9.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 12)

Kiasmos, “Looped” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=pRbInltGMaA

Não era só o embargo internacional que incomodava a Samolândia. Um movimento cidadão começou a fervilhar também em partes da Samolândia. Era o sinal de que a democracia ainda estava amadurecida, com a oposição ao governo a fazer o seu papel de oposição e certos grupos de interesse prejudicados pelas “tarifas” a manifestarem o protesto. 

Um movimento inorgânico de cidadãos começou a fazer-se notar. Rompendo o véu de ignorância que seria tão conveniente ao presidente da Samolândia, estes cidadãos ativaram a condição cidadã e passaram ao protesto – primeiro nas ruas, depois como ação concertada, na forma de um embargo cidadão interno.

Não foram no canto da sereia do líder da Samolândia. Não se deixaram convencer pela retórica unilateral e messiânica como legitimação da guerra comercial que o país iniciou. Aos primeiros sintomas desfavoráveis após a ativação das “tarifas”, perceberam a escala de efeitos adversos: os preços das mercadorias importadas subiram; em alguns casos, subiram tanto que a sua compra tornou-se proibitiva; alguns produtos de empresas da Samolândia ficaram mais caros, porque na sua produção entram matérias-primas compradas no estrangeiro que, por ação das “tarifas”, encarecem; o desvio de consumo do “made in” países estrangeiros para “made in” Samolândia correspondeu a uma perda de qualidade do consumo; a inflação começou a morder no bem-estar dos consumidores, sem que os salários tenham acompanhado o aumento da inflação. A conjugação destes sintomas foi o gatilho para a insatisfação que motivou protestos de rua que se foram tornando mais assíduos e massificados. Cada vez mais gente entendia que as “tarifas” com o cunho do líder da Samolândia tinham degradado a situação económica e social.

Por mais que o presidente da Samolândia fosse conhecido pela teimosa, a certa altura não podia continuar a ser insensível ao clamor popular. As avenidas das cidades enchiam-se com vozes de protesto que exigiam a marcha-atrás na guerra comercial. Os conselheiros mais próximos do presidente começaram a ecoar palavras de preocupação. Por mais messiânico que o presidente quisesse ser, as dores do protecionismo já eram sentidas nos bolsos das pessoas – e bem no fundo dos bolsos. As suas justificações começaram a esgotar o capital de aceitação. Ainda que o presidente da Samolândia se desdobrasse em explicações amadoras e pedisse paciência aos cidadãos – dizia, a partir de certa altura: os benefícios das “tarifas” só vão ser sentidos daqui a algum tempo –, as pessoas queriam saber quando era “daqui a algum tempo”. Perante as evasivas e as omissões, esgotaram a paciência. 

Para muitas pessoas, a guerra comercial era um capricho do presidente da Samolândia. À falta de uma fundamentação convincente e na ausência de resultados que atestassem a bondade das “tarifas”, atestavam os seus efeitos contraproducentes. Pairava no ar uma sensação de frustração pelas perdas de bem-estar que se generalizavam (com a exceção de um reduto de pessoas próximas ao líder da Samolândia que conseguiam extrair ganhos de causa – ver episódio 13). Nas ruas onde ecoavam os protestos, a guerra comercial perdera legitimidade. Era uma guerra fratricida (ao nível internacional) e punitiva (internamente).

O líder da Samolândia teimou em resistir. Recusou receber representantes dos movimentos de cidadãos que, entretanto, tinham deixado de ser inorgânicos. Argumentou que a sua legitimidade democrática estava blindada pelo poder do voto que o elegeu. Continuou a teimar na aplicação das “tarifas”, indiferente aos protestos que se massificavam e tornavam mais assíduos, sem perceber como era responsável pelo estilhaçar da democracia e pela destruição da economia. E ignorando os ventos da História: tantas vezes a indiferença dos líderes pelo clamor popular terminou com a sua deposição, às vezes violenta.

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