Tricky, “Christiansands” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=hBpSJ-Lt94A
O mundo quase inteiro tropeça em erros flagrantes que seriam evitáveis se as pessoas tivessem um módico de formação, ou se se informassem com quem de direito. Há termos que não podem ser objeto de tradução literal, para a palavra que no idioma nativo é o decalque perfeito da palavra retrovertida. Há palavras com sentido técnico que exigem contextualização, escapando à tradução literal.
O mundo inteiro é, para este efeito, composto por jornalistas, comentadores, gente que escreve opinião pública, uns informados e outros nem por isso, políticos no governo e no parlamento, nos partidos do sistema e nas oposições, até académicos que debitam o pecado da expressão e ficam em dívida ao rigor semântico. Ao longo desta saga de quinze episódios, a palavra tarifa apareceu sempre com aspas. Com o advento do protecionismo com a chancela do presidente da Samolândia, a palavra vulgarizou-se de tal modo que só os preciosistas, ou os que continuam empenhados em fazer uso rigoroso do idioma, não escreveram a palavra “tarifa” (sem aspas) até à exaustão.
Quando se faz menção de tarifas em português no contexto da guerra comercial, é o resultado da tradução de “tariff”. Existindo no idioma nacional um vocábulo (tarifa) que soa a “tariff”, ele é o candidato natural para que a tradução seja saldada sem grande esforço. O mal é que, às vezes, a lei do menor esforço serve para armar uma barraca. Começando pelo fim da mensagem: do ponto-de-vista técnico, a retroversão certa de “tariff” é direito aduaneiro, ou direito alfandegário. Fica explicado porque, nos episódios anteriores, tarifa vinha cercada por aspas. Porque, em português, uma tarifa (sem aspas) não é “tariff” em inglês.
“Tariff”, ou direito aduaneiro, é aplicado pelo país de importação às mercadorias e serviços comprados no estrangeiro e que entram no mercado nacional. É um imposto. Quem o suporta não são as empresas que exportam para aquele país. O seu castigo é a perda de competitividade no mercado de destino – do país que impõe o direito aduaneiro – ou, na pior das hipóteses, se a taxa do direito aduaneiro for tão elevada que elimina a vantagem em exportar, a cessação das exportações. Que seja afastada esta possibilidade, retendo apenas a opção de um direito aduaneiro que não proíbe as importações, mas que penaliza a sua entrada no mercado: quem perde quota de mercado são as empresas que exportam e se sujeitam a um desgaste da competitividade; mas quem suporta o encargo do direito aduaneiro são os consumidores do país que o impõe, pagando um preço mais elevado pelos bens ou serviços importados.
Um imposto obedece a várias características: resulta da ação unilateral do Estado; é produto da coação, ou seja, do uso da força em que assenta a autoridade do Estado (os particulares não podem lançar impostos); quando o contribuinte satisfaz o pagamento de um imposto não pode exigir contrapartidas; por fim, não permite margem de manobra negocial, o contribuinte toma conhecimento do imposto que sobre ele é lançado e, dentro do prazo, tem de o liquidar. Esta definição corresponde à natureza do direito aduaneiro que um país cobra pela importação de mercadorias ou serviços. O país não negoceia esse imposto com ninguém – nem as empresas que exportam para aquele país, nem os consumidores nacionais interessados em comprar os bens ou serviços tributados, nem as empresas nacionais que importam e comercializam o produto ou o serviço no mercado nacional. Um direito aduaneiro não é uma tarifa porque é um imposto.
Todavia, também existem tarifas no idioma nacional e à sua existência corresponde um contexto técnico que é diferente de um imposto. A tarifa é o preço que se paga pela aquisição de um bem ou de um serviço. É tudo ao contrário de um imposto: é bilateral, porque é aberto à negociação entre o fornecedor e o comprador (se houver concorrência); resulta da aproximação entre a vontade do produtor e a vontade do consumidor, pois ambos têm margem de manobra negocial; o seu pagamento dá origem a uma contraprestação: o fornecimento do bem ou de serviço pago. Pagamos a tarifa aérea quando compramos uma viagem de avião, e temos direito a um lugar no avião e a outras regalias variáveis. E pagamos a tarifa elétrica, que dá direito a que a luz se acenda quando carregamos no interruptor de um candeeiro. Quando se reconhece que as tarifas são preços, exclui-se a possibilidade de elas serem impostos. Estão, e são, a antítese de impostos.
Se continuarmos a teimar em traduzir “tariff” por tarifa, incorremos num tremendo erro. Estamos a aceitar, erradamente, que o instrumento que trava a entrada de importações no mercado nacional é um preço, quando ele é um imposto. É só recorrer a um módico de informação para não se cair no erro de errar no nome. O mundo inteiro que andou a encher a boca com “tarifas” ganhava em prescindir do comodismo típico de quem faz traduções literais para aprender conceitos cujo significado técnico lhes escapa. De preferência, com a ajuda de académicos que, muitos deles também, caíram no erro fácil da tradução literal e, eles também, encheram as bocas com “tarifas”.
A tradução de “tariff” não é tarifa, é direito aduaneiro. Para memória futura, quando outro candidato a déspota incendiar o mundo com uma guerra comercial.
Sem comentários:
Enviar um comentário