5.5.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 8)

The Prodigy, “Smack My Bitch Up” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OjakbV29nyE

A fortaleza do protecionismo abria brechas. Depois da bazófia inicial, com triunfantes entradas em cena do líder da Samolândia a jurar uma tempestade “tarifária” para acentuar a hegemonia do país, as exceções começaram a sair a conta-gotas. Afinal as “tarifas” aplicavam-se a tudo e a todos menos a este ou àquele produto, menos a este ou àquele país – e mais um, e outro, e outro ainda. A bravata das “tarifas” começava a esmorecer, à medida que as exceções eram necessárias para, afinal, não atirar a Samolândia para os prejuízos pela guerra comercial a que deu origem.

Os outros países copiaram a estratégia. Para exceção, outra exceção recíproca. A cada exceção que se soerguia, o reconhecimento de que os obstáculos às trocas comerciais eram contraproducentes para o país que levantava as barreiras alfandegárias. O líder da Samolândia não aparecia a admitir que teria de haver esta ou aquela exceção – mandava os lugares-tenentes, para não destruir a imagem de voluntarioso engenheiro de uma nova ordem que garantia o resgate da grandeza possivelmente perdida, entretanto, do país a que presidia. Da mácula não se livrava: cada exceção era um recuo nas musculadas intenções de sitiar outros países atrás da cortina das “tarifas”.

Quando se pensava que a guerra comercial pomposamente anunciada pelo presidente da Samolândia tinha aberto uma caixa de Pandora, percebia-se que o emaranhado de exceções e exceções a exceções era outra caixa de Pandora nascida dentro da primeira caixa de Pandora. Já poucas pessoas sabiam ao certo que mercadorias se sujeitavam a “tarifas”, quem as aplicava e a que taxas eram aplicadas e, sobretudo, quem as excecionava e para quem. O comércio internacional tornou-se um puzzle indecifrável. 

A certa altura, as empresas habituadas a participar no comércio internacional já não sabiam o que era pior: se um clima homogéneo de protecionismo, ou a indefinição provocada pela multiplicação de exceções e mais exceções. A segunda caixa de Pandora carregava na tecla da incerteza: obter informação sobre a aplicação ou não de “tarifas” e, no caso afirmativo, se estavam ao abrigo de exceções que as isentavam por especial favor, tornara-se numa empreitada intimidante. Os departamentos de comércio externo das empresas tiveram de contratar mais gente (ele há sempre uma escondida vantagem atrás de um mar de inconvenientes). As empresas não tinham cenários claros do futuro que ajudassem a planificar a produção. Passaram a jogar à defesa para não serem apanhadas a meio de uma tempestade “tarifária” inusitada e ficarem com existências em excesso. Em vez do modo de produção plena, entraram num modo defensivo, intrínseco à densa nuvem de desconfiança que se abateu sobre o comércio internacional, passando a produzir abaixo das capacidades. Ato contínuo, a Economia meteu a marcha-atrás.

O emaranhado de exceções em cima de exceções aqueceu a incerteza. A rede de exceções às “tarifas” raramente se fundamenta em decisões racionais, a não ser o reconhecimento – tardio – de que as “tarifas” devem ser suspensas para esta mercadoria que tenha origem naquele país. Paira a impressão de arbitrariedade. Hoje exceciona-se, mas ninguém sabe por quanto tempo. De boca em boca, passa o rumor de que a concessão de uma exceção a esta mercadoria importada daquele país resulta dos bons ofícios para-diplomáticos. Insinua-se que as manobras subterrâneas concorrem para a ativação de uma certa exceção. A falta de critério ateia a incerteza e a suspeição. Todos desconfiam de todos, mas ninguém o admite para não desperdiçar o capital de influência que mais tarde possa ser necessário para convencer um país importador a excecionar a aplicação de “tarifas” às suas exportações. Como as exceções têm a forma de suspensão de “tarifas”, nunca se sabe quando podem ser retomadas.

A cacofonia das exceções às “tarifas” gerou um palco que se assemelha à terra de ninguém. É uma orfandade denotativa do vazio em que caiu a ordem internacional. Quem tinha responsabilidades na estabilidade internacional demitiu-se da função, encantado com o ilusório exacerbar da sua hegemonia à boleia da vontade unilateral imposta sobre os demais. Não conseguiu nem uma coisa nem a outra. Todos ficaram pior do que estavam.


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