Deftones, “Bored”, in https://www.youtube.com/watch?v=-WdYo3WlETY
Se aparece um porco numa baía, não sendo o bácoro fauna habitual dos areais, o fenómeno é suficiente para mudar a toponímia e convencionar que aquela passa a ser a Baía dos Porcos?
Não tenho por hábito comentar comentários sobre o que escrevo. Não o faço por arrogância intelectual, como se os comentários merecessem apenas indiferença. Pelo que vou lendo, as caixas de comentários em jornais são locais pouco recomendáveis, prosperando o argumento vulcânico e a ofensa, que depressa se constitui em arsenal para desqualificar os argumentos criticados. São úberes da desrazão. Por isso prefiro não responder aos comentários. Não ignoro; apenas não respondo.
Anteontem foi publicado, na edição online do Público, um artigo de opinião meu intitulado “O naufrágio da civilização (contra a fascização de quase tudo)”. Logo à partida, estabeleci as minhas premissas: “[o]s partidos de extrema-direita, ou de direita radical, (...) que transpiram fascismo ou são portadores de uma retórica que se aproxima do fascismo (...) são miasmas que devem ser combatidos com as ferramentas da democracia e da cidadania.” Esta premissa serviu como alerta para os efeitos contraproducentes da tendência de “fascização de tudo”. A prova está no crescimento eleitoral dos partidos que reproduzem ou se aproximam de uma retórica neofascista.
Na caixa dos comentários, prosperou a tresleitura dos meus argumentos. Por exemplo: “[c]onversa para tótós, velha como o fascismo e por ele aclamada, ela sim instrumental para banalizar e adormecer consciências democráticas e lançar a confusão”, o que me encostou ao que, no final do artigo de opinião, considerei ser o anátema dos ávidos antifascistas de plantão: “quem não se revê no fascismo e não o denuncia em todas as suas manifestações é dele cúmplice, sendo contaminado por essa lama hedionda que vem alastrando no tempo e no espaço. Ou se é ativista na denúncia do fascismo latente, ou se é fascista por omissão.”
Entre lampejos de alucinação (“(...) agora subverte-se a imprensa e entrega-se a economia aos compinchas, para que a população não saiba de nada, que alguns votos contem mais que outros e que se vote como manda o patrão”), passando pelas conclusões de um comentador que introduzem um tema que não foi objeto do texto comentado (“a culpa da vaga neofascista (...) é de quem a combate. Já conhecemos essa teoria, só falta dizer que somos todos woke...”), aos meus comentadores não faltou a sugestão de que sou intérprete do branqueamento do neofascismo por omissão. Muito embora tenha argumentado, com a clareza que me é possível, que estes partidos que se aproximam perigosamente de uma retórica fascista representam uma “(...) deriva grotesca, (...) um retrocesso civilizacional, ocupando a trincheira da denegação da História; e conspurcando o espaço demoliberal que medrou depois da derrota dos totalitarismos em 1945 e em 1989.”
Talvez esta derradeira alusão (à derrota do totalitarismo comunista, que se iniciou com a queda do muro de Berlim) explique uma certa “afeção” dos críticos comentadores, que talvez tenham acusado as dores de quem não se revê no meu diagnóstico por considerarem que a ideologia que personifica esse totalitarismo tem legitimidade para ser associada à ideia de democracia. Não lhes interessa reconhecer que não me revejo, de todo nem em parte nenhuma, nestes perigosos partidos de extrema-direita que têm vindo a cavalgar a popularidade nas preferências dos eleitores. Só lhes interessa a defesa da sua causa (o que é legítimo), mesmo que para o efeito tresleiam o que escrevi e me imputem o que não defendi.
No artigo de opinião, não falei uma única vez da extrema-esquerda (a não ser para identificar a existência de populismos de esquerda radical, que os há) e não sugeri a autocensura dos ativistas antifascistas. Mesmo assim, depois de um comentador cripticamente me atribuir a proclamação “[e]squerda radical é tudo aquilo que me desagrada”, um outro comentador endereçou-me a seguinte pergunta de retórica: “[e]ntão dizer não às sombras do fascismo que nos escurecem os dias é arrogância intelectual e extremismo de esquerda?! Está bonito isto...” O que defendi, imputando essa arrogância intelectual, foi num contexto específico que foi ignorado pelo comentador: a arrogância, aliás, a postura antidemocrática, de quem questiona os resultados das eleições e defende uma assimetria entre os eleitores, encostando os eleitores de partidos de extrema-direita a um défice cognitivo. Se isto não é arrogância...
Em lugar algum do texto sugeri uma modalidade de (auto)censura aos diligentes antifascistas de serviço. Apenas argumentei (a opinião ainda é livre) que este ativismo antifascista, que atribui o rótulo de "fascismo" a tudo e a qualquer coisa, tem efeitos contraproducentes, comprovados pela paisagem eleitoral pelo mundo fora. Daí a perguntar, como fez uma comentadora, “vou-me calar? Nem pensar nisso é bom, senhor articulista Paulo Vila Maior...”, como se tivesse sido isso que argumentei, é próprio de quem está acossado por fantasmas e depressa escorrega para conclusões infundamentadas.
O coitado do reco, talvez desnorteado, ou apenas querendo pisar terrenos que não pertencem à sua coutada, arrimou à baía. Depressa os serviçais das convenções quiseram enlamear aquela baía, rebatizando-a como Baía dos Porcos. Contaminados pela febre das generalizações, nem deram conta que um porco não constitui uma vara. O meu artigo de opinião pretendia ser uma modesta chamada de atenção para os efeitos adversos do febril ativismo antifascista. A colheita de comentários é a melhor prova da sua utilidade. Sem saberem, ou sem talvez o perceberem, os meus comentadores acabaram por validar o principal argumento exposto no artigo de opinião.
(Romper o hábito de não responder aos comentadores, e de forma delongada, talvez se explique pela época estival que atravessamos.)
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