uma sorte de gafanhotos e insetos em países asiáticos, um queijo sardo que fermenta em larvas, as tripas no Porto. Alguns casos são traços de idiossincrasia nacional, outros têm delimitação regional. As pessoas reúnem-se à volta da mesa, na família ou entre amigos, e comem e bebem o que for típico. Esse é um fator que cimenta os laços. E se um desses elementos estiver ausente (porque uma alergia impede de consumir esse alimento, ou apenas porque a pessoa não o consegue ingerir), a identidade fica prejudicada? Um norte-americano é menos norte-americano se não consumir Coca-Cola? Eu sou menos português – ou, vá lá, portuense – por não conseguir comer tripas à moda do Porto? A comida e a bebida pertencem ao património cultural de um lugar. Quem consome esses alimentos e essas bebidas soma fatores de identidade comum. Não se pode fazer uma operação de sinal inverso no caso contrário. Um norte-americano que não goste de beber Coca-Cola não se torna menos norte-americano. A identidade é o somatório de múltiplos fatores. Ainda bem que há norte-americanos que não gastam um dólar em Coca-Cola. E ainda bem que continuo a ser portuense, apesar de não gostar de tripas à moda do Porto.

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