6.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 9)

The Limiñanas, “Salvation” (Live Cuts at Abbey Road), in https://www.youtube.com/watch?v=3NJC20AeU0w

Alguém disse: “é salutar quando a cidadania é ativada e se substitui à inércia do processo político, colonizado por interesses alheios ao interesse comum, à medida que a cerviz dos políticos se inclina em favores que passam debaixo da mesa, sem escrutínio dos órgãos que materializam a democracia.” E depois contextualizou: havia cada vez mais países a retaliarem espontaneamente contra o protecionismo absurdo da Samolândia. 

Não era uma retaliação costurada pelos mecanismos oficiais, como uma “tarifa” aplicada para invalidar os efeitos de uma “tarifa” antes imposta por outro país – como se fosse possível um mal compensar o dano causado por um mal anterior. Desta vez, a cidadania informada ultrapassava as limitações do processo político. Um pouco por todo o lado, em reação às “tarifas” absurdas ativadas pela Samolândia, cada vez mais cidadãos se recusavam a comprar mercadoria expedida por empresas da Samolândia. Era um embargo cidadão, a coragem que se suplantava ao processo político timorato que retaliava para espalhar os danos do protecionismo, ou refreava a vingança mas ficava à mercê da emboscada do país que deu o primeiro passo para o abismo protecionista.

As pessoas informavam-se. Deploravam a arrogância do líder da Samolândia e percebiam o mal que a embriaguez de “tarifas” ia causar. Foram passando da quase indiferença inicial ao atestado de pária que aos poucos muitos foram colando ao líder daquele país. Reconheciam que as empresas da Samolândia não podiam ser culpadas pela corrida às “tarifas” (exceto aquelas que andaram, em público ou às escondidas, a mendigar “tarifas”), mas os cidadãos informados tinham de atuar. Alguém tinha de ser chamado à responsabilidade. Na impossibilidade de cativar a atenção do presidente da Samolândia, teimosamente convencido da bondade da guerra comercial, estes cidadãos ativos endossaram a responsabilidade para as empresas da Samolândia. Admitiam que a vingança é feia, mas às vezes é o último recurso. Elas que exercessem pressão sobre as autoridades políticas da Samolândia para recuarem na guerra comercial.

Era tanta a responsabilidade cívica, que estes cidadãos estavam dispostos a substituir o consumo de mercadorias fabricadas na Samolândia por produtos equivalentes importados de qualquer outro lugar. Nem que tivessem de pagar mais caro. Nem que tivessem de sacrificar a qualidade. Os tempos eram diferentes, numa rotura com a normalidade a que se tinham habituado, intrínseca à existência de um grande mercado mundial onde vingavam os mais competentes.

A Samolândia estava de pantanas. Se o presidente ofereceu, como um dos pretextos para as “tarifas”, a correção do desequilíbrio entre importações e exportações, o embargo cívico arruinou a balança comercial. As exportações da Samolândia caíram a pique e, pese embora as “tarifas”, as importações continuavam a entrar no país.

No meio da desorientação, e cada vez mais acossado pela pressão das empresas que eram vítimas do embargo cidadão, o presidente da Samolândia apertou a goela do protecionismo: voltou à escalada das “tarifas”, aumentando-as. Ao mesmo tempo, foi insinuando que os governos dos países mais ativos no embargo cidadão deviam educar os súbditos, como se pudessem ordenar a retratação de intenções e os obrigassem a comprar mercadoria expedida pela Samolândia. Desconfiava-se que a diplomacia da Samolândia se desdobrava em esforços invisíveis para influenciar os governos destes países. 

Até que alguém quis lembrar o presidente da Samolândia o significado de ingerência. Indiferente ao conceito, colando ao peito o crachá “MAGA”, desviou o assunto, reconhecendo: “homessa, então no passado a Samolândia não se fartou de ingerir e poucos se importaram?” Como último recurso, um funcionário júnior da casa civil da presidência abriu timidamente a boca para evocar outras experiências totalitárias, entretanto desaparecidas da geografia do mundo, de como deram mau resultado e constituíram soezes atentados à liberdade.

Iracundo, o presidente da Samolândia despediu o rapaz. 

Sem comentários: