7.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 10)

Deftones, “Hole in the Earth”, in https://www.youtube.com/watch?v=LnI_QIXU058

O sismo das “tarifas” tinha réplicas políticas por todo o lado. Metido no lodo protecionista, o líder da Samolândia passara a ser o antídoto oferecido às eleições noutros países. 

Era um efeito paradoxal: os descendentes políticos do presidente da Samolândia prosperavam com a velocidade com que se propagam vírus, numa nova internacional ideológica que pretendia varrer da paisagem política os governos que tivessem orientação política antagónica. Fora da Samolândia começava a medrar a repulsa pelo que o presidente daquele país e a sua linhagem ideológica representavam. Aos poucos, os seguidores da causa, acriticamente aplaudindo tudo e um par de botas que o presidente da Samolândia decidisse, iam perdendo eleições. Perdiam eleições porque a maioria dos eleitores desviava votos a favor da alternativa política antagónica do candidato politicamente herdeiro do líder da Samolândia. 

Estas ondas de choque não demoveram o presidente da Samolândia. Convencido da superioridade e da infabilidade das suas decisões, por mais que muitas delas fossem erráticas, mantinha-se fiel aos seus pergaminhos. Por isso não abandonou as “tarifas” até quando alguns conselheiros o aconselharam a repensar a deriva do protecionismo comercial. Esta foi uma obstinação entre muitas outras. Fora da Samolândia, para além do recurso ao embargo cidadão, muitas pessoas, cada vez em maior número, decifraram os danos causados pelas “tarifas”. Responsabilizaram o líder da Samolândia por esses danos. E vingaram-se, num embargo eleitoral, nos candidatos que prometiam a importação das políticas erráticas do presidente da Samolândia.

Mas as ondas de choque não pararam no momento em que cada um dos promitentes sósias do presidente da Samolândia perdeu eleições ou perdeu votos em relação a eleições anteriores. Ao início, esses sósias estavam renitentes em desafiar o guru político, engolindo as derrotas eleitorais em seco e não admitindo uma relação de causa e efeito entre essas derrotas e a vacinação da maioria do eleitorado contra a agenda unilateral do presidente da Samolândia. 

Com a sucessão de desgostos eleitorais, os descendentes ideológicos do líder da Samolândia começaram a pensar duas vezes. Por maior que fosse a lealdade perante quem os inspirava, não podiam adiar o desconforto. A certa altura, começaram a admitir que as derrotas eleitorais eram, em parte, motivadas pela influência negativa que o presidente da Samolândia exercia. Por mais que lhes custasse a admitir a soberania popular sublimada no momento em que os eleitores depositam os votos nas urnas (alguns desesperados acusaram o eleitorado de ignorância; e outros houve que, em deslizes reveladores, questionaram a legitimidade dos resultados das eleições), aos poucos libertaram-se das amarras da lealdade acrítica e começaram a duvidar da viabilidade das políticas inspiradas na agenda dogmática do presidente da Samolândia e na sua retórica musculada.

Os possíveis descendentes que mais depressa desertaram protestavam, timidamente, contra os dogmas e a obstinação do líder da Samolândia. Os mais ousados levantaram a voz contra a influência do inspirador, reconhecendo que era negativa e atuava a favor dos candidatos e das forças políticas que se situavam fora da esfera de influência ideológica de quem governava a Samolândia. Algumas destas lealdades começaram a estilhaçar. Afinal, o cimento que sedimentava uma internacional ideológica de sentido contrário a outra internacional de antanho (entretanto extinta) não aguentou as primeiras provações. 

Em muitos países, os cidadãos tiveram a palavra final e condenaram à derrota os descendentes ideológicos do líder da Samolândia. Os seus seguidores perdiam gás ao ter sido ativado o embargo eleitoral ditado pela reanimação dos cidadãos, sensíveis ao espectro do presidente da Samolândia e aos danos que estava a causar no bem-estar. E a possível internacional abortou antes de se ter materializado.

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