15.8.25

Corpo inteiro (short stories #496)

The Murder Capital, “Love of Country” (live in Sofia), in https://www.youtube.com/watch?v=0tHqHNU7aBU  

          O corpo nunca é parcial. Inteiro, desafia as tempestades que o podem derrubar. Sobe ao palco quando muitos pecam pelo silêncio. O corpo é inteiro quando a vontade não se dissipa contra o domínio do medo. Na sua inteireza, o corpo avança pelo tempo fora sem se intimidar com as sombras medonhas que colonizam a claridade. De corpo inteiro, sou embaixador de mim mesmo, mecenas do hedonismo, procurador das tormentas que adestram o corpo, entregando-o com demorado prazo de validade ao suplício da decadência. O corpo inteiro abre os braços e não recusa sobressaltos. Atira-se de cabeça, sem temer que os sobressaltos estejam apetrechados de punhais afiados contra o corpo que contra eles investe. O corpo inteiro dispensa a fala. Tutela um silêncio que contraria as palavras que, de tanto ditas, se gastam na sua usura. Há pessoas que falam da linguagem corporal, outras mostram as credenciais e dizem-se peritas na especialidade. O que interessa é falar-se em linguagem corporal (e não a ciência – se é que ela existe – da linguagem corporal). Só podemos falar com o corpo se ele for uma entrega sem remissões. O corpo inteiro não procura absolvição. Ignora os dedos apontados pelos sacerdotes da moral que nasceram envergonhados com o próprio corpo. Procura falar com o discreto gesticular como se fossem estrofes desarmadilhadas. Ou pode atuar através de metáforas. Um corpo inteiro é dedicado. A dedicação exige muito. Assim como acontece com o corpo, a dedicação não pode ficar pela metade. Ou deixa de ser dedicação. O corpo que finge ser inteiro arruína a inteireza dos corpos que não se escondem em evasivas. A propagação da mentira sistemática é um véu plúmbeo que se abate sobre o corpo. É difícil apurar as suas intenções. Pior do que um corpo intencionalmente pela metade, é um corpo que finge ser inteiro.

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