30.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 5)

These New Puritans, “A Season in Hell”, in https://www.youtube.com/watch?v=GmRykHQsoIM

Por causa das amizades a que o presidente da Samolândia queria dar guarida – ou talvez não fosse bem assim, que insuspeitos biógrafos reconhecem que ele não tem amigos, move-se por interesses –, foi libertando a conta-gotas as listas de importações às quais as autoridades aduaneiras passavam a impor “tarifas”. 

Ufano de tanta grandiosidade, agora resgatada ao ser investido presidente da Samolândia, acreditava que os países visados pelas “tarifas” iam dobrar a cerviz: não é de ânimo leve que ousam afrontar o país mais poderoso do mundo. Não se incomodava por esta afirmação ostensiva de força, nem com a humilhação que pudesse causar aos países visados pelas “tarifas” prometidas. Esse era um dos destinos contido no pregão pueril que exaltava a grandeza do país. A grandeza existe por ser inata ao país, mas é exacerbada quando os outros países são obrigados a dobrar a coluna vertebral para fazerem a vontade à Samolândia.

Todavia, nem tudo está sob o controlo da Samolândia, por mais que a sua presença no mundo seja parecida com os atributos que costumam atribuir a deus. Ao querer forçar a vontade dos países atingidos pelas “tarifas”, a Samolândia não pode ter a certeza que estes não se vinguem. Para alguns deles, a hostilidade da Samolândia coloca-os no limite do risco. É entre perder tudo ou nada. A diferença entre retaliar para forçar um recuo da Samolândia, aturdida com tamanho topete, ou curvar-se perante o país que quer exibir toda a sua força e agravar as diferenças de estatuto entre ele e os demais.  

A retaliação de outros países teve uma precisão cirúrgica. Se a Samolândia travou a competitividade das exportações dos países atingidos pelas “tarifas”, os países ousados, não tendo muito a perder, jogaram na mesma moeda. Identificados sectores ou produtos em que a Samolândia tinha vantagem internacional, os outros desferiram um ataque milimétrico sobre esses sectores ou bens, que passaram a ser objeto de “tarifas”. A Samolândia deixou de ser competitiva pelo exercício da vingança, da legítima vingança, dos países usurpados pelas “tarifas” da Samolândia. 

O presidente da Samolândia não recuou. A desfeita dos países que reagiram às “tarifas” da Samolândia com “tarifas” equivalentes era inaceitável. Ao regente da Samolândia não ocorreu que os direitos são iguais, para o seu país e para outros que sejam direta ou indiretamente visados pelas “tarifas”. Se fosse um líder com responsabilidade mundial, inerente ao estatuto da Samolândia, devia proteger a estabilidade internacional. Pelo contrário, ateou uma guerra comercial que incendiou os ânimos, vomitou o embrião da desconfiança e fez retrair todos os países, receosos de que a próxima onda de protecionismo os venha a prejudicar. 

Para responderem ao unilateralismo míope do líder da Samolândia, os outros países usaram as mesmas armas e dotaram-nas do mesmo veneno que a Samolândia dera a provar. Que ninguém conteste a ilegitimidade da retaliação dos segundos. 

O problema é que o regente da Samolândia não ficou quieto. À desfeita da vingança “tarifária” dos países rebeldes respondeu com uma subida das taxas das “tarifas”. Os demais voltaram a retaliar – e assim sucessivamente, roçando a demência generalizada, com a Samolândia e os outros a entrarem numa corrida para o abismo, como acontece com os varões que querem ficar com a última palavra e garbosamente se vangloriam por terem o membro de maiores dimensões (como se isso interessasse, a não ser para mitigar inseguranças próprias).

No final desta corrida para o abismo, em que muitos dos concorrentes mais pareciam adolescentes a acelerar vertiginosamente numa autoestrada, todos os países, Samolândia incluída, ficaram pior do que estavam antes da guerra comercial. Já vinha nos manuais, mas ninguém quis dar atenção. É o preço da teimosia e da ignorância, quando se alimentam mutuamente.

29.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 4)

Soundgarden, “Pretty Noose”, in https://www.youtube.com/watch?v=f8nkHrv_4Mg

Idrissa, o empresário do Gambswana andava feliz da vida. Saíra da miséria ao frequentar um programa de educação financeira e empresarial de uma organização não governamental. Com o que aprendeu e a sua diligência, saiu da miséria e dela retirou algumas famílias que passaram a trabalhar na fábrica de Idrissa. Um dia, quase no fim da formação na organização não governamental, teve uma epifania: faria botões originais, botões que mudam de cor de acordo com a exposição da luz, feitos de ossos de baleia (das baleias que, ao morrerem, dão à costa). Os ossos de baleia eram da matéria mais indestrutível que se conhece. Dizia frequentes vezes que os seus botões eram poesia sem palavras texturadas.

Os botões feitos na fábrica de Idrissa depressa foram um sucesso. Começaram por ser vendidos nas localidades limítrofes. O passa a palavra foi fazendo o seu caminho e, sem dar conta, Idrissa começou a receber encomendas do estrangeiro. 

(Idrissa não sabe, mas passa de boca em boca que foi um empresário da Niponlândia que, estando de férias no Gambswana, conheceu os botões por acaso. Encantado, telefonou a um conhecido que trabalha em têxteis. O conhecido também ficou encantado e fez uma encomenda de empreitada, tomando conta da produção da pequena fábrica para os seis meses seguintes. Foi o trampolim para vender Idrissa botões nos cinco continentes.)

Idrissa tornou-se o maior empresário do Gambswana. Deu emprego a centenas de pessoas nas suas fábricas. O negócio expandiu-se para quatro fábricas no país e duas no estrangeiro, a maior das quais fora de África. Nunca ostentou abastança e a modéstia entranhada não se dissipou quando o negócio começou a acumular lucros. Nos sítios onde havia fábricas da empresa de Idrissa, a pobreza era residual. Para além de pagar bons salários, dotava as fábricas de infraestruturas de apoio familiar e era o filantropo (com identidade, todavia, deixada no anonimato) que possibilitava a construção de escolas e creches, lares para idosos, teatros, bibliotecas e que os hospitais tivessem equipamento de ponta e médicos capazes. 

O presidente da Samolândia tinha muitos amigos que não passavam de interesses. Um dia, num jogo de golfe, um amigo (da onça) pediu-lhe para considerar a hipótese de aplicar “tarifas” às importações de botões do Gambswana. O amigo segredou que não conseguia competir com aqueles botões, que até já faziam furor no mundo da moda. O presidente da Samolândia nem pestanejou: “considera-o feito, com efeitos imediatos” e pegou no telemóvel dando instruções precisas. Para rematar a transação, o presidente da Samolândia perguntou ao amigo: “o que ganho em troca?”

As “tarifas” sobre importações de botões do Gambswana eram uma exorbitância. Passou a ser proibitivo importar aqueles botões. O barão dos botões da Samolândia dormiu que nem um nababo ao saber que deixaria de suportar a concorrência dos botões do Gambswana.

Idriss ficou lívido ao saber que a sua produção tinha sido torpedeada pelas “tarifas” decretadas pelo presidente da Samolândia. Mais de metade da sua produção deixava de ter compradores. Mover influências junto de políticos nunca foi o seu forte e sempre prezou a separação entre políticos e empresários. Nem precisou de o fazer. O ministro do comércio, ao tomar conhecimento do assalto “tarifário” da Samolândia, pôs-se à disposição de Idriss para mover influências nos canais diplomáticos. “Pode ser que se consiga qualquer coisa”, foi a promessa que fez e que soava a logro antes do tempo.

Confirmou-se. O presidente da Samolândia, ao ser questionado se queria manter as “tarifas” exageradas sobre as importações de botões do Gambswana, respondeu com uma pergunta: “onde é esse país?” Idriss teve de fechar fábricas e despedir pessoas que perderam o ganha-pão e um módico de esperança que era desconhecido antes de terem sido contratadas. A pobreza voltou a sondar o céu que servia de pano de fundo aos habitantes na Gambswana. O país viu o direito ao desenvolvimento ser raptado por um capricho de política comercial. A responsabilidade era das “tarifas” decididas pelo presidente da Samolândia. 

Os protestos transcenderam o governo do Gambswana: os estilistas radicados na Samolândia não podiam usar os botões mágicos feitos no Gambswana. Não se conformavam – as suas criações perderam o esplendor que era emprestado pelos botões de Idrissa. Rogaram ao presidente da Samolândia que voltasse atrás. Este, indiferente, recusou o apelo. Porque o mundo da moda tem umas preferências sexuais estranhas – disse.



28.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 3)

Soundgarden, “Limo Wreck” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vrnxtk-zP0k

O senhor Jameson estava habituado a passar férias fora da Samolândia. Coisas de um cosmopolita irremediável, para maldição dos mandantes que convidavam os autóctones a feriar no seu país sem que estes atendessem ao pedido. 

Por causa das “tarifas” demenciais, a moeda da Samolândia entrou numa desvalorização vertiginosa. O presidente da Samolândia, que nestes tempos só se interessava pelas coisas do comércio, exultava: com uma moeda a perder valor para as moedas concorrentes, os produtos da Samolândia exportados ficam mais baratos. Ele ligava a causa ao efeito, prescindindo de outras facetas que tornariam a análise menos parcial. A desvalorização da moeda ajudava as exportações a serem mais competitivas. E o contrário: os produtos de outros países perdiam mercado ao chegarem à Samolândia, o que reforçava o propósito (pelo menos o que fora anunciado) da guerra comercial: reabilitar a economia nacional, torná-la menos dependente do estrangeiro, recuperar empregos que estavam a ser perdidos pela falta de capacidade da economia. Ainda que a economia do país fosse sacrificada com mais inflação.

Ninguém ensinou o líder da Samolândia que há assuntos complexos que contêm uma miríade de efeitos e que lidam com muitas variáveis. São assuntos que vão muito além da sua capacidade cognitiva. Um dos afetados era o senhor Jameson – e todos os senhores Jameson que gostavam de alargar horizontes e viajar para longe nos tempos livres ou na reforma. À perda de valor da moeda da Samolândia correspondia um ganho de valor das principais moedas concorrentes. Quando o senhor Jameson começou a planear as férias, escolheu uma vez mais a Europólia – ele é um aficionado pelas diversas culturas que coexistiam na Europólia. 

O problema foi quando orçamentou as férias. De um ano para o outro, ir de férias para a Europólia ficara 35% mais caro. O senhor Jameson procurou perceber as razões para os preços terem disparado. Na agência de viagens disseram-lhe que os preços praticados na Europólia tinham sofrido uma pequena variação, em linha com a inflação do ano. O resto era por conta da variação no valor das moedas que competem no mercado. A moeda da Samolândia enfraqueceu em relação à moeda da Europólia. Para um residente na Samolândia, trocar um certo montante de moeda pela moeda da Europólia ditava numa perda de quase 30% na quantidade desta moeda obtida à troca. Por isso é que a Europólia tinha ficado mais cara.

As férias que o senhor Jameson queria fazer foram goradas. Não tinha orçamento. Ficar-se-ia pela Samolândia, satisfazendo outro sonho do presidente do país, ao incentivar os súbditos a não fazerem turismo no estrangeiro pois a Samolândia é enorme e tem muito segredos por revelar. O líder com gosto pela autarcia não cabia em si de contente. Em vez da sangria de turistas para outros países, quase todos ficariam limitados a passar férias no país. Menos moeda nacional era vazada para o estrangeiro, ajudando ao reequilíbrio entre a moeda nacional saída e a moeda estrangeira entrada. 

O turismo da Samolândia não escondeu um rasgado sorriso. Previa-se que o turismo de autóctones atingisse números nunca vistos. E que muitos turistas, sobretudo da Europólia, fariam turismo na Samolândia. O líder da Samolândia considerava-se um génio da economia. Passou-lhe ao lado que os efeitos da economia não são tão previsíveis como o pressentido por uma análise pueril. Os outros países não conseguiam suportar um desequilíbrio prolongado na variação de valor das moedas em relação à moeda da Samolândia. Ato contínuo, começaram a provocar sucessivas perdas de valor nas sua moedas, para evitar o afundamento da moeda da Samolândia. Jogaram com as mesmas armas.

Afinal, o senhor Jameson podia voltar a fazer planos para a viagem à Europólia. O sector de turismo da Samolândia arrefeceu a exultação anterior ao perceber que nem teria a avalanche de turistas autóctones, nem a correria desatada de turistas dos outros países. E o presidente do país, o causador da corrida desenfreada à desvalorização das moedas porque anteriormente tinha ateado a guerra comercial, enfiou a viola no saco.

25.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 2)

Sonic Youth, “Dirty Boots”, in https://www.youtube.com/watch?v=UKLr6c26Vr4

A guerra comercial começada pelo presidente da Samolândia fez vítimas e arregimentou uns idiotas úteis. Na Lusitânia, um líder partidário seguidor do líder da Samolândia também ofereceu opinião sobre o assunto. Se se desse o caso de a personagem chegar ao poder – suplicando nesse sentido, em cartazes profusamente espalhados em praças, rotundas e avenidas não escolhidas ao acaso: “deem-me uma oportunidade”, com ar choroso de quem apela à piedade dos seguidores e de outros que o venham a ser – anunciou que a política comercial seria uma cópia da Samolândia.

Para dar uma impressão de respeitabilidade, e passar a imagem de quem se prepara e sabe do que fala, o líder populista argumentou que é preciso proteger a economia nacional para o mercado não ser ensopado por produtos da Sinolândia e da Carilândia (entre outros países, na maneira de ver do senhor, pouco recomendáveis). Com os políticos às vezes se esforçam por parecerem convincentes, reproduziu o catecismo protecionista do líder da Samolândia: se as importações entrarem sem obstáculos, as empresas pátrias ficam para trás. Como não queremos que o desemprego suba à conta do emagrecimento da economia nacional (e por aquele partido prezam muito a pátria e os seus assuntos), é preciso aplicar “tarifas” para prejudicar as importações. Não é por acaso que o líder deste partido é seguidor do presidente da Samolândia: para além do populismo em que ambos gravitam, agarram-se ao nacionalismo para cimentar lealdades. Esta é um retórica que deixa os outros para trás sempre que se intui uma contradição de objetivos entre eles e nós. Os outros devem ser sacrificados para não nos sacrificarmos a seu favor.

(Ficará para outro episódio a demonstração do erro do unilateralismo, virando as costas à cooperação com os outros, seja através de ações bilaterais, seja no contexto de organizações em que fermenta o multilateralismo.)

É da natureza humana: os seguidismos acríticos, por conveniência ou apenas porque é mais fácil a colagem a alguém que julgamos próximo das nossas causas (quando as causas são deles e nós é que as adotamos), costuma dar mau resultado. Não para quem é copiado, mas para quem copia. É o caso do líder deste partido que não se cansa de exaltar a lusitanidade e despreza os outros. Iliterato, passeia o desconhecimento sobre a economia do país, muito dependente do que compra ao estrangeiro e do que é vendido para o mercado internacional. Seguir acefalamente o ensimesmar comercial do líder da Samolândia virar-se-ia contra a economia do país de que aquele líder quer ser primeiro-ministro. Primeiro, há muitas mercadorias nacionais que usam matérias-primas compradas ao estrangeiro. Impor “tarifas” acaba por prejudicar a competitividade das empresas nacionais. Segundo, no afã de seguir quem o inspira na Samolândia, o líder deste partido lusitanista ignora que o país não está sozinho no mundo e que a probabilidade de outros também aplicarem “tarifas” anula o efeito pretendido. As “tarifas” não chegam a dar competitividade às empresas nacionais, pois os países afetados não demoram a reagir na mesma moeda. As vantagens depressa se dissipam.

O líder do partido que prometeu copiar o unilateralismo da Samolândia é um tonto que medra na ignorância do que o rodeia. Ao prometer, assertivo, que se for escolhido para governar vai aplicar “tarifas” para proteger a economia nacional, faz de conta que a Lusitânia não pertence à Europólia. Ou ignora as regras de funcionamento da Europólia, pois as decisões sobre “tarifas” não estão na órbita dos governos e pertencem à Eurpólia a título exclusivo. O líder do partido está tão mal preparado que prometeu fazer algo que a pertença à Europólia o impede de fazer. A menos que a sua agenda oculta seja tirar a Lusitânia da Europólia. O mal não ficou por aqui: entre os seus concorrentes, ninguém denunciou a impossibilidade prometida; e até os jornalistas, mais atentos a fait divers e a minudências, deixaram passar a boutade em branco.

A guerra comercial deixa um rasto de vítimas. O líder deste partido da Lusitânia é mais um que foi consumido pela jactância e pelo seguidismo de um dos seus gurus contemporâneos. As “tarifas” disparam contra as importações, mas há personagens que são atingidas pelo fogo cruzado.

24.4.25

Estórias sobre as trevas, ou o espantalho das “tarifas” (episódio 1)

Nine Inch Nails, “Starsucker, Inc.”, in https://www.youtube.com/watch?v=omWQzYycyJk

Num ápice, o espantalho das “tarifas” regressou do túmulo para sobressaltar meio mundo. Inspirado pelo líder da Samolândia, encorajado por um público pouco informado que padece de vistas curtas e não consegue alcançar os efeitos sísmicos além da espuma dos dias, o arsenal de “tarifas” foi usado indiscriminadamente. Não havia país a salvo. O líder da Samolândia prometia recuperar empregos para a economia nacional assim que os consumidores desviassem o consumo para o “made in” caseiro. 

Pobres consumidores, que mais pobres iam ficar. O líder da Samolândia não compreendia que não é por simples prestidigitação que o desvio de consumo acontece. Sendo impossível substituir, com a urgência do curto prazo, importações por produção local, aos consumidores sobravam duas hipóteses: ou continuavam a comprar “made in” estrangeiro mas pagando mais caro (e com a inflação a morder nas canelas); ou abdicavam desse consumo, fazendo a vontade às visões românticas que imputam uma culpa gregária ao vício de tanto consumir. A confirmar-se a derradeira hipótese, descobrir-se-ia, para memória futura, uma inesperada aliança entre o líder entretanto pária, os gurus do anticapitalismo e o sumo sacerdote da igreja católica falecido há dias.

Como acontece aos desbocados, a certa altura têm de recuar nas intenções desbragadamente anunciadas, engolindo as palavras que eram uma falsa demonstração de destemor. Os cidadãos da Samolândia adoravam telefones móveis de uma marca que tinha ao selo do “made in” no país, a oMobile. A ironia do destino estava por conta da globalização – nunca desdenhada pelos cidadãos da Samolândia e pela entourage política do respetivo líder. Os oMobile eram fabricados no país que agora era o maior rival comercial, a Sinolândia. Ficavam mais baratos, à boleia da mão-de-obra paga com salários irrisórios e de miseráveis condições de trabalho. Ou seja: os consumidores de uma economia capitalista aproveitavam-se das condições de trabalho degradantes praticadas por um país onde o comunismo sobrevivia. 

O líder da Samolândia mantinha a sua teimosia: era para avançar com as “tarifas” e a Sinolândia seria o país mais duramente punido. Ao grande líder não ocorreu que na Sinolândia eram fabricados os telemóveis oMobile que faziam as delícias dos seus súbditos. E todos – o líder, os conselheiros e o povo quase inteiro – descobriram que telemóveis eram “made in” Samolândia só de fachada, pois eram “made in” Sinolândia. A notícia caiu como uma bomba: quando fossem para as montras das lojas na Samolândia, os oMobile iam duplicar de preço. O clamor popular não demorou. Era o que mais faltava, os cidadãos da Samolândia serem sujeitos a pagar duas vezes mais por um telemóvel que era um dos ícones da economia nacional porque o seu líder ateou a fogueira de uma guerra comercial. O brado chegou aos ouvidos do grande líder. Não podia ser insensível. O mal-estar começava a ser notado e algumas vozes importantes, até de notáveis apoiantes do líder, protestavam, por ora ainda discretamente, contra a obstinação das “tarifas”.

O grande líder da Samolândia ainda insistiu que as “tarifas” eram para o bem da economia do país, que iam criar empregos e reabilitar a indústria do país. Todavia, quando o cenário do dobro do preço a pagar pelos telemóveis se começou a materializar, as vozes fizeram-se ouvir num bramido incómodo. O líder não teve outra hipótese: recuou nas “tarifas” indiscriminadas sobre as importações procedentes da Sinolândia. Mudou de estratégia: as “tarifas” seriam seletivas, para atingirem cirurgicamente a economia da Sinolândia sem magoarem os consumidores samolandeses. Os telemóveis “made in” Sinolândia passavam a estar isentos de “tarifas”, por especial deferência do grande líder.

Para quem tinha tido entradas de leão, este recuo só podia ser entendido como uma saída de sendeiro. E o grande líder, ao meter a viola no saco, exibiu, afinal, uns testículos de tamanho inversamente proporcional à vozearia tonitruante com que espalhafatosamente inundou a política internacional.

23.4.25

A pendência das pendências (deixar para depois o que se pôde fazer ontem)

The Dead Weather, “I Cut Like a Buffalo”, in https://www.youtube.com/watch?v=RYDhw8_lAn0

Uma pilha de papeis que vai ganhando pó a um canto da secretária, os papeis por dentro candidatos ao processo natural de amarelecimento se continuarem pendentes. 

Os livros empilhados à espera de tempo para serem abertos e as suas letras consumidas pelos olhos que não os perdem de vista. 

As palavras que podiam ter sido ditas e ficaram encravadas na apatia. 

A cornucópia de mudanças que se projetam ao ser aberta a caixa de Pandora das insatisfações que gravitam num determinado momento. 

Uma dieta que custa mais do que a fome que a deixa em marasmo. 

Um hábito, interiormente reconhecido como mau, que permanece sem antídoto. 

Uma indulgência que continua intencionalmente anestesiada. 

A imensa roleta russa em que vagueia a vida, à espera do inesperado, fiel à contingência como bússola por onde se rege o comportamento, indiferente a qualquer ordem interna, incapaz de deixar a vontade levitar e tratar do seu caminho.

O amontoado dos dias que segue um caminho contra as pendências que se inscrevem no rol dos adiamentos.

Todas estas pendências, sistematicamente enlaçadas umas nas outras, mas sem fio condutor entre elas, a não ser o reconhecimento de que se anda atrás do tempo e a sua conjura se mobiliza contra a extinção das pendências. Elas, que podem ser extintas por prescrição, por desatenção ou por consumação, adejam sobre o horizonte em que se projeta o olhar que não consegue ser diáfano. Pois todos os dias há um enxerto de névoa que acrescenta algum embaciar ao tabuleiro por que se regem as vidas e que admite outras pendências, novas ou resgatadas de um pretérito qualquer, a somar às existentes. 

As pendências podem ser extintas por prescrição, desatenção ou consumação. De acordo com a ordem das estatísticas, as últimas rareiam. As segundas são uma falsa condição, pois a desatenção não consegue fugir à intencionalidade. As primeiras merecem o benefício da dúvida, se forem ficando para trás na ordem em que se definem as prioridades. 

Parece que já não há agenda disponível para inventariar as pendências, o que se torna numa pendência quintessencial (ou numa meta-pendência). Ou, talvez, as pendências sejam um artifício, um garrote intencional que aviva a memória de que somos reféns do que deixamos para trás sem acabamento. 

22.4.25

Mau ganhar

Suede, “The Sadness in You, the Sadness in Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=u0dxSlhBNmw

Eis a bravura dos fortes que só se acovardam quando outros mais fortes saem ao caminho, pois, de outro modo, exercem a falsa audácia dos fortes que espezinham os que mais fracos do que eles são.  Não se saciam com um triunfo ornamentado com a ostentação da vitória. O triunfo é encimado pela humilhação dos derrotados. Se não, a vitória sabe pela metade, ou ainda menos.

É caso para requerer a intervenção de um engenheiro das almas. Interessa mais ostentar o espólio da proeza à custa daqueles que foram vergados pela sua força, do que a proeza em si. São os que não aprenderam a sentir o que é triunfar sobre um rival. Os que tratam o rival por inimigo, numa adulteração propícia da sua índole.

O mau ganhar constitui um mau precedente. Pois nem todos podem ganhar ao mesmo tempo. As diferenças povoam a impossibilidade de uma vitória acontecer no mesmo instante para todos, pois são embaixadores de diferentes interesses. Quando não é possível açambarcar uma façanha, alistam-se nos derrotados. Quem não se comporta diante de um triunfo não saberá digerir um desiderato que se gora. Arrastam os despojos como se a derrota (os) envergonhasse. 

Os que não sabem ganhar também não sabem perder. Não sabem ou não conseguem, certificar a justeza da façanha do rival. A derrota imputa-se a fatores externos, a acontecimentos imprevistos que impediram outro desfecho, a conspirações imaginadas, a um mero azar. Nunca à competência superior de quem os derrotou. Passeiam a falta de diligência para perderem, pois não se sabem estar quando são honrados por um triunfo.

Os que não sabem ganhar têm de exibir as medalhas que representam o desprezo do derrotado. Quase como se sua fosse a culpa de terem desafiado os depois vitoriosos, numa insanável contradição de termos: se não desfilassem os derrotados, como poderiam os vencedores ostentar o garbo do triunfo ao qual fazem corresponder a humilhação dos perdedores?

Devia ser ensinado, desde os bancos da escola, a ciência do ganhar. Para não sermos agredidos pela arrogância dos que alardeiam, com indisfarçável orgulho próprio, terem saldado a peleja com um triunfo e o esmagamento do adversário como o lauto manjar que lhe é consequente. A vitória devia chegar. Falta escola para os que não sabem ganhar, a escola que ensina a saber ganhar sem a prosápia habitual dos que armazenam a seu favor as medalhas representativas das proezas alçadas. Não como feito em si, mas como sinal de terem vergado o braço do adversário.

21.4.25

Biscate (short stories #487)

The Hard Quartet, “Earth Hater”, in https://www.youtube.com/watch?v=zlveAf37fjE

          Soltavam-se as vontades transeuntes, como se apenas contassem os acasos: as vozes sem regra voavam entre os dias, emprestavam as suas cores aos lugares que serviam de estafeta. Os olhos estremunhados seguiam pelo dia fora. O fim de semana é o cabaz onde a preguiça se espreguiça – é dos costumes a que as pessoas obedecem sem os interrogarem. As vigílias montadas são sempre bandidas. Deviam ser banidas, se os costumes não exaurissem o pensamento sem peias. As frases soltas amontoavam-se e meias com as frases-feitas e os rostos que procuravam afirmar um nome punham-se em bicos-dos-pés, à procura de visibilidade (que é o estatuto que precede a notoriedade – todas essas personagens queriam ficar emolduradas para a posteridade como “notáveis”, talvez até com direito a lugar na toponímia local). Se não fossem os biscates, não havia ordem – alguém disse durante três segundos de silêncio que foi possível descobrir entre a amálgama de falas sobrepostas. Muitos não ligaram, era uma frase banal. Alguém reteve a deixa e ficou a pensar: não se pode encontrar ordem no sistema desordenado dos biscates. Os entendidos diriam tratar-se de uma contradição de termos. Mas depois deixou o pensamento mergulhar em águas profundas. Os biscates dão forma a uma ordem própria num lugar que tem aversão à ordem. Tudo o resto pertence à escala da desordem, num costume entranhado que não se questiona. Ai de alguém que viaje para um lugar que seja a antítese da desorganização hasteada, sente um desconforto a tomar conta das veias ao ser instruído das várias alíneas e subalíneas em que se decompõe a ordem estabelecida e meticulosamente respeitada (saber-se-á não haverem párias). Os biscates são perseguidos pelas autoridades. E eles não entendem porquê. Vaticinam que maior seria a prosperidade daquele lugar se houvesse direito a biscates. Não sabem como errado é esse vaticínio.  

18.4.25

Livrai-nos do bem

Sonic Youth, “Superstar”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y21VecIIdBI

Ah! As delícias do bem, a perfunctória função que aproxima da perfeição, ou não sendo ela possível, do seu estado mais aproximado, a pureza. Movemo-nos nos corredores da bondade e seremos a máxima aspiração quando o bem tomar conta de todo o nosso tempo – de acordo com os manuais de instruções do cidadão exemplar. 

No entanto, há pessoas que ambicionam a antítese do bem. Afastados dos deleites que não entram nas cogitações do espírito, o que não dariam, o que não fariam, por umas maldades que, todavia, não contam para o rosário das entradas assassinas de carácter que nos colocam à porta do purgatório. Livrai-os do bem que estão a precisar de praticar o mal, mas um mal tolerado pelas divindades a concurso, pese embora os seus embaixadores terrenos prossigam uma cruzada inconcutível e obsoleta para diabolizar os prazeres do corpo.

Livrai-os do bem, nem que seja pelo intervalo de um parêntesis, para se poderem deliciar com os prazeres reprimidos, entregando-se à devassidão sem cuidarem de saber que alguém os tutela. É desse mal que precisam. E só o encontram se forem dispensados do bem, para se entreterem com esse mal abençoado enquanto fazem o tirocínio da existência. Livrai-os do bem, endossando-os ao império do mal assim definido, para que não se esqueçam das maldades que fazem bem e para que a distribuição destas seja equânime – para que as divindades a concurso não sejam acusadas de malbaratarem o crédito de equidade ao arrostarem o peso pérfido de quem não pratica a democracia. Salvando as divindades de serem apenas a contradição do que apregoam ser.

Não os livrais do mal, divindades avulsas e outras em carteira, para que, assim ungidos pela vossa longanimidade, possam ser profetas da bondade por não serem alienados das maldades que instruem o inventário exercido nas vésperas da morte. Se ao ditado se credita o lugar-comum que todos somos filhos de deuses, que alguns não sejam omissos na repartição das maldades que coabitam com a natureza nossa para o adágio não ser desmentido.  

Que os livrais da tirania do bem, divindades a concurso, porque eles precisam de mergulhar na maldade aqui e ali, agora e logo depois.

17.4.25

Somos os pesadelos que carregamos às costas?

The Breeders, “Divine Hammer”, in https://www.youtube.com/watch?v=F9il_iQ8bDM

Parecemos personagens de outro filme, como se o palco morasse na casa do lado (ou noutra qualquer) e andássemos desorientados como um gato que chega a uma casa nova. Não é nossa aquela pele. Não é este o sangue que nos faz falar. E, todavia, as pessoas que habitam o pesadelo são (umas) conhecidas e (outras) perfeitos anónimos, muitas vezes apenas um corpo sem um rosto. Os pesadelos dissolvem os nomes por dentro. Dissolvem-nos quando acordamos sobressaltados e acreditamos, por umas frações de segundo, que estávamos a ser personagens conscientes do pesadelo interrompido.

Depois, o pesadelo fica a pesar sobre as costas como um fardo que onera boa parte do dia. Às vezes, quando os pesadelos são tão medonhos que corrompem a atenção que o dia exige, pesam sobre a totalidade do dia. Adiamos o sono por temermos que dê continuidade ao pesadelo. Resistimos, inventamos uma insónia, se preciso for. Até que o cansaço do dia, exacerbado pelo peso do pesadelo, se sobrepõe. Varremos os receios: o pesadelo pretérito extinguiu-se quando foi interrompido pelos solavancos da consciência. Dele não fica o menor vestígio.

Mas não temos garantias que um pesadelo arquivado não se reative nas memórias que resgatam as suas fundações às profundezas de um mecanismo desconhecido. O pesadelo pode estornar sem estarmos a dormir. Porque dele nos recordamos à força de uma ignição inesperada, reconciliando a memória com as teias do pesadelo que estava hibernado; ou porque o pesadelo se confirma como o pressentimento de algo que acabou de acontecer. A sua ignição é o tumulto que não pediu licença para ferver o sangue em sobressalto.

Os pesadelos podem ter um amanhã guardado debaixo da pele. São como vulcões dados como extintos que desmentem a sindicância dos cientistas. Irrompem, sem pré-aviso, debitando toda a lava que se deita sobre as nossas costas. Ninguém está a salvo de um corpo corcovado por ação dos pesadelos que se julgavam extintos. Andamos com eles às costas, até aqueles que são indiferentes por terem faltado ao paradeiro que os inventaria. 

Somos um pouco como os pesadelos que quiseram, contra a nossa vontade, atear uma conspiração que nos consome.

16.4.25

Claustrofobia

The Cure, “Play for Today”, in https://www.youtube.com/watch?v=5dOANVRy5Vk

Cheira mal, mal de mais, a um passado indecoroso que parece ter sido destinado ao esquecimento por uma História que foi despejada. O ar pesado arqueia-se sobre o dorso cansado de uma espécie que nem aprende nem se arrepende porque finge um desprendimento da História que lhe é conveniente. Por dentro deste ar pesado, como se alqueires de metais pesados entrassem pelas vias respiratórias e tomassem conta das veias, a contaminação da desliberdade. Homens providenciais carregam o peso do futuro com as suas carrancudas fauces, passeando tiques autoritários que crescem em popularidade junto da audiência. 

Pagamos o preço alto da desmemória ou, o que é pior, do revisionismo do passado, depressa condenado a ser um episódio reescrito que merece absolvição de muitos ou a indulgência de outros tantos. A liberdade tornou-se uma canseira. Entrou num remoinho que a conduz, como valor, a um lugar subalterno, perdendo-se vagarosamente o seu paradeiro. Teme-se que esta perda possa ser irremediável.

As opiniões polarizadas cristalizam no palco que ganhou tempo. O lugar dos moderados emagreceu. São ultrapassados pelo vozear tonitruante dos radicais de todas as cepas. A culpa será dos moderados, há quem sugira, porque não responderam aos anseios de muitos e desprotegeu muitos outros. No escrutínio todavia pouco rigoroso, em que as primeiras impressões trespassadas pela frivolidade são o archote que incendeia a lucidez, aos moderados imputam-se os males hodiernos. Os que migraram do espaço moderado para as franjas onde se exacerbam os radicalismos encontram refúgio nos extremos que se amotinaram contra a moderação exaurida. 

Estes são tempos castigados pela claustrofobia. Os erros do presente são a caução para derivas no passado, mesmo que esses passados estejam contaminados pela humilhação dos Homens e tenham dissolvido a dignidade numa peçonha indistinta. O esquecimento subleva-se contra a fatura pesada do presente – diz-se: tantas oportunidades e a pessoa comum fica à margem dos proveitos. Quando os radicais juram fidelidade à democracia, é apenas um truque de retórica. Não se alistam como radicais, disfarçando o radicalismo atrás das cortinas onde projetam a reeducação da democracia. Uma democracia tutelada, contingente, dependente de muitos requisitos que a malbaratam; uma democracia que fraqueja na medida inversa da política musculada que é oferecida como alternativa e que encontra eco em muitos que transigem com a limitação das liberdades. 

Este é um palco puído onde tudo se passa no estertor de uma cortina que não disfarça o tempo baço que nos estrangula. O ar pesado, claustrofóbico, ora anestesia o pensamento dos que candidamente capitulam, ora ferve-o em extravagantes incursões dos que malsinam a moderação. Não se sabe quando será o auge desta deriva demencial. Não se sabe que preço teremos de pagar, entre infâmia, corrupção da dignidade e empobrecimento de espíritos, liberdades cerceadas e, quem sabe?, mortes outra vez por delito de opinião, até que esta claustrofobia se abata sobre nós como sinal da nossa inviabilidade.

Estes são tempos que convocam o diletantismo da humanidade que está constantemente a esquecer-se do que a trouxe até ao presente. O futuro próximo parece estar por conta de um desarmante pessimismo em relação aos Homens.

15.4.25

O destempo

Deftones, “Passenger” (Mike Shinoda Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=SRdZTZE5pOA

As velas assisadas temperam o modo como os destemidos abocanham o mar. Desafiam os desafios, caldeando os medos que apenas pertencem aos que não são do mar. Dir-se-ia: a pesca como arte sobrante, pois quantas são as vezes que os pescadores se fazem ao mar sem ser como último reduto? 

Não é ao acaso que os pescadores pertencem aos mares. Muitos seus antecessores tiveram uma última lida fatal e, feitos náufragos, passaram a pertencer ao mar. Este foi o seu túmulo, costurando o protesto dos entes queridos que amaldiçoam o mar por não ter devolvido os corpos.

Quando desembarcam, têm contas a acertar com o tempo. Longas temporadas sem verem terra exacerba as saudades e as necessidades. Concorrem contra o tempo. Não usam relógios. Acreditam que a omissão ajuda a mentir ao tempo. Os pescadores sabem que o tempo conspira contra eles. Duplamente. Como medida que encurta os dias até que voltem a arranjar lugar na vastidão do oceano. E como contingência que desordena a faina e pode ser fatal, se a ira colorir os ventos e uma tempestade aleijar o mar que depois aleija a embarcação.

Por isso, os pescadores fogem dos relógios. Não querem saber do tempo. Abusam dos atrasos: nos almoços com os amigos que ficaram em terra, nos deveres com os filhos e as consortes, nos deveres consigo mesmos: adiam idas a médicos, adiam o seguro de vida que garante a sobrevivência da família se não regressarem da faina, adiam a conversa com o amigo que ficou pendurada por diferenças insignificantes – e voltam até a adiar os adiamentos que vêm de trás. Durante o tempo em que entram em destempo, fingem que não vieram a terra. Parece que se empenharam totalmente aos mares. Só sabem viver no mar.

Se os mercados fossem justos, o peixe mercadejado na lota seria muito mais caro. Para remunerar com justeza os pescadores que dão, com o seu trabalho, todo o peixe que alimenta a gastronomia do lugar e as mesas das famílias. Os mercados e quem a eles recorre seriam a segurança social dos pescadores. Para compensar o destempo de que são vítimas.

14.4.25

Erva ruim

In the Nursery, “Burnished Days”, in https://www.youtube.com/watch?v=eFugHL9rk8Y

O estandarte por muitos vedado, o estatuto de apóstata numa tática ponderação de hilota. E, contudo, não era o desassossego perene que o incomodava por se sentir não desejado; não podia excluir a possibilidade de haver um erro de diagnóstico e não fosse proscrito. E mesmo que fosse, levantando a hipótese de mau juízo de valor, não se sentia interiormente sequestrado pela visão da erva ruim que crescia com os dias consecutivos.

Podia ser por excesso de voluntarismo. A vontade terçava as teias por onde se movia a identificação omissa. Sobrava, como destino inapelável, a reclusão a uma cela imaginária onde não haveria contacto com o exterior, de onde escondia o olhar sobre o espaço limítrofe, fruindo a exacerbada solidão a que se remetera. Mesmo sabendo que era apenas um fingimento.

Indagando as causas, a hipótese de conforto avivava o dissabor quando tivera de ativar a convivência. Concedia: não eram águas em que pudesse sentir confortável navegação, os outros sempre corpos estranhos que não representavam apelidos em que se reconhecesse. Dentro de si era consensual a noção de que o problema não eram os outros. Seu era o acantonamento a uma insularidade intencional, sistematicamente desconfiado dos outros, descaindo para a antropofobia que se autoalimentava. De cada vez que arriscava parar para se situar, achava-se num lugar ainda mais distante.

Sua era a daninha condição nos meandros de um meio a que fingia não pertencer. Submetida a ilusória condição ao escrutínio da consciência, algumas interrogações pairavam, estáticas. Delas era a responsabilidade por não ter sido condenado a um estatuto de irremediável misantropia. O seu avesso apelava a um sentido crítico de que intencionalmente escapava para questionar se ser daninha erva era o fado com um lacre tatuado com permanência.

Ficava dividido entre estes dois hemisférios que não tinham medidas simétricas. Quando apelava ao murmúrio crítico do seu avesso, amoedava o arrependimento de não saber, ou não conseguir, ser um ser social. Nesses momentos raros – que não sabia se podia cunhar como intervalos de lucidez – não ficava seguro que estivesse condenado a ser a erva ruim de uma planície toda ela composta por outras também daninhas ervas.

11.4.25

Instalação

The Limiñanas, “The Dancer”, in https://www.youtube.com/watch?v=TUL9Gv8Zedc

Basalto; da cor do basalto enchem as palavras que sobem à boca, como se de poluição estivessem servidas para serem como corta-fogos, dissolvendo a poluição maior na poluição por elas gerada.

Era só uma ideia – conceptual. Lá fora, os mastros estavam nus. O funcionário competente esqueceu-se de hastear as bandeiras, o funcionário assim incompetente. Ou talvez não: e no âmago da sua escondida e superior competência, o funcionário castigou os países deixando as bandeiras sem haste. As pessoas passavam, indiferentes. O sinal máximo da irrelevância das nações que durante tanto tempo tanto mal fizeram à espécie de que são feitas. 

O cenário não foi indiferente a um artista. Aproveitou a ideia para uma instalação: pelas salas da galeria de arte, espalhados ao acaso, mastros sem bandeiras. No espaço sobranceiro a cada mastro, uma cartolina em branco convidando os visitantes a deporem palavras sobre a bandeira que imaginaram para o mastro deserto. As palavras eram escritas com uma pedra basáltica.

O embaixador de um país pequeno que se vê muito maior ao espelho protestou contra as palavras desagradáveis que um visitante escreveu sob o mastro que fez corresponder a esse país. O orgulho fátuo congemina as conspirações também elas fátuas. A pequenez de espírito abraça-se ao desassossego que se levanta com palavras que são contempladas como provocações. O artista, numa declaração de solidariedade com o anónimo visitante, protestou contra o protesto da embaixada. E agradeceu ao irascível embaixador, que, desorientado, confirmou o propósito da instalação.

No dia seguinte, as paredes da galeria de arte estavam enfeitadas com palavras de ordem a favor do “país ultrajado” (a expressão é da autoria do autor do protesto). Com uma nota de rodapé, as letras pequenas de um contrato que, neste caso, eram mesmo para ser lidas: “emoldurado em lei de basalto”, soando a provocação. Os donos da galeria de arte agradeceram o gesto. Com a colaboração do artista, emitiram uma declaração aos órgãos de comunicação social: 

“As paredes da galeria de arte foram pintadas com dizeres ofensivos à galeria e ao artista e palavras de glorificação ao país que se considerou insultado com a instalação. O artista e a galeria agradecem a deferência. As sensibilidades exacerbadas reforçam a causa da instalação.”

No dia seguinte, o funcionário da organização internacional voltou a provar a sua inestimável competência. Hasteou todas as bandeiras, menos a do país que protestou contra a instalação artística. Foi um pé-de-vento diplomático! O país, pela voz do embaixador que parecia no limiar da apoplexia, exigiu o apuramento de responsabilidades e a demissão do funcionário responsável pela omissão e dos seus superiores hierárquicos. 

O episódio só não tomou outras proporções porque foi gorada uma tentativa de assassinato de um funcionário da organização ao acaso. A bomba foi preparada por amadores e a detonação foi uma coisa pífia. Não houve feridos, só um susto. Daí para a frente, os países poderosos moveram-se nos bastidores e puseram o país pária em sentido. E a instalação artística esteve na galeria seis meses após a data prevista para a sua desinstalação.

10.4.25

O Euro (não) tem as costas largas

Turnstile, “Never Enough”, in https://www.youtube.com/watch?v=Nfk1Su1Q8SI

“O Euro foi criado contra o Dólar.” 

José Manuel Fernandes, Rádio Observador, 08.04.25

A imputação de culpas é uma tarefa eivada de subjetividade. Mesmo quando estão estabelecidos parâmetros de análise que intuem uma carga objetiva de modo a travar a subjetividade da análise (que, neste caso, será entendida como um óbice). Há alguma abertura para a flexibilidade hermenêutica; quando a matéria em análise é permeável a contributos de diferentes ciências, a falta de consenso ajuda a perturbar a objetividade, mas ganha-se em riqueza por fermentarem diferentes abordagens e pontos-de-vista. É sempre melhor do que o pensamento único, ou a sua derivação, o pensamento dominante.

Quando ouvi as palavras de José Manuel Fernandes (JMF), citadas no início deste artigo, apanhei o raciocínio a meio. Ao que pude perceber, JMF procurava ajudar no entendimento destas palavras proferidas por Trump: “a União Europeia formou-se para nos prejudicar, para criar uma situação de monopólio, uma força unificada contra os EUA no comércio” (Público, 08.04.25, p. 3). Para ajudar a contextualizar, JMF afirmou, perentoriamente, que o Euro foi criado contra o Dólar dos EUA (USD), parecendo mimetizar o argumentário de Trump, deslocando-se da vertente comercial para a vertente monetária. Talvez por perceber, um pouco a destempo, que a comparação era descabida, JMF apressou-se a apresentar o registo de interesses: as políticas de Trump são indefensáveis, Trump faz mal ao mundo, e etc. Mas logo depois voltou à sua ideia: “vamos por água nos pulsos”, sugeriu, para reconhecermos que a moeda única europeia foi criada com o propósito de antagonizar o USD.

Pese embora ser favorável ao debate que enriquece com a concorrência de ideias (ganhamos muito em tomar conhecimento das ideias diferentes das nossas, com as quais possamos discordar), aproveito este espaço para elucidar o(a) leitor(a), e contribuir para o esclarecimento de JMF, pois o seu juízo de valor do Euro é manifestamente descontextualizado. Até a literatura que sempre foi cética em relação à moeda única não reconhece qualquer laivo de hostilidade dos arquitetos do Euro relativamente ao USD. 

Talvez um pouco de História ajude o(a) leitor(a) e JMF a sopesar os acontecimentos. É preciso recuar ao Acordo de Bretton Woods (JMF invocou-o) para perceber o papel de âncora do USD. Esta era a única moeda convertível em ouro. Era em relação ao USD (e ao ouro) que as demais moedas do Sistema Monetário Internacional (SMI) podiam oscilar no máximo 1% (no sentido da revalorização ou da desvalorização). Para perceber o alcance dos privilégios dos EUA, aconselho o(a) leitor(a) (e JMF) a ler um livro do mal-amado Varoufakis sobre o privilégio exorbitante detido pelos EUA enquanto o USD foi a moeda-âncora do SMI. Todavia, o SMI sofreu contratempos a partir de meados da década de 60 do século XX. Foi o presidente Nixon que ateou o rastilho da falência do SMI quando, em 1973, decretou a inconvertibilidade do USD em ouro. Foi o golpe fatal no SMI, terminando uma duradoura era de estabilidade cambial necessária para facilitar o comércio internacional e a prosperidade da economia mundial. Os EUA não conseguiram (ou não quiseram) suportar o ónus do privilégio exorbitante. Não foram atacados por ninguém, economicamente falando. A decisão partiu das autoridades dos EUA, que abdicaram do papel atribuído ao USD.

Ao nível europeu, a estabilidade cambial era exigível para materializar as livres trocas intrínsecas à união aduaneira. A partir de 1973, com a elevada volatilidade cambial, o “não-SMI” perturbou o funcionamento da união aduaneira. A liberdade de comércio, e o clima concorrencial que lhe é inato, estavam em causa: por mais que as fronteiras estivessem abertas e importações e exportações entre Estados membros das (então) Comunidades Europeias circulassem livremente, as flutuações cambiais entre as moedas europeias comprometiam o objetivo. A livre concorrência pressuposta na união aduaneira estava sequestrada pelas flutuações cambiais entre as moedas dos Estados europeus: alguns Estados ganhavam competitividade artificial com a desvalorização, outros perdiam-na com a revalorização. Era compreensível que a Europa procurasse uma solução para resolver esta tensão que punha em causa o funcionamento da união aduaneira. A tentativa gorada de criar uma união monetária até 1980, com base no Plano Werner, foi disso sintoma.

O avanço para a União Económica e Monetária (UEM) concretizou-se com a aprovação do Tratado de Maastricht, em 1992. A experiência precursora – o Sistema Monetário Europeu, instituído em 1979 – tinha limitações e foi alvo de ataques especulativos que revelaram as suas fragilidades enquanto acordo cambial. Internamente, as condições políticas atuavam a favor de desenvolvimentos politicamente ambiciosos. É neste contexto que se enquadra a UEM e a criação de uma moeda única e do Banco Central Europeu. Não era aceitável que a autonomia da Europa fosse hipotecada em função dos interesses dos EUA.

É despropositado enquadrar estas iniciativas num contexto de hostilização dos EUA. Tanto mais que os EUA eram, então (mas não certamente por ora), o maior aliado da Europa comunitária. A criação do Euro orientou-se para a salvaguarda das trocas comerciais no interior da União Europeia e para a afirmação da UE como potência económica. Algumas instituições da União e certos governos nacionais foram transparentes ao desejarem que o Euro assumisse um papel internacional, sem que tal ambição pudesse ser entendida como um ataque ao USD. A concorrência monetária no plano internacional era desejável para que a estabilidade cambial não dependesse das variações de uma só moeda e dos humores das autoridades políticas que sobre ela exercem influência. Rivalizar não significa antagonizar. 

Da forma como JMF se situou perante a questão, parece que a Europa estava condenada a gravitar eternamente na órbita dos EUA. Como está à vista, tantos anos depois, a permeabilidade da UE a tamanho estatuto de dependência está a colocá-la contra as cordas. Olhando pelo espelho retrovisor, diga-se: ainda bem que a UE tem o Euro!

9.4.25

Sande de jesuíta

Viagra Boys, “Uno II”, in https://www.youtube.com/watch?v=9kWgvEKIo4c

1

Reparações furtivas no santuário onde as boas almas aprendem a nadar: as conspirações acendem os faróis feéricos e ferem o faro dos faraós do bom comportamento. Zelosos, uns embaixadores da previdência arranjam um plano de contingência para ultrapassar a contingência em que esbarram. São mestres em deixar as contingências à solta e desertos de efeitos os planos de contingência amanhados em cima do estirador da espontaneidade.

2

Ela povoava as ruas por onde passava – dizia-se, sem se ter a noção que as ruas são constantemente povoadas por quem as povoa. Sempre houve gente sobrestimada – é do domínio da História e da injustiça dos Homens. Na rua mais comercial, ela não disfarçava o olhar que se inclinava para as vidraças das lojas impecavelmente flamantes. A cada dia que passava, demorava uns segundos mais, tornando vagaroso o passo para ter tempo para se autocontemplar. Ninguém lhe disse que as montras dos diversos comércios são uma passerelle de ilusões.

3

O clero não podia ter opiniões. Corria à boca pequena. Não podia ter gostos pessoais como as pessoas outras, não clérigas, têm. E ainda há quem proteste contra os privilégios eclesiásticos. Do outro lado, sentiam-se próximos dos sacerdotes castrados de opinião e de gostos pessoais os que têm pudor em os confidenciar. Abdicar dessa cortina era como uma nudez congestionada. Só não foram para padres.

4

 No meio da canícula, o cão vadio procurava água. A rapariga, à saída da escola, foi a única pessoa a dar conta da agonia do cão. Improvisou um recipiente com a tupperware onde levara o almoço e verteu a única garrafa de água que tinha na mochila. Um adulto que passava nas imediações deu um ralhete à menina: “que mau exemplo, menina, deixa o cão sarnento seguir o seu caminho.” A menina não se intimidou e retorquiu que sarnento era sua excelência. Paredes-meias, o cão, em bravo ato de solidariedade com a menina, completou a gratidão mordendo a barriga da perna do homem desapiedado.

5

O artista de cinema tinha muitas rugas, ele estava ali ao lado, em carne e osso. Não era assim nos filmes mais recentes em que participou. Os filmes são isso mesmo: encenações da realidade. E os atores, como bons atores que são, são ótimos a fingir o que não são. Nesse dia, ele perdeu o medo da rugas. E admitiu: valha-nos o cinema para fazer de conta que o mundo lá fora pertence a uma galáxia longínqua.

8.4.25

A casta casta

Royal Blood, “Mountains at Midnight”, in https://www.youtube.com/watch?v=ak-xJYNWfzE

Qual é a métrica da controvérsia? – perguntava, introspetiva, como quem imita o pensador de Rodin, o queixo como balaustrada do pensamento que irradia na direção da mão que procura amparo no queixo profilático. 

Não sei. Ou melhor: sei que a controvérsia é um lábio que contém as impressões digitais de cada um. Algo que te provoca rejeição pode ser indiferente para mim. E o contrário. – respondeu, sem mostrar grande interesse pelo objeto da conversa, que estaria condenado a ser um solilóquio.  

Não te importa que as pessoas destapem a sua intimidade, que anunciem, em forma de fotografias e vídeos, publicados em modernos areópagos da democracia da comunicação, o que dantes estava sob reserva da privacidade? – insistiu, procurando inverter um certo desinteresse no objeto da conversa que notara na resposta à pergunta inicial.

As pessoas fazem o que querem com as suas vidas. Se as expõem, têm de estar preparadas para a publicidade. Devem ser capazes de aguentar a usura dos outros em cima de fragmentos das suas vidas privadas. O que tu chamas – como disseste? modernos... e ela completou: “areópagos da democracia da comunicação” – são uma faculdade que as pessoas usam como entendem. Que não fiquem à margem das consequência do uso: se for parcimonioso, reservam o essencial da sua privacidade; se for extravagante, as suas vidas são expropriadas pelo público que as consumir. E não se diga que a expropriação é indevida. É parte da vontade de quem a expõe. – perante tão prolixa resposta, ela ficou contente: o objeto da conversa já não era indiferente.

Fico abismada com o grau de exposição pública. Até as crianças são mostradas como trofeus voluntários dos progenitores, contra as advertências do mau uso que depois possa ser feito dessas imagens. As pessoas não se contentam em viver as suas vidas. Querem-nas objeto de uma coletivização que se confunde com um grande espaço público onde as vidas deixam de ser privadas para serem objetos. – acrescentou, para manter acesa a conversa.

Não te deves importunar com isso. As pessoas fazem-no no estreito cumprimento da sua autonomia. Usam os instrumentos que agora existem. Não são obrigadas. Dir-me-ás que muitas deles não medem as consequências. Pior para elas. A autonomia tem ser levada aos limites. Não se pode esconder atrás de uma pueril demanda por proteção contra os mastins que se comportem como canibais das vidas alheias. – ripostou, num tom que intencionalmente arrefeceu a conversa, não escondendo um certo enfado por o objeto ainda não ter sido encerrado.

Esta alienação, todavia, deixa-me perplexa. A apatia perante as consequências de as vidas aparecerem nuas diante dos outros é um retrocesso, corresponde à dissolução de uma parte importante da liberdade e da dignidade que tanto custaram a conquistar. As pessoas deixam de ser viáveis como indivíduos. – no seu rosto, as cicatrizes da dor alheia avivavam-se, como se fosse uma súplica para manter viva a conversa.

Não falemos de impossibilidades. Ou de coisas que são atiradas para a irrelevância, porque não as conseguimos controlar; tu e eu não conseguimos, e acrescento, eu não quero, ter mão na vontade que os outros manifestam em relação a si próprios. – e como notou que ela ia retorquir, atalhou caminho: não insistas, pareces aqueles tutores da moralidade coletiva que querem salvar a humanidade de si mesma. Não queiras ser embaixatriz de uma casta muito casta.

7.4.25

Para além da Economia Política do protecionismo trumpiano

Beastie Boys, “Sabotage” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Z6xsKsJqVyg

Não há um dia que passe sem notícias ou comentários sobre os previsíveis efeitos económicos da corrida aos direitos aduaneiros iniciada pela administração Trump. Essa é uma dimensão da escalada protecionista que não pode ser menosprezada. Os efeitos da aplicação de direitos aduaneiros não escapam ao cálculo económico: quem perde, quem ganha, que perdas terão as economias nacionais, quem retalia contra quem, possivelmente desfazendo as contas anteriores, e assim sucessivamente. A maré alta protecionista é o pressentimento da maré baixa económica. Por mais que Trump e os seus conselheiros económicos queiram iludir o conhecimento científico e a confrontação com a realidade, se o rastilho do protecionismo não for apagado o mais certo é todos ficarem a perder quando forem apurados os efeitos do sismo protecionista. 

A guerra comercial planetária contempla outros efeitos que escapam ao radar da Economia. O principal problema talvez nem seja a abjuração do multilateralismo que, com altos e alguns baixos, foi axial após a Segunda Guerra Mundial. Os seus efeitos, longe de estarem consensualizados na literatura, costumam ser reconhecidos como a causa de um longo período de prosperidade económica. Todavia, o que pretendo demonstrar escapa à alçada da Economia, o que me leva a mudar o ângulo de análise para os efeitos até agora anonimizados pela análise dominante.

Em primeiro lugar, a demissão do multilateralismo corporiza um retrocesso na frágil concórdia internacional inaugurada após a Segunda Guerra Mundial. A negação do isolamento e a promoção do entendimento internacional são fundações em que se alicerça a ordem mundial contemporânea. Essa ordem transcende, e em muito, o comércio internacional. Mas esta é uma parte importante da ordem internacional contemporânea. A partir do momento em que um país com as responsabilidades internacionais dos EUA se socorre do arsenal de direitos aduaneiros, hipoteca a lógica do multilateralismo. As feridas abertas não ficam confinadas ao comércio internacional. A desconfiança que rima com o protecionismo pode ter o efeito de um tsunami. O dealbar de uma era protecionista põe em causa a lógica do multilateralismo e contamina outras áreas sensíveis da ordem internacional. Os direitos aduaneiros trazem consigo a desconfiança e a semente da instabilidade, até por partirem de quem não se pode demitir das suas responsabilidades internacionais. A História prova que a instabilidade não é compatível com a prosperidade.

Em segundo lugar, a insensibilidade da administração Trump perante a estabilidade internacional convoca um lugar diferente para os EUA no teatro das Relações Internacionais. Sendo precursores do protecionismo, na ostentação garbosa (mas fátua) da grandeza americana que precede as responsabilidades do país como garante da estabilidade internacional, os EUA perfilam-se como pária. Investem num ensimesmar (“make America great again” – MAGA) que traduz um egoísmo indisfarçado e a indiferença pelos outros países e pela ordem internacional. Só interessam os interesses nacionais e a cooperação é atropelada por ser um obstáculo àqueles interesses. O unilateralismo está em vias de substituir a ordem internacional baseada na cooperação e no multilateralismo. Nesta altura, os mais cínicos sobem a palco para lembrar a ambiguidade internacional dos EUA: em seu favor, argumentam que os EUA sempre privilegiaram os interesses nacionais, que o ensimesmar trumpista é mais do mesmo – só que sem filtros nem máscaras, o crime perpetrado em plena luz do dia e sob o olhar atónito do mundo inteiro. 

Em terceiro lugar, ao assumir o papel de pária internacional, os EUA demitem-se do papel de âncora da ordem internacional. O que traz consequências para a natureza da ordem internacional, com um possível caos resultante da orfandade de liderança como sintoma visível. O futuro dirá se esta demissão de responsabilidades foi intencional a partir do momento em que Trump se virou para o umbigo dos EUA, ou se é um efeito colateral e não previsto da retórica MAGA. A influência dos EUA na ordem internacional está suspensa enquanto a administração Trump dedicar tanta indiferença à estabilidade internacional.

Em quarto lugar, há toda uma simbologia associada ao protecionismo que tem repercussões importantes. Uma das motivações dos direitos aduaneiros é a penalização da competitividade internacional dos produtos importados. Trump não o esconde: quer castigar as importações, tornando-as mais caras no mercado dos EUA, para incentivar os consumidores a comprarem “made in USA”. Esta estratégia é explícita nos propósitos: um desvio de comércio, das importações para os produtos locais; com ela, o reconhecimento de que a competitividade dos produtos fabricados nos EUA depende da aplicação de direitos aduaneiros. É como se o desportista só conseguisse levar a palma aos concorrentes porque se muniu de substâncias dopantes. Foi o próprio presidente dos EUA a admitir a fragilidade da economia do país, ao ponto de admitir que a sua reabilitação depende da punição das importações.

Não sejamos ingénuos: a ordem internacional que promoveu as livre trocas internacionais, com a redução e a abolição de direitos aduaneiros e de outras restrições ao comércio, nunca conseguiu banir a hipótese de os países recorrerem ao arsenal protecionista. Na maior parte das vezes, faziam-no alegando circunstâncias excecionais que justificavam a utilização de medidas protecionistas. A diferença não é de somenos importância: primeiro, esse recurso era excecional e não, como é o caso atual, o início de uma nova era de protecionismo generalizado, com uma guerra comercial sem precedentes; e, segundo, o rastilho foi ateado pelo país com mais responsabilidades na promoção da estabilidade internacional, o que é representativo de um novo estatuto dos EUA e da própria ordem internacional.

Como em tempos sombrios, dominados pelo pessimismo, é de bom tom dissidir e exibir confiança no futuro, pode ser que Trump se arrependa e enterre o machado da guerra comercial para a tornar uma espécie em vias de extinção.

4.4.25

A monstra e o belo

Sharon Van Etten & The Attachment Theory, “Trouble” (live from the Chruch Studies London), in https://www.youtube.com/watch?v=jUiLrV5AC_g

A opulência do mundo esbarrava no avesso de que se compõe. Insistia-se em desafiar o prescrevido, as convenções rombas avançavam no desmedo da decadência. Já não se sentia o aroma a capitulação como ensaio dos mandantes para tutelarem suseranos amordaçados. Se havia petições, não tinham princípio: elas emasculavam os nós górdios que impediam o pensamento de levantar voo. As grilhetas tinham sido estroncadas. Cheirava a liberdade; a uma liberdade como nunca dantes fora sentida.

De fora dos estribilhos, as palavras vagueavam sem regras. Eram usadas como uma apoteose do momento. Prósperas promessas de literatura, mesmo que não viessem a ser guardadas em páginas tatuadas por letra de forma. Uma certa fala não contrabandeada, como se suas fossem as regras omissas como fundamento de não se tornar puída, o arremessar de palavras tornadas ambíguas por se tornarem numa caixa de Pandora gongórica.

Era neste mar de avessos que se terçavam os desafios heurísticos. Um planisfério de opostos, jogando as mordaças de outrora contra a apneia dos sentidos, contra a hibernação forçada como esteio da obediência que era uma casta medida para o interesse dos mandantes. As farsas eram apenas a encenação visível que subia à cena, na teatralização necessária para escapar aos logros visíveis. Era neste palco que contracenavam a monstra e o belo.

O belo não se atinha à linhagem habitual que servia de formato à beleza. A monstra também dissidia dos cânones: por mais que se protestasse contra a dominação masculina, por mais que estivesse enraizado o fermento da desigualdade em desfavor do feminino, os monstros eram habitualmente masculinos. 

O belo e a monstra dialogavam nos interstícios da filosofia. Falavam como se estivessem a declamar poesia. Não fugiam das demandas, por mais exigentes que fossem no estipêndio envolvido. Diluam-se no seus papeis: a monstra mostrava a faceta bela e o belo não escondia a feiura que secretamente contrastava com a beleza.  Até se diluírem as diferenças, à mercê das falas de ambos. Até serem diferentes, pelo avesso que de si erigiram.

3.4.25

Louvor às costas largas

Ryuichi Sakamoto, “Self Portrait”, in https://www.youtube.com/watch?v=xxL0F5xyx9M

Do proveito da generosidade em proveito alheio, medram largas as costas a preceito. A insalubridade da culpa é a ignição para esta generosidade. Diz-se: são as costas largas que recurvam as responsabilidades de outrem, mas que os outros se demitem de corresponder.

Diz-se: a expatriação das culpas assumidas pelos mecenas da inculpação em nome alheio perfuma a espécie com um odor que contraria a implosão de fétidas substancias que a possam infetar. Oferecer as costas como se fossem um largo estuário onde cabem, bem repartidas, as culpas inadmitidas por outros, é um desprendimento ímpar que ajuda a contemplar a humanidade por uma lente opaca; ajuda a tolerar a espécie, contrariando o mortuário de pessimismo antropológico que espuma pela boca da escotilha.

Às costas, que têm de ser largas, repousam as responsabilidades enjeitadas. São elas que esconjuram a irresponsabilidade num simulacro de fingimento que apenas esconde a intenção de iludir as culpas que têm de aterrar algures. Louvem-se os mecenas que se oferecem, com seus dorsos musculados, para partilhar as responsabilidades que assim não desvivem solteiras. Saber que num ancoradouro se encontra o paradeiro de umas largas costas é o dicionário onde se esconde a salvação. Desmontam-se as conspirações espúrias que endossam as culpas de pessoa em pessoa, como se o processo de transmissão acabasse por dissolver os átomos da culpa e ela findasse exangue, entregue à sua sindicância irresponsável.

Os portadores de largas costas vivem imersos num injusto anonimato. A eles são devidas as maiores comendas que, todavia, são apostas em quem muito menos deu de contributo para a ascese. Não protestam, nem se intimidam com o despropósito que os desvincula de condecorações merecidas; não alquebram, prostrados ao irreconhecimento. Faz parte das largas costas com que se apresentam ao mundo. Estas são as singulares credenciais que são as mudas garantias de sobrevivência. 

Não fossem por todas as costas largas, daríamos à costa como casta errante. Distantes de qualquer salvação reconhecida ou idealizada; apenas embaixadores potenciais da decadência irremediável.