13.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 14)

The XX, “On Hold”, in https://www.youtube.com/watch?v=blJKoXWlqJk

O que custa a erguer desaba num instante quando a confiança se evapora. Este era o diagnóstico da guerra comercial iniciada pelo presidente da Samolândia. Porque, nos episódios que se seguiram, o seu comportamento foi errático. Ora anunciava, com um desbragamento peculiar, que as “tarifas” não tinham marcha-atrás possível; ora metia uma tímida marcha-atrás ao anunciar, em pose munífica, que as “tarifas” estavam suspensas por noventa dias; ora começou a decretar exceções em cima das exceções, ainda durante o período da suspensão das “tarifas”.

A desorientação dominava os comportamentos. A reboque da desorientação, os países não sabiam como reagir. Viviam num estado de constante adiamento. Não conseguiam perceber se a arrogância da Samolândia era apenas uma emboscada, cerceando a margem de manobra em negociações que estivessem para acontecer. Não sabiam se a suspensão das “tarifas” seria por noventa dias; ou se, num golpe de asa correspondente a uma variação de humor, o líder da Samolândia anunciaria o encurtamento da suspensão, apanhando o resto do mundo de surpresa; ou se o comportamento errático teria expressão num tratamento diferenciado dos parceiros comerciais à conta de fatores tão diversos como o interesse comercial de um país, a proximidade diplomática com outro país, ou a simpatia do momento com um líder de um determinado país.

Confirmavam-se as advertências de muitos peritos: adicionar incerteza ao palco mundial era desfavorável para todos. Ou quase todos. Durante os noventa dias da suspensão das “tarifas”, vários países alteraram as estratégias comerciais. Como não podiam contar com a estabilidade comportamental da Samolândia, e não podiam adivinhar o que iria acontecer quando a suspensão das “tarifas” se esgotasse, estes países começaram a desviar as importações. Em vez de continuarem a importar da Samolândia, começaram a importar bens semelhantes de outros países. Nos casos em que o desvio de consumo era feito em desfavor dos consumidores (porque correspondia a uma perda de qualidade e de preço), as autoridades tiveram o cuidado de acrescentar uma campanha de informação a esclarecer os cidadãos sobre o porquê da preferência de consumo pelas importações de outros países. A preocupação pedagógica era um trunfo a favor da transparência do processo político, o que rareia mesmo em democracias maduras. 

Os países que obtinham um ganho de causa com a reorientação das estratégias comerciais acabaram por tirar partido do protecionismo decretado pela Samolândia. Todavia, não podiam confiar que esse privilégio se mantivesse durante muito tempo, porque o espectro das “tarifas”, e da sua aplicação imoderada e sem representação em critérios objetivos e racionais, continuava a pesar sobre o mundo inteiro. 

A indeterminação assustava a economia internacional, desde as empresas que participam no comércio internacional até aos governos que, nesta altura, procuravam minimizar os danos causados pelas “tarifas” e pela incerteza que continuava a pairar. Era como se navegassem por estima, desprovidos de instrumentos de localização, seguindo o faro do instinto. O que prevalecia era uma sensação de desconforto própria de quem não tem sequer um mapa para se mover num território desconhecido. Era a pior altura para correr riscos. Os países jogavam todos à defesa, cientes da multiplicação de atos de desconfiança causados por manifestações de desconfiança prévias.

Os danos na confiança recíproca prometiam prolongar-se no tempo. Primeiro, o presidente da Samolândia continuava indiferente aos outros países e à estabilidade internacional, apostando no isolacionismo que não era compatível com a História recente do país e com as suas responsabilidades internacionais. Segundo, porque as desconfianças acumuladas estavam profundamente tatuadas nos países, que não conseguiam reatar a habitual confiança que os mobilizava na relação recíproca.

Estimava-se que o restabelecimento das condições que existiam antes da guerra comercial iniciada pelo presidente da Samolândia demorasse muito anos. Esse era o pior legado do ensimesmar comercial da Samolândia. Ou, num inesperado lampejo, talvez esta fosse a oportunidade para resgatar o livre comércio das garras da Samolândia.

Sem comentários: