These New Puritans, “A Season in Hell”, in https://www.youtube.com/watch?v=GmRykHQsoIM
Por causa das amizades a que o presidente da Samolândia queria dar guarida – ou talvez não fosse bem assim, que insuspeitos biógrafos reconhecem que ele não tem amigos, move-se por interesses –, foi libertando a conta-gotas as listas de importações às quais as autoridades aduaneiras passavam a impor “tarifas”.
Ufano de tanta grandiosidade, agora resgatada ao ser investido presidente da Samolândia, acreditava que os países visados pelas “tarifas” iam dobrar a cerviz: não é de ânimo leve que ousam afrontar o país mais poderoso do mundo. Não se incomodava por esta afirmação ostensiva de força, nem com a humilhação que pudesse causar aos países visados pelas “tarifas” prometidas. Esse era um dos destinos contido no pregão pueril que exaltava a grandeza do país. A grandeza existe por ser inata ao país, mas é exacerbada quando os outros países são obrigados a dobrar a coluna vertebral para fazerem a vontade à Samolândia.
Todavia, nem tudo está sob o controlo da Samolândia, por mais que a sua presença no mundo seja parecida com os atributos que costumam atribuir a deus. Ao querer forçar a vontade dos países atingidos pelas “tarifas”, a Samolândia não pode ter a certeza que estes não se vinguem. Para alguns deles, a hostilidade da Samolândia coloca-os no limite do risco. É entre perder tudo ou nada. A diferença entre retaliar para forçar um recuo da Samolândia, aturdida com tamanho topete, ou curvar-se perante o país que quer exibir toda a sua força e agravar as diferenças de estatuto entre ele e os demais.
A retaliação de outros países teve uma precisão cirúrgica. Se a Samolândia travou a competitividade das exportações dos países atingidos pelas “tarifas”, os países ousados, não tendo muito a perder, jogaram na mesma moeda. Identificados sectores ou produtos em que a Samolândia tinha vantagem internacional, os outros desferiram um ataque milimétrico sobre esses sectores ou bens, que passaram a ser objeto de “tarifas”. A Samolândia deixou de ser competitiva pelo exercício da vingança, da legítima vingança, dos países usurpados pelas “tarifas” da Samolândia.
O presidente da Samolândia não recuou. A desfeita dos países que reagiram às “tarifas” da Samolândia com “tarifas” equivalentes era inaceitável. Ao regente da Samolândia não ocorreu que os direitos são iguais, para o seu país e para outros que sejam direta ou indiretamente visados pelas “tarifas”. Se fosse um líder com responsabilidade mundial, inerente ao estatuto da Samolândia, devia proteger a estabilidade internacional. Pelo contrário, ateou uma guerra comercial que incendiou os ânimos, vomitou o embrião da desconfiança e fez retrair todos os países, receosos de que a próxima onda de protecionismo os venha a prejudicar.
Para responderem ao unilateralismo míope do líder da Samolândia, os outros países usaram as mesmas armas e dotaram-nas do mesmo veneno que a Samolândia dera a provar. Que ninguém conteste a ilegitimidade da retaliação dos segundos.
O problema é que o regente da Samolândia não ficou quieto. À desfeita da vingança “tarifária” dos países rebeldes respondeu com uma subida das taxas das “tarifas”. Os demais voltaram a retaliar – e assim sucessivamente, roçando a demência generalizada, com a Samolândia e os outros a entrarem numa corrida para o abismo, como acontece com os varões que querem ficar com a última palavra e garbosamente se vangloriam por terem o membro de maiores dimensões (como se isso interessasse, a não ser para mitigar inseguranças próprias).
No final desta corrida para o abismo, em que muitos dos concorrentes mais pareciam adolescentes a acelerar vertiginosamente numa autoestrada, todos os países, Samolândia incluída, ficaram pior do que estavam antes da guerra comercial. Já vinha nos manuais, mas ninguém quis dar atenção. É o preço da teimosia e da ignorância, quando se alimentam mutuamente.