Vozes dissidentes, que o eram sem ser pelo prazer da pura dissidência, propunham que só os incompetentes recorrem à burla para mitigar os efeitos da incompetência. Os que não temem os concorrentes mostram a cara e dispensam artifícios. A regra do jogo devia ser essa: quem consegue vingar no mercado onde se transacionam mercadorias e serviços vai a jogo com as armas que tem, sem substâncias dopantes que distorçam as capacidades dos concorrentes.
A teoria começou a passar de boca em boca e a ser divulgada na imprensa e na televisão. Por mais que os advogados de defesa do protecionismo comercial desmentissem a validade da teoria, ela foi arroteando caminho. Em condições normais, com os decisores sensíveis ao clamor popular, a popularidade da teoria fá-los-ia mudar as orientações escolhidas. Porém, o presidente da Samolândia continuava a defender as “tarifas” com uma convicção à prova de bala – e, portanto, à prova de quaisquer teorias que desmontassem as virtudes das “tarifas”, pois depressa essas teorias eram reduzidas à invalidade, ou a uma conspiração de conspirações, pelos arquitetos da nova verdade.
O líder da Samolândia nem sequer foi sensível a conversas mantidas em privado com líderes de outros países. Eles tentavam convencê-lo que as “tarifas” espalharam danos por todo o mundo. Como se vivesse mergulhado num mundo só dele, o líder da Samolândia negava com veemência as provas apresentadas pelos seus interlocutores e terminava abruptamente a conversa. As provas, que seriam irrefutáveis para um perito, eram a imagem vívida das conspirações segregadas só para degradar a imagem pública do presidente da Samolândia.
Os outros líderes eram porta-vozes dos peritos que, apoiados em boa ciência, queriam dar um modesto contributo para o armistício comercial. Como às vezes é preciso montar uma retórica acessível aos que têm menos capacidades cognitivas, os peritos desceram ao nível do discurso para crianças. As empresas que participam no comércio internacional eram vistas como desportistas envolvidos numa competição. Nos certames desportivos, perfilam-se os favoritos e os que só conseguem aspirar a ser figurantes. Uns e outros entram na competição com diferentes metas. Dificilmente os segundos podem aspirar a medalhas; os primeiros têm legítimas esperanças de figurar no olimpo. Não se exclui a hipótese de os resultados serem imprevistas, com um figurante a conseguir uma proeza inesperada ou um favorito a desistir da competição ou a ficar mal classificado.
Nas competições desportivas há controlos antidoping para impedir que os concorrentes falsifiquem os resultados. Vigora um código ético entre os concorrentes que os leva a serem reciprocamente leais. Na hipótese de um deles desertar do código de ética e se servir de substâncias dopantes, vai ser descoberto no controlo antidoping. Só tem a perder em recorrer à fraude: ao ser descoberto pela análise à urina, perde o lugar que ardilosamente tinha conquistado; também perde o respeito dos adversários, passando a ser visto como alguém que não é confiável; e cai em desgraça junto do público, que tem o seu próprio código ético e depressa ativa uma forma de censura social que isola o infrator e o condena, muitas vezes, ao fim precoce da carreira desportiva. Quando um dos favoritos é apanhado pela análise antidoping, a censura social e dos pares é ainda mais contundente: como favorito, a sua responsabilidade pelo cumprimento do código ético é maior.
A atitude do presidente da Samolândia encaixa-se nesta narrativa. Quem primeiro recorreu às “tarifas” foi a Samolândia, com o argumento (ou o pretexto) de elas serem necessárias para recuperar a competitividade das mercadorias que a Samolândia vende para o exterior e das que são viradas para o mercado nacional. Foi o próprio presidente do país que admitiu a incapacidade das empresas do país ao decretar o início da guerra comercial. Anunciou: preparem-se, que as empresas do país vão tomar doping.
A Samolândia tem mais responsabilidade na manutenção da estabilidade internacional do que qualquer outro país – é intrínseco ao seu estatuto privilegiado no mundo. Ao dar o tiro de partida da guerra comercial, demitiu-se desta responsabilidade – foi como ser apanhada no controlo anti-doping. Deixou o mundo órfão de uma referência de estabilidade, o que é irrelevante para o líder da Samolândia, cada vez mais ensimesmado. A Samolândia deixou de ser reconhecida pelos outros como o país hegemónico que assegurava a estabilidade mundial.
Dando razão aos peritos, a Samolândia só tinha a perder, como perdeu, em iniciar a guerra comercial. Já o presidente da Samolândia continuava convencido que o resto do mundo é que está errado.
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