Peter Murphy, “The Artroom Wonder”, in https://www.youtube.com/watch?v=3nJHniUFAdQ
Os outros países, os que tinham sido vítimas involuntárias das “tarifas” desenfreadas da Samolândia, perceberam que não podiam cair no engodo. Numa fase inicial, uns poucos meses depois de ter sido anunciada a guerra comercial, estes países estavam em terra de ninguém, desorientados, deixando vir ao de cima reações espontâneas que ateavam a guerra comercial através de retaliações.
Ao fim de algum tempo, perante a política errática do presidente da Samolândia, com os avanços e recuos e hesitações e exceções que depois se excecionavam a si mesmas, alguns países começaram a reorganizar as ideias. Depois de ameaçarem com retaliações contra a Samolândia, entretanto suspensas porque muitas das “tarifas” bombasticamente anunciadas foram suspensas um momento anterior, países com maior lucidez perceberam que a guerra comercial era uma crise. E, como acontece com quase todas as crises, esta crise continha a sua própria oportunidade.
Se, no início da crise, fervilhava o temor de que o mundo podia cair nas trevas da autarcia, aos poucos uma mão-cheia de países concebeu-a como um desafio de onde seria possível extrair vantagens. Este desafio parecia paradoxal. Os primeiros tempos foram de corrida às “tarifas”, mas foi quando a lucidez hibernou porque ninguém estava preparado para a contingência da guerra comercial – as pessoas não levaram a sério as promessas eleitorais de quem venceu as eleições na Samolândia, foram traídas por um erro de julgamento.
A ideia começou a medrar e a passar de boca em boca, de país em país. Em vez de caírem na cilada da guerra comercial, era preferível isolar este país – no fundo, fazendo a vontade ao seu ensimesmado presidente. Ninguém duvidava da importância da Samolândia para o comércio internacional; era onde vários países concentravam uma parte importante das exportações, elas podiam ser vítimas das dificuldades de acesso àquele mercado devido às “tarifas”. Mas havia muito mais mercado fora da Samolândia. Isolar a Samolândia na pequenez das suas “tarifas”, sem que os outros países dessem continuidade à guerra comercial tão desejada pelo presidente daquele país, parecia ser a solução para contornar uma crise que os restantes países não tinham alimentado.
Em vez da cilada do protecionismo, os outros países perceberam que esta era uma oportunidade para reforçar os laços comerciais recíprocos. Ao início, a tendência foi assumida na estreiteza de acordos bilaterais, formais ou informais. Aos poucos, a dinâmica de liberalização das trocas que afastava a economia mundial de um afundamento nas trevas alargou-se. Do âmbito bilateral passou-se ao âmbito regional, que depressa ateou o âmbito multilateral. Os restantes países deixavam a Samolândia a falar sozinha a linguagem retrógrada do protecionismo, mergulhada numa guerra comercial contra ninguém – numa guerra comercial cujas maiores vítimas eram as empresas e os cidadãos da Samolândia.
No rescaldo da guerra comercial, o mundo nunca conheceu tanta liberalização comercial. As “tarifas” do presidente da Samolândia foram o seu próprio antídoto. A lucidez prosperou depois de os restantes países terem esconjurado o espectro do protecionismo, deixando a Samolândia isolada no palco da guerra comercial que ela própria montou. As pressões internas neste país cresciam todos os dias. O presidente, mergulhado numa estrénua teimosia, não se sentia acossado. Continuava agarrado às credenciais democráticas outorgadas pelos resultados eleitorais, desconhecendo que o mandato dos políticos é constantemente escrutinado entre eleições. Foi teimando e teimando nas “tarifas”, sem os resultados que esperava. Mas não podia recuar, pois a sua viril condição é incompatível com o reconhecimento de erros e sua sucessiva reparação.
Até que, alguns anos depois, e com a adesão descomprometida dos outros países à liberalização do comércio internacional sem precedentes, o Comité Nobel deu a estocada final: alguém propôs o presidente da Samolândia para prémio Nobel da Economia. A fundamentação não deixava de ser um sublime ato de cinismo. Para os peritos, foi a guerra comercial protagonizada pelo presidente da Samolândia que criou a oportunidade para a tanta latitude de que as trocas comerciais beneficiavam agora.
O tremendo ego do presidente da Samolândia impediu-o de recusar o prémio. Só não sabia (ele e os seus conselheiros da área) que discurso escrever por ocasião da entrega solene do prémio sem que lhe caíssem os dentes todos.
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