31.8.06

A literacia através de cartas de amor


Como se fosse a continuação do texto de ontem: a ideia só podia vir da equipa de Tony Blair. A crónica de Joaquim Fidalgo no Público de ontem revela o contexto. Rezam as estatísticas que vinte por cento das mulheres britânicas jamais foram agraciadas com uma carta de amor. As estatísticas são impiedosas para quem as ama (sem distinção de sexo, para não incorrer no discurso sexista e politicamente incorrecto que, como adiante se verá, transpira da proposta do governo britânico): há um atraso considerável na entrega de cartas de amor, pois metade das inquiridas já as não lê há mais de dez anos.

Para grandes males, grandes remédios. Com a generosa chancela das autoridades – que, quando têm como prioridade as “preocupações sociais”, se desmultiplicam em imaginativas oferendas que colocam o ordeiro e acéfalo rebanho no caminho certo. Da cartola saltou um programa governamental (“Get On”), cursos gratuitos para que os adultos ponham os seus sentimentos no papel. Seria altura para advertir os incautos de uma famosa expressão cultivada pelos economistas: “não há almoços grátis”. Aquela gratuitidade é-o apenas para os que forem destinatários dos cursos de cartas de amor. Ao resto dos cidadãos, sai caro – são eles que pagam essa aparente gratuitidade.

A ideia é original, mas nem toda a originalidade tem um travo adocicado. Pego nas palavras de Joaquim Fidalgo: como há atraso nas cartas de amor, “por isso é que o governo britânico, através de um seu Departamento de Educação e Competências, quer pôr os homens a escrever mais, tendo decidido, entre outras estratégias destinadas a melhorar a literacia, convencê-los a que escrevem mais…cartas de amor”. E matam-se dois coelhos de uma vez só: aumenta-se a literacia, promove-se o bem-estar das relações sentimentais. Já estou a adivinhar os advogados, quais abutres sempre vigilantes à espera de debicar carcassas acabadas de fenecer, a protestar contra a medida. Quanto mais cartas de amor forem escritas, mais casamentos se salvam, menos serão os divórcios que enriquecem advogados insensíveis à desgraça alheia.

Três perplexidades na medida. Primeira: uma incongruência entre esta arrebatadora ideia e a retórica politicamente correcta do combate às desigualdades entre os sexos. Retórica tão cara à esquerda moderna e esclarecida onde militam Blair e discípulos. As mulheres que anseiam por receber uma carta de amor podem ser homossexuais. Aí, a iniciativa da escrita de cartas de amor não pode partir de homens. Não faz sentido promover os cursos de cartas de amor e destiná-los a um público-alvo feito de homens boçais, mais amantes da cerveja e do futebol (por esta ordem) do que das suas caras-metade. Há verdadeiras amazonas ansiosas por frequentar esses cursos, para renovar uma relação que se esfuma ou conquistar a peça que mostra alguma resistência em cair no engodo. Já estou a ver a solução para o imbróglio: como se inventou um ministério para o fitness, pode-se criar um ministério para a igualdade dos sexos. E, já agora, promover a ministério a arte das cartas de amor. Até o governo engordar aos seiscentos e vinte e nove ministérios.

Segunda perplexidade: um recuo no tempo, logo numa era em que são elogiados os avanços da tecnologia. Regresso às estatísticas reveladas por Joaquim Fidalgo: entre as mulheres que andam tristonhas por não serem destinatárias de cartas de amor, “85 por cento das raparigas entre os 18 e os 29 anos disseram que preferiam receber uma carta de amor “à antiga”, escrita à mão, em vez de uma mensagem escrita em computador e enviada por correio electrónico”. As palavras manuscritas serão a expressão do sentimento de quem as escreveu, naquele momento de arrebatamento com a magia que palavras mil não conseguem descrever. Ou as cartas de amor serão a excepção na corrente inexorável da tecnologia – que até faz com que a escrita seja reinventada, como acontece com o quase ininteligível linguajar das mensagens de telemóvel – ou quando as senhoras são acometidas pela nostalgia do amor tórrido de outrora recuam no tempo, e param quando mensagens de correio electrónico e de telemóvel não existiam. São difíceis de satisfazer, estas mulheres!
Terceira perplexidade: a incumbência das cartas de amor é um exclusivo do sexo masculino? Não percebo esta ideia de que aos homens (e agora regresso ao discurso homofóbico…), e só aos homens, competem os passos que desatam os nós de uma relação. E porque não as mulheres começarem a escrever cartas de amor? Como é errada esta visão do mundo, feita dicotomia, em que o homem é agente activo e a mulher agente passivo do amor. Fica a ideia para o ministério número seiscentos e trinta: o ministério para fazer com que os homens sejam destinatários de cartas de amor.
(Limerick, Irlanda)

30.8.06

Até a forma física merece ministério


Diria um cineasta, “a vida é bela”. Por muitos motivos, que todos conseguimos avançar com celeridade para cima da mesa. Um deles, digo eu, pelo inusitado com que tropeçamos a espaços. Há surpresas boas, tiradas de mestre que fazem avançar o mundo. Há outro tipo de insólito que apenas nos deixa boquiabertos, a inquirir como é possível tanta imbecilidade ser apascentada por um grupo de mentes iluminadas.

Há dias soube-se que o sorridente Tony Blair decidiu adicionar mais um ministério à orgânica do governo: o “ministry for fitness” – qualquer coisa como ministério para a (boa) forma física (em tradução livre). Nomeou uma senhora, cujo nome deixei perdido no quarto dos esquecimentos. Assim que tomou posse, a senhora ministra afirmou que ia obrigar os súbditos do reino a praticar exercício físico. Talvez haja alguma lógica economicista escondida detrás desta medida perfumada com o tom das “medidas sociais”. O sedentarismo leva precocemente mais gente, e mais jovem, para os cemitérios. Quando a coisa não corre tão mal, os que se recusam a mover uma palha (falando de exercício físico) são acometidos de graves padecimentos. Num caso como noutro há uma factura mais gorda a bater à porta da segurança social. Suspeito que o utilitarista Blair não está verdadeiramente preocupado com a saúde de quem governa; apenas com a saúde das contas públicas.

Vou deixar de lado a verdadeira motivação da inusitada medida. Vou abraçar-me à ingenuidade de quem acredita que esta decisão é exemplar das boas “políticas sociais”. Dúvida sem resposta: como é que a senhora ministra da forma física vai obrigar os britânicos a praticar mais exercício físico? Podia a senhora confessar o seu exagero retórico. Podia descer à terra e reformular as suas bombásticas promessas; e dizer que vai gastar rios de dinheiro com campanhas publicitárias que sensibilizem os súbditos acerca dos benefícios de corridas, abdominais, natação e afins.

Mais despesa pública, com as tais campanhas que irão invadir o quotidiano dos britânicos. Não tenho legitimidade para protestar contra essa despesa – serei advertido pelos mais atentos. É verdade que não pago impostos no Reino Unido, o que prejudica a minha legitimidade. Contudo, temo que este seja o primeiro passo para um súbito contágio a outros países. Logo agora que está em moda o “benchmarking”, isto é, os governos dos países copiam os “bons exemplos de governação” (ou que os governantes, na sua tradicional miopia, julgam ser bons exemplos). Sócrates é um admirador confesso de Blair. Fica por saber quanto tempo vai demorar até este governo importar do Reino Unido a ideia do ministério para a forma física. Com subsídios para a populaça começar a frequentar ginásios, porque no Inverno não é aconselhável o exercício ao ar livre. Avisado, este governo não vai querer que a gente anónima não morra do mal e venha a morrer da cura.

Por mais e mais motivos, quantas vezes comezinhos, os governos invadem a esfera individual. O paternalismo do Estado é recorrente, como se, adultos impenitentes das repetidas cabeçadas na parede, precisássemos do governo como substituto dos pais que já não têm o mister de nos educarem. Neste assunto do exercício físico, estou como peixe na água – pela prática regular do jogging matinal que me trouxe um coração de atleta (dizem-no electrocardiogramas e simpáticas técnicas de saúde que os interpretam). O que me custa a admitir é que doravante venha um qualquer ministro para a boa forma física determinar que exercício físico (e em que quantidade) deve cada cidadão fazer. Lá vem o mau feitio à superfície: o simples cenário da existência deste ministério seria pretexto para me entregar nos braços do sedentarismo.
E depois há o perigo de ficarmos, aos magotes, dependentes do exercício físico, meio caminho andado para duas consequências nefastas: a sede do “altius, fortius, citius”, porta entreaberta para substâncias dopantes, para maximizar o rendimento físico e depois arcar com os efeitos secundários dessas drogas; o espírito competitivo alimenta mais filiados nas várias modalidades desportivas. Fortalecendo as federações respectivas. E contribuindo para a emancipação do desporto em relação à vida civil. O desporto rivalizaria com os militares, que também reclamam um estatuto à parte entre os demais mortais. Ocorre-me uma inquietante interrogação: queremos mais lodaçais como o que empesta o futebol?
O melhor é deixar a decisão a cada pessoa. Sem interferências de putativos engenheiros sociais que teimam em fazer as vezes de penhores da consciência social. E deixar que cada pessoa decida ser sedentária ou fanática do exercício físico. Deixar cada pessoa assumir-se como um adulto que não carece da omnipresente tutela dos governos.

29.8.06

Porque morrem emigrantes no alto mar?


De ano para ano, levas de emigrantes da África sub-sahariana fogem do chão pátrio para a Europa. Ocorre-me um lugar comum para descrever a fuga colectiva: a busca do prometido eldorado. Para muitos, a última vez que avistam terra firme é quando, já embarcados, se perfila ao longe a costa que os viu partir. Para esses, o mar é a sepultura. A promessa ficou por cumprir. O expoente máximo da infelicidade, por quererem escapar a uma vida indigna e afinal partirem rumo à morte. Alguns dirão que para os abandonados pelos deuses a morte será um mal menor, comparado com a vida de privações que lhes trouxe o travo amargo da existência desumana.

De ano para ano, são mais frequentes as imagens de um bote virado numa praia do sul de Espanha ou das Canárias, negros tiritando de frio a serem recolhidos pela polícia, ou um cadáver que jaz escondido dos olhares indiscretos por um cobertor impessoal. Mais e mais vidas se perdem na longa língua do mar traiçoeiro que separa da terra prometida. Sem saberem ao que vão, quantas vezes, embarcam rumo ao desconhecido. Acreditam que será melhor do que a vida miserável que os escolheu na terra onde nasceram. Depressa o êxodo organizado alimentou oportunidades de negócio. Depressa saltaram da toca mercenários de almas que fazem riqueza com a desgraça alheia. Arranjam um transporte inseguro, atafulham a frágil embarcação com uma multidão de negros que foge da inclemência destinada até ao fim dos seus dias.

Alguns exemplos de sucesso de emigrantes que conseguiram aportar terra segura e estabilizar a vida no continente europeu aguçam o apetite de outros que vegetam pelos países onde campeia a miséria. Esses escassos exemplos de felicidade são o chamariz para a turba que prefere tentar a sua sorte no escuro. Alguns entram no prometido paraíso. Outros conseguem entrar mas são logo detectados pela polícia. Aventura fracassada com o objectivo à vista. Regressam a casa, com o beneplácito das autoridades que os devolvem à procedência através de um meio de transporte seguro (o avião).

Os que derrotaram a morte escondida nas ondas do mar e a polícia que os esperava no areal deserto beijado pela embarcação, depressa percebem que o paraíso é uma promessa ilusória. Perseguidos pelo fantasma da deportação, vivem um quotidiano angustiado. Expõem-se ao aproveitamento insidioso de empresários oportunistas, que não olham a meios para tirar partido da situação frágil destes imigrantes. Salários indignos e longas jornadas de trabalho, uma força de trabalho barata, mais lucro fácil no horizonte. A indignidade humana a gritar bem alto. Que não venham outros oportunistas com a retórica dos males do capitalismo para diagnosticar o problema. O problema ultrapassa doutrinas económicas. É da natureza humana: na sua avareza, na sua ambição ilimitada que ofusca os meios quando o que mais conta são os fins a atingir.

Por cá, mergulhados na afluência material, olhamos com distância ao drama humano que se passa nas praias das Canárias e do sul de Espanha. No conforto das nossas casas dissertamos sobre o drama que passa nos noticiários. A patetice vai de um lado ao outro. Quando ouço ou leio algozes da extrema-direita a reafirmar as suas teses da pureza da raça, ou da nacionalidade, ou o que quer que isso seja nos dias que correm, apetece-me pegar num taco de basebol e desancá-lo nas suas cabeças luminosas. Sempre é a linguagem que esta gente parece perceber. E quando ouço ou leio líricos que vão da esquerda à extrema-esquerda a expiar a sua consciência, argumentando que o problema da emigração se resolve com mais ajuda ao desenvolvimento aos países de onde os emigrantes partem, compreendo as expiações individuais mas não as vejo como solução para o problema.
Que sejam contra o capitalismo, que patrocinem teorias que acusam a colonização do passado pelo subdesenvolvimento do presente, percebe-se. Podiam, ao menos, andar de olhos abertos, discernir a corrupção instalada entre as elites que dominam os países que recebem a escassa ajuda ao desenvolvimento. Deviam perceber como essas ajudas – dinheiro e ajuda em espécie – se perdem nos corredores da corrupção, como enriquecem uma reduzida casta que vive no fausto enquanto uma multidão de concidadãos mergulha na indigna miséria. Zapatero, primeiro-ministro espanhol, não percebe o equívoco em que labora: pode ser compensador para a sua imagem, para a aura de romântico e civilizado émulo dos revolucionários latino-americanos, mas o fluxo da emigração não terá um fim enquanto persistir a pobreza que é promovida por quem governa esses países.

28.8.06

O felino faz jus à alcunha


Se me permitem, uma deriva infantil. Fui ver o Garfield 2. Um filme para maiores de quatro anos. Diverti-me imenso! Afinal, em vez de um Garfield havia dois – o genuíno e o seu sósia, se bem que o sósia estivesse nos antípodas do comportamento do Garfield que nos foi dado a conhecer. A diferença entre a plebe e a nobreza etiquetada britânica.

Mas não é do filme que o texto de hoje trata. O filme é apenas o mote. Ao enorme gosto pessoal por gatos – e felinos de toda a espécie – corresponde a predisposição para assistir com atenção a filmes e documentários em que os felinos são protagonistas. Se nos documentários do tipo científico a seriedade da ciência cauciona um tratamento honesto para os felinos, sempre me causou estranheza o lugar menor que aos gatos era reservado no universo dos desenhos animados. Lembro-mo do Tom e Jerry e de outros desenhos animados em que o mau da fita era um gato preto e branco (cujo nome não me ocorre) e o anjinho era um pintainho amarelo sempre a escapulir-se das maldades reiteradas do gato.

E causa-me espécie quando o gato encarna a maldade e quem é elevado ao altar da bondade é um rato – respectivamente, Tom e Jerry. Passo a explicar a estranheza. O rato é um bicho asqueroso, uma fonte de sujidade e de doenças. É perseguido pela sociedade. Nem se dá o caso de haver protecção especial ao rato num lugar recôndito do planeta. As vacas são sagradas na Índia. Cirandam pelas ruas, intocáveis, como por aqui andam os cães e os gatos. Se pelo ocidente o cão ocupa um lugar de excelência como animal de companhia, em certos países asiáticos a desdita bate-lhes à porta quando são liquidados para aparecerem à mesa como iguaria. Apesar das diferenças de estatuto variarem de lugar para lugar para certos animais, o rato ocupa um lugar consensual. Em todos os lugares, vive remetido à clandestinidade. Na escuridão das caves, sempre em fuga dos humanos e dos gatos vadios que tantas vezes são tolerados pelos oportunistas humanos na sua função de exímios caçadores de ratos.

As senhoras saltam horripiladas para cima das mesas ou de muros quando deparam com um rato. Já vi um enorme grand danois a guinchar de medo quando um pequeno rato se pôs em bicos de pés, pose ameaçadora, brioso pequenote enfrentando o Golias amedrontado. As pessoas semeiam veneno para rato quando a praga destrói coisas armazenadas. Os ratos cinzentos escondidos da presença humana são criaturas feias, que causam a náusea à pessoa comum. A prova dos nove: tirando uma casta de ratinhos albinos que certas pessoas gostam de amestrar, não há notícia de ratos arregimentados como animais de companhia. São batidos aos pontos por outras espécies que com eles rivalizam pela repugnância que causam – répteis de variada espécie que existem em certos lares como animais de estimação. Em boa verdade, os ratos são dos animais mais perseguidos pela espécie humana.

E mesmo assim os desenhos animados cultivaram uma aura que subverte o estado de coisas a que estamos habituados. Há nisso uma anti-pedagogia que pode causar confusão nas crianças em formação de personalidade. Quando elas assistem a episódios do Tom e Jerry são educadas na ideia que o gato é a personagem maléfica e que o dócil ratinho é o lado bom da história. Como se não bastasse a ideia funesta de que o mundo se resume a um binómio de bons e maus – o que daria pano para mangas pela controvérsia dessa retórica – o diagnóstico piora quando a fábula corporiza um imaginário que se divorcia da realidade. A criancinha apanha um choque quando vai pela rua e vê um homem endemoninhado a correr um inocente rato à vassourada. Indignado com o perverso homem, protesta a sua queixa à progenitora. Mais admirado ficará quando a progenitora confessar o seu asco com a criatura que fugia, esbaforida, da vassourada.
Tom e Jerry são uma infelicidade em forma de desenho animado. Um contributo para a confusão mental de criancinhas em formação de personalidade. E uma subversão da realidade. Ou talvez não. Porventura estes desenhos animados estavam muito avançados para a época. Quando nem sequer se sonhava com a ideia da discriminação positiva, hoje tão em moda, Tom e Jerry lançaram as primeiras sementes para a discriminação positiva. Através dos episódios de Tom e Jerry pudemos testemunhar como a vítima da sociedade foi transformada no papel de herói. Infelizmente, à custa do gato.

25.8.06

Os indispensáveis


Todos julgamos que o somos. Faz parte da singularidade de cada pessoa. A diferença para os demais é o código genético da mais valia que temos para oferecer. Sem percebermos que o cemitério é o único lugar repleto de indispensáveis.

Há alguns que se arvoram na condição de indispensáveis, esses mais que os restantes. Encaixam-se em duas categorias. Os que nunca tiveram oportunidade para provar as inestimáveis qualidades que poderiam ser colocadas à disposição do colectivo. E os que já tiveram o ensejo de exercer poder, mas que dele foram desapossados – vicissitudes da alternância partidária, ou um simples acaso que colocou alguém mais competente à sua frente, ou simplesmente alguém com as costas mais quentes. Estes indispensáveis olham-se ao espelho e sabem que o reflexo é um exemplar de excelência, um eleito, qualidades muito acima da média. Consideram-se uma dádiva para a sociedade.

Quando percebem a ingratidão da sociedade, que não os chama ao escol dos poderosos, destilam raiva. Tornam-se amargurados, sentem-se injustiçados no desaproveitamento das suas excelsas aptidões. Os que o rodeiam provam repetidamente o seu feitio irascível. No casulo em que se refugiam, moldam reservas contra a ignara sociedade. Enclausurados na monástica forma de ser, cultivam a suspeita. Na sua cabeça fervilham impensáveis cenários conspirativos, como se o mundo acordasse todos os dias e estivesse, inteiro, contra eles, os eternamente injustiçados.

Há uma nota dissonante que fermenta a doentia personalidade dos indispensáveis. Um hiato profundo entre as ambições desmedidas e a frustração de ver as ambições sempre adiadas. As ambições confundem-se com sonhos. É no domínio do onírico que alimentam a verve de indispensáveis. Vivem no mundo da ilusão. E nesse plano arquitectam os pretextos para fracassos pessoais. Choram pelas oportunidades que não conseguem ter, quando tanto se esforçaram por bater às portas certas que abrissem as janelas por onde iriam refulgir as suas brilhantes aptidões. No mercado do tráfico de influências, por mais que se coloquem em bicos de pés, não conseguem rivalizar com os mais astutos. São estes que vingam, remetendo os demais, os indispensáveis, à solidão dos fracassos pessoais. E aí reforçam o auto-diagnóstico: quanto mais fracassam, quanto mais as ambições ficam adiadas, mais indispensáveis se acham.

Às vezes, trata-se de perda de talentos. Desaproveitados por desencontros da sorte, ou apenas por inépcia que anda de mão dada com o imobilismo dos que acabam por não ultrapassar o limiar dos indispensáveis que não chegam a provar que o são. Muitas vezes, a emigração é a saída final, a tentativa de provar que o estrangeiro é mais pródigo que o chão pátrio. De outras vezes, é um espelho desfocado que os faz crer que são indispensáveis criaturas desaproveitadas pelo colectivo. Ou por subalternizarem as aptidões dos que franqueiam os portões do poder ou do sucesso, ou porque o espelho desfocado exibe uma imagem desproporcionada do que eles são. Como se pequenos Lilliputs fossem retratados pelo espelho como Gullivers prontos a esmagar com a sua falaz sabedoria. Uns e outros campeiam entre o universo dos que reclamam por comiseração. De mão estendida pela esmola que chega na forma de caridade alheia, não vá essa caridade engrossar o leito de um rio caudaloso de tal arte que se transforma na oportunidade para ascenderem ao Olimpo dos eleitos.

Interrogo-me: amiúde, não está a lente desfocada, propositadamente calibrada para aumentar o auto-diagnóstico? Os indispensáveis afinal nunca o chegariam a ser se viessem a entrar na casta dos que exercem poder. Aí se veria que são tão indispensáveis como os que se abarbatam com as sinecuras que fazem sonhar uma pandilha de aspirantes sempre prontos a debicar nas carcassas dos eleitos que desaproveitaram a oportunidade, por inépcia ou por errada avaliação do público.
Gosto de me ver nos antípodas dos indispensáveis. Aliás, se fosse chamado a escolher alguém para comandar os desígnios da nação, de um ministério, de um organismo da administração pública, de uma empresa, ou de uma associação de defesa dos direitos dos animais, ou de um clube de bairro, ou apenas de um clube de fãs do José Cid (que de repente passou de proscrito a visionário), eu seria a última pessoa a ser escolhida.

24.8.06

Não me toques que me tiras o brilho


Algures no meio do trânsito fluído de Agosto – e como apetece que Agosto se repetisse nos outros meses do ano – ouço um fait divers na rádio. Tom Cruise, convertido à cientologia, convidou uma estrela da música pop para sua casa. Impôs à convidada uma bizarra regra: não podia tocar no seu filho, um bebé com poucos meses. Consta que a cientologia, uma seita religiosa radical, impede que os seus membros troquem afectos corporais. Ouvi que faz parte do código educativo da seita impedir que as crianças se entreguem às carícias.

As religiões, na sua assombrosa alienação do ser, são pródigas em estultas imposições que adensam a diluição da liberdade individual. Regras de comportamento para tudo e mais alguma coisa. Umas misturam-se com regras de conduta social, sobretudo nas religiões que ou são oficiais ou foram-no antes de um país se tornar laico por ordem constitucional. Tão enraizada está a religião que os dogmas correm como sangue nas veias da sociedade. Um exemplo: a obrigação de convidar um cura para abençoar obra pública inaugurada com pompa e circunstância. Não vá o diabo tecê-las, há que ungir a obra com a água benta. Nem que haja nesta manifestação uma osmose entre o religioso e uma superstição que remete a cerimónia para o domínio do pagão.

As religiões, com cambiantes, não são simpáticas à libertação do corpo humano. Da história vêm exemplos repetidos de castração do corpo, de repudiação do sexo. Ainda hoje essas intoleráveis intromissões na intimidade do ser se multiplicam. É a teimosia autista da igreja católica em rejeitar métodos contraceptivos como instrumento de planeamento familiar. A mesma teimosia, agora adicionada à ignorância que revela como a igreja é uma anacrónica instituição, ao negar o uso de preservativos como protecção contra a SIDA. Ou a regra, zelosamente respeitada (assim fazem constar) pelos membros da Opus Dei, de apenas terem relações sexuais para procriar. Ou ainda a moral anti-sexual das testemunhas de Jeová (ainda hei-de escrever sobre isto). Agora os fanáticos da cientologia exasperam-se com o toque no corpo humano, nem que o toque seja uma carícia que é demonstração de afecto.

Tom Cruise não beija o filho quando ele desperta do sono nocturno. Cruise (e os outros fanáticos da cientologia) restringem ao mínimo o contacto da sua epiderme com a do filho, mesmo quando actos tão simples como a mudança da fralda, o banho, ou a mudança de roupa fazem parte do quotidiano. Porão luvas, para atenuar o contacto da pele própria com a pele da criança? Desconheço se a cientologia anda de braço dado com a Opus Dei, as testemunhas de Jeová e, no fundo, a igreja católica conservadora, na censura do sexo. Caso contrário, que voltas darão Cruise e companhia para o acto sexual? Só se for sexo por pinças…

Um dos males das religiões é o estado de alienação colectiva que faz um grupo de seguidores entregar-se de corpo e alma às orientações inventadas pelos guias espirituais. Não se questionam os dogmas. Seguem-se, ponto final. Questionar os dogmas pode ser interpretado como um desvio aos alicerces da crença. Para os mais intolerantes, é a porta aberta para a exclusão dos que questionarem os dogmas. Ninguém se interroga porque motivo os ideólogos da religião determinam esta ou aquela orientação. A obediência escrupulosa das imposições arbitrárias é peça determinante da pertença religiosa.

Eu gosto de afectos corporais. Gosto de cumprimentar os meus amigos, de os abraçar quando a distância temporal acentua as saudades. Gosto de beijar os meus pais, todos os dias que os vejo. Adoro sentir a pele suave da minha filha, acariciar os seus cabelos, emoldurar os momentos mágicos em que a pele das minhas mãos se mistura com a pele do seu corpo. Os afectos corporais com a cara-metade são (auto-censurado).
Olho para trás, como os afectos corporais são quase oxigénio para a minha existência, e mais incompreensível me parece a bizarra regra da cientologia. Vejo-os numa cerimónia solene em que são apresentados pela primeira vez a pessoas até então desconhecidas, recusando estender a mão à pessoa estacionada defronte deles: “a minha religião não mo permite”, perante o ar atónito do outro, ali de mão estendida. Terá o famoso dichote “não me toques que me tiras o brilho” sido inventado pelo primeiro adepto da cientologia?

23.8.06

For the Old Times' Sake (5): Sigur Rós, "Svefn g englar"

Punir a publicidade imaginativa?


Regresso à publicidade da Super Bock – mas não apenas a ela. Os publicitários contratados pela Unicer programaram uma campanha de Verão que associa o consumo de cerveja à masculinidade de hormonas aos saltos. Seios com abundância, um desfile de corpos femininos e outdoors mais sugestivos, com mensagens sublimes que remetem para a coisificação da mulher. Um cartaz com uma gota deslizando pela parede gelada de uma tulipa de cerveja, o sucedâneo de um mamilo intumescido. Ou um frame de duas garrafas de cerveja que leva o imaginário masculino a um par de esbeltas pernas femininas. O calor apela à cerveja. E incendeia a libido. Eis a santíssima trindade da Super Bock: Verão, corpos entrelaçados e cerveja. O último episódio: um cartaz grita bem alto: “latin lover”.

Tenho lido reacções negativas à arrojada campanha publicitária. Acusam-na de ser sexista. Denuncia-se o enviesamento da publicidade, como se os consumidores de cerveja fossem homens grotescos que não hesitam em fazer da mulher um objecto. Outros lamentam o mau gosto da campanha publicitária, sobretudo pela profusão de seios femininos. A Super Bock não está sozinha. Pela mesma altura teve rival num refrigerante, o Bi melão, que mostrava uma rapariga de seios avantajados a jogar na praia, abrindo e fechando os braços à medida que impulsionava um objecto oval que deslizava entre duas extremidades de uma corda. A câmara focava, obsessiva, os seios apetitosos da menina. A mensagem vinha depois: o refrigerante é de melão – melão, como se sabe, uma das metáforas que o povo masculino usa para se referir aos seios das mulheres.

Alguns não conseguem calar o incómodo pelo mau gosto de sucessivos anúncios que retratam uma masculinidade dependente de mamas. Sugerem que há ali um complexo pós-fetal mal resolvido da pandilha de publicitários que faz esta publicidade rasteira, fácil. Sem falar na ofensa às mulheres, mais uma vez reduzidas à condição de objectos despersonalizados, coisas com dois cumes entre os braços que levam a homenzarrada à excitação.

Compreendo alguma irritação contra o mau gosto. Mas o mau gosto é património genético da nossa idiossincrasia. Apalpe-se o pulso à estética dominante entre o povo, principalmente entre os grandes consumidores de cerveja (estudos de mercado decerto mostram que são os homens os grandes consumidores de cerveja). Atestado o baixo nível dominante, faz sentido que a publicidade se enquadre no estilo do público-alvo. É a democracia aplicada à publicidade. Sei que, nesta altura, ideólogos do lirismo tiraram a contra-argumentação da cartola: dirão que até a publicidade pode ser educativa, no sentido de moldar os gostos do público-alvo. Ela podia ir mudando hábitos e percepções de uma turba masculina ainda enfeudada em tiques marialvas. Seria uma publicidade civilizadora. Não vou contestar a sugestão. Como não sou publicitário, não decido a mudança de estratégia.

Ao invocar o mau gosto da campanha publicitária que revela a santíssima trindade – Verão, corpos de mulheres, cerveja – fico intrigado como a denúncia se concentra apenas nos spots que sugerem o corpo feminino como um mero objecto. A publicidade está enxameada de exemplos de mau gosto. Que passam incólumes pela pena moralista dos críticos. Ninguém se subleva contra um anúncio do detergente Skip, onde um personagem inenarrável ciranda por ruas estreitas, suponho que de um bairro típico lisboeta, em ambiência de marchas populares, cantando uma música pimba do pior jaez. Ou da publicidade a um banco que usa a música inaudível de Pedro Abrunhosa ou de outro com a irritante música de David Fonseca. Onde estão os guardiães do bom gosto?

Por cima das considerações estéticas, não há lugar à punição da publicidade quando ela é imaginativa. Porque, sendo-o, é uma das facetas mais nobres do ser humano que está a ser exercitada. Pode a imaginação resultar num exercício distorcido de bom gosto. Mas deixemos a imaginação andar de braço dado com a publicidade. Às vezes o produto é um equívoco estético. Mas tantas vezes a imaginação tem dado resultados que merecem aplauso, que tolhê-la é arrepiar caminho à castração daquilo que a publicidade pode representar de bom – uma lufada de ar fresco.
Podemos discordar do resultado final, conotá-lo com um excrementício mau gosto. Em vez de esboçar exercícios moralistas que denunciam essas campanhas publicitárias, temos à nossa disposição um instrumento mais poderoso: decidir não comprar os produtos anunciados em publicidade de mau gosto. O factor repulsivo é a pior penalização. Por isso não compro Skip, nem sou cliente do Millennium Bcp, ou do Banco Português de Investimento. E não se dera o caso de estar em fase abstémia, não deixaria de beber Super Bock.

22.8.06

A dolorosa tarefa de remexer no passado (a confissão do passado nazi de Günter Grass)


Tenho pena das esquerdas mais à esquerda, órfãs de referências com a derrocada do muro de Berlim, com o desaparecimento da União Soviética, a sucessiva liquidação das ditaduras comunistas. Mais um episódio na “orfanização” de referências: Günter Grass, esteio literário destas esquerdas radicais, abriu o coração e confessou o seu tenebroso passado nazi. Não foi uma militância inócua em organizações conotadas com o regime nazi. O escritor foi membro das Waffen SS, um dos expoentes da maldade no labirinto nazi.

O choque foi generalizado. Grass andou meio século a enganar os seus admiradores. Nunca li nada da obra de Grass. Por palavras de outros, soube que Grass se destacou, entre outras coisas, por desafiar a Alemanha a sentar-se no divã para expiar os fantasmas do vergonhoso passado nazi. Mesmo a preceito das tais esquerdas que sempre se afadigaram em lembrar que o nazismo foi a nódoa mais negra da História da humanidade. Conveniências das militâncias ideológicas. Mesmo que muitos dos destacados liquidatários do passado nazi se esquecessem que o país que era a montra da ideologia que seguiam não andava muito longe do nazismo, no registo da opressão e das mortes arbitrárias. É um dos maiores atractivos das ciências sociais, mas ao mesmo tempo o seu maior risco: como o mesmo acontecimento se expõe a interpretações opostas, ou a discricionárias revisões históricas que apagam da memória episódios inconvenientes.

Já houve quem erguesse o dedo acusatório a Grass. A decepção falou mais alto. Sentem-se traídos por Grass ter escondido essa página pintada no mais negro que pode existir. São os que, de um momento para o outro, não hesitam em renegar toda a obra de Grass. Os mesmos que teciam loas à escrita de Grass são acometidos por uma fúria avassaladora que os faz rasgar os milhares de páginas escritas por Grass. Só lhes falta pedir que o prémio Nobel da literatura que recebeu em 1999 lhe seja retirado. A revelação torná-lo-ia indigno da comenda. Como se o que Grass escreveu, decerto com qualidade literária bem acima da média, fosse apagado das estantes porque o escritor vagueou nas fileiras das hediondas Waffen SS.

É o vício incorrigível de refazer o passado. Há dois aspectos que estão em planos diferentes. Um é Grass escritor. A qualidade da sua obra. Os méritos literários. O outro plano é o Grass “político” – político no sentido da posição que todos assumimos perante os fenómenos que nos rodeiam, o alicerce das filiações ideológicas. Os dois planos não se devem misturar. Há quem tenha capacidade para os separar: são os que reconhecem a qualidade da escrita de alguém que assume posições políticas extremistas, fora do teor politicamente correcto para os dias que correm. Que não haja ilusões: na maior parte dos casos, esta condescendência existe porque o escritor se revelou antes do “político”. Duvido que alguém que venha a público assumir posições políticas controversas – para os padrões medianos – e depois enverede pela carreira literária chegue ao estrelato literário. A sua escrita há-de estar manchada pelo preconceito prévio de quem ajuizou as suas posições políticas.

Este episódio mostra a coragem de alguém para expor segredos escondidos décadas a fio. Segredos que, sabe-se agora, teriam o condão de voltar meio mundo contra quem os revelou. Note-se que não estou a fazer as vezes de advogado de defesa de Günter Grass. Porque não é recomendável o seu passado nazi. É cómodo ajuizarmos o passado dos outros, como se os telhados de vidro apenas adejassem as vidas deles, nunca as nossas. Imagino o tormento que Grass viveu todos estes anos, o cárcere privado em que a sua mente mergulhou. Alguns dirão, contra Grass, que escondeu o passado nazi por vergonha. Também se pode argumentar que Grass se arvorou na consciência crítica da Alemanha pós-nazi como íntima expiação dos seus fantasmas. Ainda se dirá que Grass antecipa a hora da morte, não querendo levar consigo esta mácula do seu passado. Como figura pública, quis partilhar com o público um pecadilho que o atormenta. Mesmo sabendo que um exército de admiradores estaria na linha da frente para denunciar a vergonha que se abateu sobre o escritor.
Deve ser doloroso remexer no passado sem orgulho, expor publicamente essas páginas enlameadas. O comportamento habitual deve ser reservar os segredos que envergonham. Grass teve a coragem de se auto-denunciar. Ou apenas foi um golpe de mestre para promover a sua auto-biografia (“Descascando a Cebola”), uma simples mas engenhosa estratégia publicitária. Entretanto, Grass está nas mãos dos tribunais populares que o julgam impiedosamente. É da natureza humana, esta tendência para despromover heróis à condição de vermes. Grass agradece: o livro esgotou assim que tocou os escaparates.

21.8.06

Perpetuar a PIDE

Era uma vez um edifício fantasmagórico, onde a hedionda polícia política da ditadura torturava dissidentes. O edifício está abandonado, degradado. Dele restam as memórias de um passado vergonhoso. Um passado que não convém obliterar do registo histórico, mas que não deve pesar sobre o nosso futuro como uma espada que ameaça voltar a cair a todo o momento.

O edifício é um mastodonte que infecta o centro de Lisboa. Pintura desbotada, bocados de cal que se desprendem da parede, a ameaça latente de ruína. Um museu vivo do que é hoje a ditadura encerrada há mais de trinta anos. Apenas uma lamentável recordação da soberania individual espezinhada por um regime que velava a soberania da nação, como se a nação se sobrepusesse ao indivíduo. Por hoje, já em democracia, há tantos que continuam a acreditar no mesmo – que a soberania do ser deve sucumbir perante a soberania do colectivo. Diferem nos métodos, por não torturarem aqueles que divergem.

Pelo meio da especulação imobiliária que toma conta das cidades, alguém teve a ideia de arrasar o edifício que foi sede da PIDE para construir um condomínio de luxo. Logo saltaram da toca alguns auto-proclamados guardiães da memória “anti-fascista”. Constituiu-se uma associação para impedir que se apagasse da memória este traço indelével do que foi o passado negro da ditadura.

Se há coisa que me deixa perplexo, é o apetite da pessoa para viver agarrada ao passado. Ou porque há tradições aberrantes que são perpetuadas, como se fossem um pedaço do passado transportado até ao presente. Ou porque há registos lamentáveis da História imortalizados em museus, como se os antepassados quisessem mostrar às gerações vindouras uma amálgama de destroços do que eles viveram, dos sacrifícios passados para legar às gerações actuais um presente de tranquilidade, de exercício pacífico das liberdades individuais. É o clamor sôfrego para não varrer da memória os traços sombrios do passado ditatorial. Há momentos de grandiosidade que continuamos a glorificar, como temos uma vontade indómita para relembrar, e de preferência a cada dia que passa, o fantasma do “fascismo” que atormenta as teias de aranha da tumba bem funda onde está enclausurado.

Temos um registo histórico que não pode ser renegado. O bom e o mal são património genético da nossa História colectiva. Não se pode reescrever a História para apagar os momentos de que não nos orgulhamos. Não compreendo como certas personagens vivem paradas no tempo, como se sentissem a necessidade de lamber todos os dias as feridas abertas de um regime que não deixou boas recordações. Dizem-nos que não podemos esquecer os desmandos da ditadura, os sofrimentos de quem esteve entregue às torturas dos carniceiros da polícia política, para que o futuro se lembre, sempre, de preservar a liberdade. Para eles nunca é demais recordar as máculas do passado, não venha a erguer-se de novo o fantasma que cerceia as liberdades individuais.

As personagens que não esquecem o passado querem manter vivos os traços desse passado – ainda que seja um passado sem orgulho. Recusam-se a ver no local da sede da PIDE um vistoso condomínio de luxo. Acham que é um atentado à memória colectiva, um desrespeito por tantos quantos padeceram sofrimentos indizíveis às mãos da PIDE. Temo que em vez de não quererem que o passado seja esquecido, estas personagens não saibam fazer outra coisa senão viver do passado. Sem horizonte outro que não seja o tempo que passou, desdenham do tempo presente e vociferam o amanhã que há-de vir. Fiéis à ideia que ainda não ajustámos as contas com o passado vergonhoso da ditadura. Mesmo que já tenham passado trinta e dois anos após o funeral da ditadura. Mesmo que as maiores ameaças à democracia – que hoje vêm de franjas que se recusam a esquecer o passado “fascista” – sejam inexpressivas e desacreditadas.

Neste afã de reviver o passado enegrecido, vejo a urgência em manter abertas, e bem fundas, as cicatrizes da ditadura. Como se fossem os fautores de um céu pesado, com nuvens plúmbeas, de chicote em riste para que todos os membros do rebanho vivam atormentados com o seu passado colectivo. Um exercício irreprimível de má consciência, como se nunca pudéssemos esquecer os episódios do passado conjunto que nos alimentam a má consciência.
Da minha parte, recuso-me a reescrever a História. Como não me permito viver refém do passado, sobretudo de um passado de que não posso ser responsabilizado. Sim, um condomínio de luxo é preferível a manter de pé um dos esqueletos da ditadura, ainda por cima na sua pior expressão – a PIDE. Se estaria disposto a comprar ali um apartamento? Não, porque não me sentiria confortável ao saber que o meu sono seria feito no local onde outrora tantos estiveram entregues a torturas. Mas admito que haja pessoas a quem este aspecto não seja importante na hora de decidir onde viver. Entre estes ascetas do futuro e as almas penadas do passado “fascista”, prefiro os que têm a capacidade de olhar de frente para o futuro.

18.8.06

On the Hype (4): Interpol, "Evil (live)"

Terrorismo intelectual


Ou já perdi a capacidade de me surpreender com o insólito, ou o mundo está tão louco que já não há nada que seja insólito. Ontem escutei, à hora do jantar, gravações de telefonemas feitos por pessoas que estavam presas no alto das torres gémeas em Nova Iorque, depois de atingidas pelos aviões comandados por radicais islâmicos. As autoridades dos Estados Unidos resolveram tornar públicos alguns desses telefonemas por razões pedagógicas: ensinar ao público o que não fazer em ocasiões semelhantes, para não ocupar demoradamente as linhas dos serviços de emergência em situações de catástrofe.

E ali estávamos, à hora da refeição, a escutar as palavras dilaceradas de uma mulher, as suas derradeiras palavras momentos antes do edifício se desmoronar. A ouvir o clamor desesperado da mulher, angustiada por demorar a ajuda para a resgatar daquele inferno. Como complemento da refeição, serviram-nos palavras doloridas: “vou morrer, não vou?”, perguntava à socorrista, do outro lado da linha. Que, com a frieza típica do treino que os socorristas recebem, tratava de antecipar a extrema-unção da mulher: “faça as suas orações”, decerto já com informações do destino inevitável que esperava as pessoas aprisionadas nas torres gémeas.

Interrogo-me da necessidade de divulgar estas gravações. Não vou no engodo das explicações oficiais. Dizem-nos que houve gente que se pendurou tempo demais no 911 (o 112 deles), levando ao entupimento das linhas, absorvendo recursos que podiam ser destinados a outros locais onde o socorro pudesse chegar em tempo útil. O diálogo servido em bandeja, ontem à noite, era o mostruário do que não se deve fazer em condições semelhantes. Quem doravante vier a estar em situação parecida, que não se agarre desesperadamente ao telefone com uma operadora do 911, como se fosse a confessora que escuta as derradeiras palavras de quem se apresta a deixar a vida.

Desconfiado do propósito da manobra, pergunto-me: não chegava passar a mensagem sem tornar públicas as gravações que ontem se ouviram? Havia necessidade de abrir feridas que ainda não cicatrizaram? Por um momento, tento-me colocar na pele de familiar de uma das vítimas dos execráveis atentados. Ainda que a voz escutada não fosse do ente querido perdido no desabamento das torres gémeas, o simples ecoar daquelas palavras desesperadas trariam a evocação da aflição, do sofrimento que o familiar teria sentido no fatídico 11 de Setembro de 2001. Chama-se a isto terrorismo intelectual. Brincar com os sentimentos das pessoas que mais de perto sofreram com os atentados.

Depois há quem queira traçar uma linha de fronteira entre a avançada civilização ocidental e a barbárie civilizacional dos árabes – numa dicotomia embebida no simplismo das generalizações com a falácia do “we, the good guys; them, the bad guys”. Estes moralistas insurgem-se contra imagens árabes que mostram ao mundo corpos despedaçados, de preferência crianças, depois de um ataque da aviação israelita. Não é que os ditos moralistas não tenham razão. O espectáculo dos corpos esventrados é um cortejo lamentável de inanidade, como se a orgia de sangue e pedaços de carne recolhidos para invadirem a nossa boa consciência não fosse torpe. Têm razão, porque tão indigno como um acto bélico que ceifa vidas inocentes é mostrar ao mundo esses corpos já sem vida, como se desfilassem num palco fétido. É indigno para as vítimas da barbárie. Não bastava terem perdido a vida num acto em si indigno, ainda sofrem a indignidade adicional de desfilarem, já cadáveres, perante os olhos da opinião pública mundial.
Um lamento: esses moralistas apressam-se a denunciar aquela sordidez, mas não usam a mesma bitola quando outro tipo de indignidades acontece do seu lado. Os mesmos moralistas que reprovam o cortejo repugnante de cadáveres das vítimas dos ataques da aviação de Israel nada dirão ao ouvir as palavras aflitas daquela mulher, refém das torres à beira da destruição, que sabia que em poucos minutos iria deixar o mundo dos vivos. Não sei se por distracção, ou apenas porque no tão civilizado ocidente gostamos de ser voyeurs da desgraça alheia, sem que esse voyeurismo seja manifestação de baixeza de espírito. Dois pesos, duas medidas.

17.8.06

Ingenuidade e pragmatismo - ou apenas oportunismo

Nas extremidades de uma escala, a ingenuidade e o pragmatismo. Convivendo em cada pessoa. Vão variando os domínios onde impera agora a ingenuidade, onde ali se destaca o pragmatismo. Quando algum de nós oscila do pragmatismo para a ingenuidade, dir-se-ia que atravessa um longo deserto entre a gélida paisagem árctica e a vegetação frondosa e perfumada dos trópicos.

Assuntos há em que descaímos para uma ingenuidade desarmante, infantil. Há o substrato filosófico que dá cor a essa ingenuidade. Quando actua, a simplicidade destaca-se na análise das coisas. Tudo se resume a uma forma muito simples de diagnosticar os problemas, como simples são as soluções encontradas. Reconhece-se a ingenuidade, vê-se nela um obstáculo intransponível entre a simplicidade com que os olhos vêm as coisas e a forma complexa da realidade. As decepções abundam, quando a ingénua simplicidade toma conta das percepções e os olhos percebem que a realidade está nos antípodas do idealizado.

Outras vezes o espírito salta para a margem oposta, perfilhando uma pragmática forma de ver as coisas. Se há matérias onde a ingenuidade deixa vir à superfície o adolescente empenhado em causas nobres, noutras o realismo apodera-se do ser. Os idealismos são interrogados com veemência, os sentidos perdem a pureza que permitia a entrega à simplicidade ingénua. É a frieza que emerge, como se o corpo se revestisse de uma epiderme áspera, a protecção necessária contra as impurezas com se depara durante o percurso dos dias que correm.

Para o lado ingénuo, quando a frieza pragmática fala mais alto é como se a pessoa se mecanizasse, perdesse dons humanos e entregasse nos braços de uma desapiedada maneira de encarar o mundo, as coisas, as pessoas. Do lado de lá, o hemisfério pragmático denuncia a veia ingénua: o mundo não é o mar de idealismos, por ser a antítese dos idealismos. Logo o lado ingénuo contrapõe que o diabólico pragmatismo é fautor da perversão do mundo, da transformação do ser que o molda à guisa de besta que perde a noção da humanidade e se animaliza. A dialéctica não cessa. O hemisfério pragmático não calará a sua verve. Os idealistas perdidos na labiríntica ingenuidade erram na direcção da relação causal: eles, pragmáticos, são um produto da adaptação às transformações do mundo, não podem ser acusados de terem motivado essas transformações.

Perdidas num diálogo interminável, as duas metades do ser ignoram o óbvio. Na deambulação entre o pragmatismo e a ingenuidade o ser entrega-se à ditadura do oportunismo. Umas vezes é conveniente ser ingénuo. Outras vezes convém ser pragmático. Sempre por imperativo das ideias seguidas, consoante os assuntos onde sejam reclamada uma posição pessoal. O oportunismo, que ora leva à ingenuidade ora ao pragmatismo, é o sinal evidente que ingenuidade e pragmatismo não são espelhos genuínos do que somos. Apenas um produto da formatação que nos invade. Ela determina o vaivém entre os hemisférios da ingenuidade e do pragmatismo.

Mas aqui voltamos ao ponto de partida. O substrato que confere o cimento ao ser não vem dominado ou pelo pragmatismo ou pela ingenuidade? Como se andássemos em círculos, perdidos nas entranhas de um labirinto que, afinal, não tem saída. Diz-se que descaímos para um dos extremos por oportunismo determinado pelo cimento filosófico que sedimenta a textura do que somos. Como se o substrato filosófico fosse a ossatura em que assentamos e a ingenuidade e o pragmatismo o sangue e os músculos (ou vice-versa).
Qualquer que seja a saída para este dilema perfunctório, o que vinga é a percepção do oportunismo. Quando o corpo se inclina para uma das extremidades não pode negar a existência da influência contrária. Ainda que a tente obnubilar, ela existe. Por paradoxal que pareça, a urgência em sublimar uma das facetas acaba por enfatizar aquela que queremos esconder. Quando queremos ser ingénuos, negando validade ao pragmatismo, quem sabe se somos genuinamente pragmáticos? Ao espremer o sumo de uma laranja, queremos aproveitar o suco adocicado, o líquido aveludado sem o travo espinhoso dos caroços e da polpa densificada que ficaram retidos no coador. Mesmo que só queiramos aproveitar o lado sumarento, não podemos ignorar a matéria que rejeitamos, deitada na rede do coador. Ela existe, e dela se desprendeu a matéria sumarenta que queremos tragar.
E lá vinga o oportunismo, fazendo-nos vacilar entre o pragmatismo e o idealismo ingénuo.

16.8.06

Benfica, uma novela mexicana

É de vir às lágrimas. Emoção no seu momento mais alto. Emprestar o amor a uma agremiação desportiva, quando se pensava ser um sentimento endereçado a pessoas. O fervor avermelhado que congrega uma multidão imensa de adeptos, tantos que os cadastros numéricos ficam baralhados (arrisca-se a reclamar um número de adeptos superior ao dos habitantes, um milagre cabalístico que só os mistérios insondáveis da grandeza forjada conseguem explicar).

De vir às lágrimas, o spot patético que usa a imagem de um futebolista no limiar da reforma, recentemente regressado ao “clube do seu coração”. Dramatismo sublime, com as palavras que ecoam do pensamento do futebolista, à medida que resgata do baú das memórias imagens de um jogo, algures no passado, no estádio do seu “clube de sempre”, contra o dito cujo. Teve a infelicidade de marcar um golo na baliza do seu “clube do coração”. Pede que acreditemos: golo que nunca gostaria de ter marcado.

O porta-estandarte do benfiquismo lustroso vai narrando a peripécia, voz dorida do sacrifício de quem meteu a bola na baliza do seu Benfica “de sempre”, como se fosse um punhal cravado no coração benfiquista. A última imagem emoldurada no passado: o choro que não conseguiu reprimir, em vez do festejo do golo. Coroa a encenação lacrimejante com um olhar dirigido ao infinito. E diz, com a voz lancinante de quem se amargura ao recordar o momento: “foi o pior golo da minha vida”.

A lamechice mexicana ainda não tinha chegado ao desenlace. Quando se pensava que a encenação tinha atingido o limite do mau gosto, o epílogo estava reservado para o final do spot. A mensagem enviada ao “universo benfiquista”: “quem assim ama um clube, assume” (cito de cor; com a certeza que os verbos “amar” e “assumir” estão presentes no slogan). É o derradeiro momento do arrebatamento clubista. Aposto que não há adepto desta agremiação insensível à lamechice. Estou a vê-los, numa afanosa correria para as estações de correio, para os postos de abastecimento da Repsol, para as inúmeras casas do Benfica espalhadas pela geografia nacional: todos, na voragem da compra do famoso kit de sócio que os enche de regalias várias e de uma felicidade incomensurável.

Há um cenário dramático montado, que tenta convencer o adepto cego e incauto do sentimento genuíno do artista da bola, o filho pródigo que regressa à paternal casa. Retórica em estado puro. Vale a pena questionar se foi mesmo o “pior golo” da carreira do artista. Bastava um gesto dissimulado para errar a pontaria e a bola beijava as redes por fora. Ao enfatizar que aquele foi o “pior golo” da sua carreira, o artista revela o desamor pela camisola que então envergava, um falso profissionalismo na pouca consideração por quem lhe pagava o principesco salário. Os puristas, entregues aos desvelos dos sentimentos (que, desenganem-se, nada contam no mercantilizado futebol de hoje), deixarão soltar uma lágrima: afinal há amor à camisola! E quando a camisola amada é a encarnada benfiquista, temos o pináculo dos afectos. Só no “maior clube do mundo” – ou o “clube de todos nós”, ou o “clube dos bons pais de família”, ou qualquer outro chavão consagrado no universo do auto-convencimento patético desta agremiação – este fenómeno se podia revelar.

E depois há aquela mensagem no encerramento do spot: “quem assim ama um clube, assume”. Fico perplexo, confuso com o jogo de palavras. Do alto da minha ingenuidade, pensava que o amor é um sentimento destinado às pessoas. Acreditava que as instituições não são amadas, por serem coisas. A menos que, por interpostas pessoas (os dirigentes, os agentes que são o rosto visível da instituição), sejam eles o receptáculo do “amor” dos devotos seguidores da instituição. Nesse caso, há um sentimento doentio que merece análise psiquiátrica. De resto, este anúncio encerra uma visível contradição de termos. Ora não é verdade que exemplares pais de família envergam cartão de sócio desta agremiação? Como é possível ser extremoso pai de família quando a mesma pessoa, adepta do clube das camisolas encarnadas, é convidada a “assumir” o seu “amor” pela instituição? Ser benfiquista é a negação do amor dedicado à família constituída. E encerra outra perigosa contradição: como amam “o” Benfica, amam coisa masculina, ficando no limiar da homossexualidade reprimida.
Uma palavra final de inquietação. Os muitíssimos milhões de adeptos são desafiados a “assumir” o seu “amor” pelo Benfica. Dir-se-ia, um amor escondido, como se o Benfica fosse a amásia que sempre viveu na penumbra, a segunda escolha, uma vida paralela dos tais exemplares pais de família. Que, afinal, reservam um lugar grande no seu coração ao “glorioso Benfica”. No fim de contas, este é um clube que vai destruir muitos lares. Doravante muitos pais de família hão-de trocar as suas consortes e a prole pela dedicação ao “grandioso Benfica”. Deixando de ser bons pais de família. Motivo para intervenção do governo, proibindo o spot. Ah, o primeiro-ministro também é sócio. A intervenção governamental, fora da equação.

15.8.06

Do conformismo


É recorrente o regresso às palavras escritas por João Carlos Espada no Expresso. Desta vez Espada faz uma auto-interrogação: “o que mais o marcou na sua passagem pela Inglaterra?” A resposta vem na senda das palavras já gastas que Espada dedica na sua coluna semanal no Expresso, quando enaltece o “gentlemanship”, a “virtude”, as regras que se acatam sem discussão. Vale a pena citar a resposta de Espada: o que mais o marcou em Inglaterra foi “o sentido de ordem e de confortável obediência a regras de conduta, muitas vezes bizarras, quase sempre dificilmente demonstráveis, e geralmente herdadas.

Não se discute o direito pessoal de seguir regras de conduta herdadas dos antepassados. Do mesmo modo que não se deve questionar quem se desvia dessas regras de conduta, porque não se revê nelas, desfasadas do tempo em que vive, regras, no seu entender, obtusas. O problema que atravessa os escritos de J. C. Espada é o seguinte: no afã de mostrar que o relativismo é o mal da modernidade, Espada defende de peito aberto as suas convicções, as regras que ele diz acatar sem questionar. O que é lamentável é não ter poder de encaixe para respeitar os que dele discordam, os que não cultivam o mesmo código de conduta. Ao querer defender-se dos seus adversários, que Espada imagina terem apenas o desiderato de desfazer o mundo ordeiro que ele advoga, resvala para a intolerância. De nada lhe vale a semântica da liberdade, tantas vezes apregoada para esboçar a teoria que alicerça as suas ideias (vetustas ou não, aqui não interessa debater). A intolerância não se compadece com o exercício da liberdade.

O que me causa espécie é o conformismo confessado por J. C. Espada. Compreendo que haja pessoas a quem o “sentido de ordem” traga conforto, pelo pavor que têm ao caos. Para muitos a estabilidade (de costumes, de regras) é um bem que se encontra lá no alto, na escala das prioridades. Daí que também seja compreensível a “confortável obediência a regras de conduta”, pois elas são o cimento da ordem estável. Por sinal, é o status confortável da ordem estável que fermenta nestes conformistas um sentido de obediência que Espada adjectiva a preceito: “confortável”…

Em contrapartida, intriga-me como alguém que não renega a racionalidade admita que as regras do código de conduta cegamente respeitado sejam “muitas vezes bizarras” e “quase sempre dificilmente demonstráveis”. Que pessoa, no seu bom juízo, pauta a sua conduta por regras bizarras? Será que a bizarria se compadece com o “sentido de ordem” que os conservadores prezam tanto? Ou bem que estou a interpretar erradamente as palavras de J. C. Espada, ou parece-me que há aqui uma contradição insanável. A ordem estável, herdada dos costumes e regras cimentados com a passagem do tempo, o código genético do conservadorismo militante, essa ordem é tudo menos bizarra. As causas fracturantes, essas sim são do domínio do bizarro.

É certo que Espada, mais adiante, fornece exemplos da bizarria dos costumes que o excitam intelectualmente. Desfila o rol dos usos bizarros que os fellows de Oxford são levados a respeitar, religiosamente. Convenhamos que se trata de um microcosmos, não de um espelho da Inglaterra contemporânea. Os preceitos que os fellows de Oxford respeitam são uma herança ancestral, o prolongamento de usos datados para os tempos modernos. Nada contra. O passado revive-se de formas diferentes. Uns gostam de o recordar em feiras medievais, onde desfila a ambiência típica da idade média. Outros gostam de mergulhar na poeira do tempo e fazer de hoje costumes enterrados há séculos. Que se diga que esses usos ilustram a idiossincrasia actual de um povo é um equívoco. É tomar o todo pela parte – como se uma árvore fizesse a floresta, quando, ao fim e ao cabo, a árvore é a excepção.

Desconfio que Espada se sente desconfortável com o tempo em que vive. Acossado pelos ventos pós-modernos (que renega) e pela ditadura do relativismo (que, dou-lhe razão, como esboço de ditadura é contestável), é um saudosista do passado que conhece pelas leituras e que pôde reviver na sua estadia em Oxford – há que o recordar, um microcosmos de uma Inglaterra dos costumes vitorianos que só escassamente são vividos pelo inglês comum. Espada erra ao assumir que tal microcosmos é um retrato fiel da Inglaterra contemporânea. Que Espada tenha os seus fetiches, é coisa que só a ele diz respeito. Há liberdade para o assumir. Quando muito põe-se a jeito da chacota de quem exibe desdém pelos fetiches particulares de J. C. Espada. Ele tem que perceber que da mesma forma que dispõe de liberdade para cultivar as bizarras e indemonstráveis regras que pautam o seu comportamento, os que dele discordam têm a liberdade para discordar e, se quiserem, escarnecer. Quando alguém se expõe ao ridículo, é o preço que paga.
A frase que encerra a crónica, recuperada do seu herói Churchill, é sintomática do equívoco intelectual de J. C. Espada: “devemos desconfiar das inovações desnecessárias, especialmente quando são guiadas pela lógica.” E quem decreta que uma inovação é “desnecessária”? E o que é a “lógica”? Um conceito unívoco? Ao ler J. C. Espada reforço a minha convicção: tão depressa não sou conservador, como não sou das esquerdas.

14.8.06

For the old times' sake (3): Massive Attack, "Teardrop"

Para um amigo, pai em breve.

Hei-de ir a Cuba (ainda comunista)


Para os mais chegados, o espanto: sempre afirmei, com a convicção dos que têm certezas inabaláveis, que jamais iria a Cuba enquanto o ditador barbudo permanecesse no poder. Venho agora proclamar o desejo de visitar a ilha tropical enquanto o anacrónico ditador das barbas farfalhudas exercer a sua ditadura. A vida é feita destas contradições.

Note-se que a inversão de rumo não encerra a encomiástica do regime comunista que persiste em Cuba. E note-se que, por maior que seja a atracção pessoal por destinos turísticos exóticos, com os predicados das ilhas espalhadas pelas Caraíbas – o calor, a humidade, as águas transparentes e cálidas, a vegetação luxuriante, os povos acolhedores –, o desejo de visitar Cuba não se encaixa no protótipo do turista ocidental que se fecha no resort imune ao país real, ao país que está do lado de lá das amuralhadas fronteiras do resort.

Quero ir a Cuba para perceber in loco o que é o comunismo. Uma curiosidade histórica, para ver com os meus olhos um dos últimos esteios desse erro histórico chamado comunismo. Gostava de visitar as terras cubanas, andar no meio da população, fora dos roteiros turísticos que colocam o visitante numa redoma, fazendo com que os turistas regressem a casa com uma visão paradisíaca da ilha governada com mão de ferro pelo patético ditador. Testemunhar as vidas de sacrifício que os cubanos levam, oprimidos pela sórdida ditadura que os asfixia há décadas infindáveis (porque a actual ditadura substituiu a ditadura de Fulgencio Batista).

Não quero ir a Cuba para me deliciar com as praias paradisíacas dos resorts inexpugnáveis à população local. Esses resorts são um embuste do regime. Um expediente para sacar divisas aos turistas, na tentativa de escapar à miséria instalada; um logro em que hordas de turistas caem, convencidos que Cuba é o paraíso encerrado naqueles minúsculos locais onde passam o tempo. Também não vou a Cuba pelo turismo sexual. A monogamia do estado civil é impedimento maior (mas não o único). Nem vou a Cuba para soltar o corpo nos sons febris da música local, um convite à dança desinibida: a dança e o meu corpo são elementos dissonantes.

O folhetim da doença do tiranete, seguido da passagem de testemunho ao irmão sanguinário – mostrando que os regimes comunistas são surpreendentes oligarquias – serviu para, subitamente, desejar que a ditadura comunista se prolongue por mais um ano. Repito: não há qualquer simpatia com o regime. Nem estaria no horizonte alinhar com o censor prémio Nobel da literatura que escreve na língua portuguesa, que sempre andou de braço dado com o barbudo ditador, ou com o inefável Prof. Boaventura, no ridículo abaixo-assinado que avisa os Estados Unidos para deixarem Cuba em paz. É sabida a minha antipatia pessoal com os Estados Unidos; ainda assim consigo discernir as diferenças entre uma ditadura opressora (Cuba), onde as liberdades individuais estão manietadas, e um país (os Estados Unidos) onde existem eleições, onde as pessoas conseguem exercer as suas liberdades individuais (ainda que sobre elas pesem condicionantes que têm aumentado de intensidade). À cegueira ideológica de uns (o tal prémio Nobel da literatura) junta-se a oportunista colagem ao regime ditatorial de outros (o peregrino da alter-globalização), mesmo sabendo que, outrora, o regime foi denunciado por correligionários seus.

Sim, ir a Cuba e falar com as pessoas. Tentar perceber as privações por que passam – as materiais e as outras, as que não têm preço, as que resultam da opressão exercida pela ditadura. Perceber a miséria que asfixia o povo cubano; a indigência mental, pelas mordaças que impedem os cubanos de protestar contra a tirania que lhes leva as liberdades. Por uma vez, sentir na prática, no terreno, as feridas abertas pelo comunismo. Ver com os meus olhos um laboratório vivo do erro histórico chamado comunismo.

As elegias ao romantismo da revolução cubana, deixo-as para quem se entrega nos braços tentaculares da ideologia comunista. Para esses, as visitas aos lugares que representam a iconografia da revolução manchada com o sangue de quem ousou dissidir. Para esses – como um ingénuo jovem francês cujo testemunho vi passar na televisão –, o inebriamento das vicissitudes de quem passou meses a fio na Sierra Maestra, preparando o golpe que haveria de derrubar o ditador Batista. Pena que, para esses, o romantismo revolucionário passe uma esponja pelos anos que se seguiram à revolução: as execuções sumárias dos que se opuseram ao regime, a privação das mais elementares liberdades pessoais. É quando a História entra no domínio do sectário. Os olhos vêm apenas numa direcção. A que convém ao manto ideológico que cobre o horizonte dos que permanecem apaixonados pelo que acontece em Cuba.
Sim, quero ir a Cuba. Para reforçar convicções. E para que a liberdade dos cubanos seja uma aspiração feita realidade no curto prazo. Para que o comunismo entre, de vez, nos anais da arqueologia.

11.8.06

Jovem, junta-te à tropa!

O marketing ao serviço de instituições anacrónicas. Já não é como outrora, quando esboços de relações públicas dos ramos das forças armadas vendiam o peixe aos magalas forçados a passar dia e meio na inspecção militar. Hoje, os jovens já afocinharam nos malefícios do consumismo compulsivo. É como se os olhos comessem, mais que tudo o resto. A tropa profissional tem que modernizar o discurso, se quer captar mancebos para as suas hostes.

Fecharam-se as portas à retórica de antanho. A tropa já não é condição para franquear as portas da masculinidade. Antes é que a tropa fazia de nós homens. De barba rija. Isso era no tempo do exército tradicional. No tempo em que os mancebos eram tratados abaixo de cão por sargentos barrigudos com um QI ele sim abaixo de cão. Era o tempo em que o rancho parecia lavadura para porcos. Por esses tempos, a tropa não respeitava a pessoa. As diatribes da recruta iam ao impensável: acordar a meio da noite para exercícios surpresa; percursos pedestres violentos, a que se juntava a violência psicológica e, quando necessária, física – porque os homens se querem rijos, e eles só enrijecem quando os corpos são curtidos com a chibata do alferes. Tive a sorte de não ser testemunha destes absurdos. Sei-o por relatos de amigos que tiveram a desdita de por lá andar.

Agora que estamos na modernidade, a tropa tem que vestir novas roupagens. Seduzir os potenciais clientes com um discurso atractivo. Sobretudo quando o serviço militar deixou de ser obrigatório. Só os candidatos a Rambo entram para a tropa. Sempre podem andar aos tiros, durante a instrução e nos exercícios que simulam fantasiosos actos de guerra contra um inimigo fantasmagórico. E depois podem chegar à santa terrinha, nas folgas de fim-de-semana, envergando a farda dos comandos ou da força aérea ou do que quer que seja. A farda impõe respeito aos civis. Os magalas enfardados, atravancados pela pequenez dos poucos neurónios, hão-de imaginar genuflexões sucessivas dos anciãos que ainda se recordam como a tropa era uma instituição cheia de respeitabilidade.

Não posso escrever com conhecimento de causa, pelo salutar distanciamento em relação à tropa. Adivinho cenários: se o discurso e a postura para os civis se modernizaram, para tentar afastar a aura anacrónica, decerto a vida entre portas será a mesma bestialidade de outrora. Nos quartéis, ainda e sempre homens de barba rija com tratamento áspero, porque isso da afabilidade é coisa amaricada. Linguagem de caserna, ríspida, muitas vezes codificada, porque as forças armadas se distinguem dos civis, falantes de linguagem corrente.

Jovem, se anseias por uma vida excitante, pelo brio de uma farda, pela respeitabilidade da vida militar, junta-te à tropa. Vem aprender os segredos da vida castrense. Vem aprender a arte do belicismo, que te ensina que a vida humana tem pouco valor quando se ensaiam virtuais cenários de guerra. Jovem, é como militar que se preenche o sentir nacionalista. “Seguir uma carreira ao serviço da nação”, reza a máxima incluída num e-mail que, decerto por engano, foi parar à minha caixa postal. Ao serviço da nação, não te esqueças; que o individualismo é uma maleita moderna que há-de levar a humanidade pelas veredas da desgraça. Não, não é a guerra com o exército de mortos que desgraça a humanidade. É o individualismo.

Passa a mensagem aos teus amigos. Eles que se desenganem da retórica pós-moderna que anda no ar: é como militar que te fazes um homem pleno. Só então podes exibir o garbo da masculinidade total. Ensinamos-te a ter disciplina mental, o esteio de uma educação decente para a tua prole. E ensinamos-te a recuperar a essência de uma família à antiga portuguesa: um bom pai de família é aquele que se faz respeitar como chefe de família, impõe a sua vontade sobre o restante agregado, fala mais alto, comanda o seu pequeno exército familiar. E que, se necessário for, submete a consorte teimosa, nem que seja pela razão da força.
E jovem, faz ouvidos de mercador aos inomináveis profetas de um mundo novo, aqueles que denunciam a inutilidade da tropa. Explica-lhes que sem a tropa, no dia seguinte deixaríamos de ser o mui nobre e ancião Portugal, com a tenebrosa Espanha a invadir o lusitano território. Não te deixes convencer que os tempos mudaram. Não te deixes guiar pela cabeça desses se dizem discípulos da pós-modernidade. Convence-te que a modernidade só chega nos amanhãs incertos. E que tu vives no presente, o presente que é igual a tantos dias que cimentaram o passado que conhecemos. Acredita, jovem, que a tropa quer conservar o que de bom nos foi legado pelos antepassados. Tu és a charneira entre esse passado e o amanhã que se constrói. Não deixes que a ruptura seja feita. Só as forças armadas podem impedir a ruptura (e a igreja também). Está nas tuas mãos perpetuar a dignidade da tropa, evitar o desmembramento da sociedade digna e virtuosa que herdámos dos antepassados.

10.8.06

On the Hype (3): White Rose Movement, "Love is a Number"

Vem a propósito

Tinha acabado de escrever o texto de hoje. Leio no Diário Notícias o seguinte:

Proibido proibir, ou liberdade patrulhada?


(Na sequência do texto de ontem)

Se há um valor que defendemos a todo o custo, devemos permitir excepções com o pretexto de assegurar esse valor? A liberdade é um valor fundamental, esteio da humanidade sem espartilhos. Escudados na necessidade de preservar a liberdade atacada pelos seus inimigos, os guardiães da liberdade (pelo menos é assim que se apresentam) não hesitam em colocar freios na liberdade. É este paradoxo que me deixa perplexo: como defender a liberdade impondo restrições à liberdade?

Os fervorosos defensores dos travões às liberdades nem percebem como estão em sintonia com os inimigos da liberdade. Argumentam: os inimigos da liberdade – por hoje, os terroristas islâmicos à cabeça – querem destruir os alicerces da sociedade livre e tolerante que herdámos. Ora se eles querem corroer a liberdade que usufruímos, entram a vencer a partir do momento em que, do lado de cá, as autoridades mostram o músculo do poder e cerceiam as liberdades que os cidadãos estavam habituados a dispor. Autoridades a fazer o jogo dos tais inimigos. Tenho dúvidas que estes guardiães da liberdade sejam genuínos defensores da liberdade. Suspeito que o frenesim terrorista é a melhor prenda que as autoridades musculadas do ocidente podiam algum dia receber. Justamente para mostrarem a democracia musculada, o estertor de uma liberdade mascarada.

O que temos é uma liberdade patrulhada pelos mastins de garras afiadas. Basta olhar em redor, medir o pulso ao catálogo de proibições, como elas nascem, férteis. Multiplicam-se: por causas nobres, ou por insignificantes pormenores. Lá do alto, empoleirados nos cortinados do poder, os que mandam desdobram-se em cuidados semânticos. Ensaiam a quadratura do círculo. Tentam mostrar que todas as proibições são excepções à liberdade. Continuam a veicular a mensagem da sagrada liberdade pessoal. O problema é que o valor da liberdade é incompatível com os meios-termos: ou há liberdade ou não há. E quando as excepções à liberdade saltam como coelhos da toca, é sintoma de liberdade negada. Os que têm a honestidade intelectual de justificar as excepções à liberdade “em nome da liberdade” descobriram um eufemismo: liberdade patrulhada.

Dirão que o adjectivo adicionado à liberdade não é um fardo para os cidadãos que cultivam o valor. Os que ameaçam a sobrevivência da liberdade, os que querem impor a derrota da liberdade pelo ferro e fogo, pelo terror, esses é que são patrulhados. Contudo, os outros – nós, deste lado, habituados a conviver em liberdade – somos vítimas desta liberdade patrulhada. Somos as primeiras vítimas. Nem sequer as vítimas colaterais, como sugerem, com uma condescendência paternalista, os mastins da liberdade patrulhada.

É sobre nós que se impõem as excepções à liberdade. É sobre nós que cai o incómodo de aleatórias revistas à entrada dos aeroportos, só porque apanhámos muito sol na praia e temos a tez escurecida. É sobre nós que pesa o desconforto de não sabermos se as conversas telefónicas ou as mensagens de correio electrónico estão a ser inspeccionadas por um zeloso guardião da liberdade patrulhada. Nem sequer sabemos se, por um motivo insignificante, temos ficha nos serviços secretos. Exemplos a mais de intrusão na vida privada de cada pessoa. Para quem continua a defender isto em nome da liberdade, parece um contra-senso. A liberdade começa a partir do momento em que assegurem que a vida privada não é vasculhada. De contrário, não há liberdade.

Hoje em dia, as leis são feitas para impor comportamentos, para proibir isto ou aquilo, para levantar sanções a quem se furtar aos comportamentos idealizados. As leis não são feitas para consagrar direitos. São leis abusivas, intrusivas, leis pela negativa. Leis em excesso, uma verdadeira diarreia legislativa que contamina o ambiente com um cheiro pestilento. O cheiro próprio da liberdade patrulhada, esse eufemismo com a máscara da tristeza. A liberdade só terá o seu expoente máximo quando a humanidade atingir a maioridade. Concedo: na história milenar na humanidade, ela ainda não atingiu sequer a adolescência. Pretexto ideal para os policiais defensores da liberdade patrulhada invocarem o necessário estado de excepção da liberdade patrulhada.
Afundado no meu idealismo ingénuo, continuo a acreditar que só existirá liberdade quando a única norma proibitiva for aquela que proíbe as proibições. Até lá sinto que usufruo de uma liberdade condicionada.

9.8.06

Deixem os fumadores em paz


Não é a primeira, nem a segunda, talvez nem a terceira vez que me insurjo contra a sanha persecutória que vitima os fumadores. O tal fascismo higiénico, uma das molduras que reveste o politicamente correcto dos nossos dias: o fundamentalismo anti-tabagista. Para quem esteja à espera de manifestações desta intromissão na liberdade individual, não é preciso esperar muito tempo. São assíduas e pouco espaçadas no tempo.

A mais recente chega da Irlanda. A lei que combate o tabaco permite que as empresas discriminem fumadores quando contratam trabalhadores. Quem seja honesto e admita que fuma uns cigarros por dia, corre o risco de penar longos meses nas filas dos centros de emprego, de mão estendida à espera do subsídio de desemprego. Uma pessoa que aterre na Irlanda e tenha o vício privado do tabaco é relegada para segundo plano, cede o lugar a outros – os que, por um acaso da vida ou apenas por omissão mentirosa, confessem a sua imaculada condição de não fumadores. Ainda que o fumador seja a pessoa mais indicada para uma certa empresa. Mesmo que seja o candidato que oferece mais garantias de eficácia à empresa que está a recrutar. Por resvalar para o impenitente vício do fumo, ele vai ser discriminado.

E eis como vamos de deriva em deriva até a uma sociedade perfeita, só feita de seres humanos sem vícios. Mesmo que para isso a sociedade se permita à perfídia de ver o Estado crescer nos tamancos do autoritarismo, invadir domínios que pertencem à esfera das escolhas individuais. Tenho medo de um futuro assim. Receio que estejamos a ser educados para uma sociedade que se assemelha a um rebanho: ovelhinhas bem comportadas, todas a seguirem ordeiramente o mesmo caminho, pastoreadas por um vigilante pastor – um escol de engenheiros sociais que se arvoram na suprema condição de condutores dos demais –, sem lugar à dissidência. Ou, se ela existir, tutelada pelo direito à diferença que as apenas formais democracias autorizam, com o preço elevado da marginalização.

Este é o mundo moderno que combate as discriminações que se abatem sobre as minorias. O mesmo mundo que esboça novos campos de concentração onde são acantonados os novos excluídos. Os fumadores encaixam-se no perfil. O que é intrigante é a posição ambígua das autoridades. O cerco aos fumadores está montado: as campanhas de terrorismo intelectual; a exclusão dos fumadores, condenados ao ostracismo social; a proibição de publicidade em manifestações desportivas; os pequenos sinais que enviam poderosas mensagens a cada membro do bem comportado rebanho, que se quer livre do tabaco. Ao mesmo tempo, a falta de coragem para proibir o tabaco, quando afinal ele é diabolizado pelas autoridades sempre tão diligentes em zelar pelo nosso bem-estar. Interrogação inevitável: se os cigarros e afins são execrações, o que falta para os proibir?

Temo por um lugar asséptico que nos impõe, como imperativos, códigos de conduta. O que devemos ou não fazer. O que podemos ou não consumir. Um lugar, uma sociedade, que reduz cada indivíduo ao papel de acéfalo autómato, desprovido de livre arbítrio. Outros, cabeças bem pensantes e superiormente iluminadas, hão-de pensar e decidir por nós. Dispenso a versão moderna de iluminismo intelectual. Os riscos não compensam as virtudes da engenharia social que nos propõem. Hoje, como na Irlanda, a “normalidade” permite discriminar os fumadores. Pretexto ideal para outras categorias serem os alvos das discriminações: um adepto do Belenenses, quem tenha a poesia como hobby, os bebedores habituais, um homossexual (ou, pelo caminho que isto leva, quem sabe se pelos cânones da cómica “discriminação positiva” os próximos excluídos serão os que revelarem a sua heterossexualidade…). Quando se abre uma porta à discriminação, e ela é vista com bons olhos pelos que fazem da intolerância profissão de fé e por todos os que andarem distraídos, as portas seguintes (de outras discriminações) abrir-se-ão de par em par.
O tentacular fascismo higiénico vem atrelado ao ridículo. Ontem li algures que uma peça de teatro que recria a vida de Churchill foi submetida à operação cirúrgica da transfiguração da História. Churchill era um fumador compulsivo. Quantas não são as imagens de Churchill com um charuto na boca? Esta peça de teatro revisita um diálogo que ficou famoso na biografia de Churchill, que terá sido testemunhado por um charuto expelindo doses maciças de fumo. A peça de teatro eliminou o charuto. Em nome do politicamente correcto, refaz-se a História. Afinal o estalinismo está aqui tão perto.

8.8.06

Remar contra a maré

Há uma enxurrada que parece inexorável. Uma corrente de água violenta, que empurra num só sentido. Ao fitar o horizonte, não se distingue onde leva o fio de água que corre tão depressa. Quem assenta nas águas tormentosas não sabe onde o destino o leva. Desconfias que no fim da corrente vertiginosa está um turbilhão preparado para sugar os incautos que se aventuraram na maré sentinela. Do alto do teu cepticismo, entras na água convencido de uma tarefa árdua: procurar o outro lado, sabedor que terás que remar contra a maré.

Vês como todos deslizam, preguiçosos, à bolina da maré. Não acreditas na generosidade da maré. Há uma estranha cor no céu, uma brisa venenosa, quente; o céu-da-boca estala com o estampido das águas que se desdobram em ondas que espumam uma raiva que te faz desconfiar. Imóvel não podes quedar. Uma decisão à espera. Duas alternativas: embarcar na maré venturosa, ou a monstruosa empresa de arcar com os remos e batê-los contra a força tenaz das águas que empurram na outra direcção. Não chega a ser um dilema. Habituado ao diletante espírito de contradição, conjecturas no que te espera quando encontrares a origem das águas que sopram a maré poderosa.

Nos primeiros instantes sentes a violência das águas que te empurram para trás. Convocas todas as forças. Os remos silvam ao contacto com a espuma que se desfaz neles. Com esforço, tragas a maré com a perseverança que te fez sair do casulo de quem olhava para a turba entretida água abaixo, sem saber o que lhe está destinado quando a maré desaguar no seu epílogo. A imagem do conformismo nutre as forças que combatem a energia da maré pujante. Cada remada é um doloroso uivo contra a quietude geral. A denúncia da condescendência com o que é imposto, nem que seja para mostrar que a dissidência desbrava avenidas de um olhar diferente sobre as coisas.

Estranhamente, o cansaço não te consome as forças. Remas sem parar, como se nem sequer fosse necessário dormir. Impõe-se vigilância sempre presente. Uma distracção, e serás empurrado ao sabor da maré que andaste a combater. Seria como voltar atrás. Começar tudo de novo, ou desistir. Seria como se todo um esforço amealhado fosse diluído em nada. Algures há-de estar um lugar onde a maré tenha parado, onde o espelho de água que corre célere numa só direcção seja um mar chão, tranquilo, o repouso para os guerreiros que ousaram desafiar a passividade reinante.

Na teimosia de remar contra a maré, cruzas com embarcações que erram sem destino, apenas apaziguadas pela indolente sapiência que as águas tormentosas as levam algures. Os tripulantes dessas embarcações olham-te com estranheza. Outros com indiferença. Outros não disfarçam semblantes que destilam a reprovação. Esses olhares ferozes enviam sinais: reprovam o desafio de quem combate a maré, porque acham que se a maré tem um sentido é porque é isso que faz sentido. É a reprovação dos marinheiros que erram ao sabor da maré que te revigora as energias. No teu íntimo, pedes aos deuses que enviem mais marinheiros que esbocem o esgar de reprovação.

Por entre o cansaço que te leva discernimento, interrogações em catadupa. Começas a duvidar aonde te leva remar contra a maré. A mesma incerteza do que esconde o horizonte para além da fonte que alimenta a maré. E se suspeitas que no final do fio de água está um envenenado turbilhão que traga quem se enleou nas bonançosas, traiçoeiras correntes da maré, as mesmas dúvidas acerca do que te reserva o fim do trajecto, assim que sentires o sabor adocicado de teres dobrado a força da maré. Não suspeitas sequer o que te espera no fim da maré vencida. Não sabes se o cenário é mais idílico, ou se ainda mais cavernoso que as suspeitas que teces sobre o estampido letal que a maré contínua contém.
Os braços doridos continuam a empurrar os remos contra a maré com as cores que te desagradam. Já não interessa descobrir onde te leva o lado contrário da maré. Cultivas a secreta esperança que a maré tenha um fim. Apenas. Só para saboreares a derrota sobre a maré dominante, a vitória pessoal contra a maré onde tantos embarcaram apenas porque as águas apontavam no sentido descendente. Pode até ser dantesco, infernal, copioso, o lugar que descobres depois de vergares a teimosia da maré. Valerá mais o feito pessoal, a persistência na arte de remar contra a maré e de teres chegado a um porto final. Pode não ser porto seguro. Será o porto que edificaste na convicção que tinhas que ir ao contrário da maré dominante. O que basta.

7.8.06

Como é errado chamar "silly" a esta "season"

Agosto entra e vamos a banhos. Convencionou-se a “silly season”. As coisas sérias entram em banho-maria e o cérebro mergulha na salmoura. Triunfam as futilidades. Damos atenção ao acessório. Mudança de ares, mudança de hábitos, a rotina instalada das semanas habituais renegada em tempo de férias. Daí aos não acontecimentos, um ápice. Dir-se-ia que o tempo pára em férias. Que o mundo fica suspenso até que o carregamento de baterias esteja completo. Como o descanso dos neurónios é imperativo, damos valor aos não acontecimentos que se transfiguram em alvos de atenção.

É a “silly season”, no seu esplendor. Inebriados pela tontice, pelo patético, por notícias que nos outros meses do ano o não chegam a ser. Saldam-se as contas com um ano atarefado, com a falta de tempo para os projectos que vão ficando eternamente adiados. Porque o trabalho, o sagrado trabalho, consome quase todas as energias. Pelas férias fora, é como se o cérebro se desligasse da corrente. Há um convite à acefalia colectiva, com a histriónica “silly season”. Férias e “silly season” são sinónimos necessários, como se andassem de braço dado, como se uma fosse oxigénio da outra.

E, contudo, há uma ideia profundamente errada nesta associação que se enraizou nos costumes. Com as férias vem o desligar da corrente. Como se levitássemos no descanso que, ensinam os dogmas, os marxistas de antanho se encarregaram de legar à humanidade como direito inalienável. O descanso é um direito fundamental. Incontestável. Mas nestes tempos em que o próprio tempo parece que nos consome com uma voracidade ímpar, nestes tempos em que somos empurrados para a escravização do trabalho, estar de férias é um crime. O descanso é uma diatribe que contraria os apelos da voracidade do tempo, da competitividade que esbulha a generosidade do ser. Como se houvesse uma dicotomia: trabalhar – muito, e bem – honra; o descanso, tempo inutilmente perdido.

A partir do momento em que as férias inauguram a “silly season”, está tudo explicado. Com as férias abandonamos os postos de trabalho, onde tudo é sério, onde a responsabilidade das pessoas fala mais alto. No remanso de uma cálida praia, ou bebendo tequilhas numa esplanada em fim de tarde, ou no divertimento que entra pela madrugada dentro em discotecas barulhentas, ou apenas num churrasco numa roda de amigos – é o ócio que triunfa. Como se no ócio a responsabilidade se ausentasse das pessoas, como se elas deixassem de pensar, acéfalas criaturas alijadas do altar tão sagrado onde se produz. Sem responsabilidade, sem as preocupações de se saber uma ínfima peça da engrenagem que “faz avançar o país” (ou o “País”, consoante as preferências), as trivialidades erguem-se na tabela das prioridades. “Silly season” em toda a sua pujança.

Nesta era em que divertir, descansar, ser feliz fora do trabalho, tudo parece um corpo estranho que já não pertence ao Homem, há expressões que vertem uma tremenda carga negativa. A “silly season” vem perfumada com o odor da inutilidade. Coisas tontas, imbecis, triviais, a banalidade em toda a sua extensão: um repto à não seriedade, porque o que é sério apenas acontece quando estamos escravizados pelo trabalho. Para que não fiquemos distraídos com o acessório, as convenções estabelecidas encarregam-se de lembrar, a toda a hora, que é o trabalho que enobrece. Nas entrelinhas: o não trabalho envergonha. E quando tantos dedos denunciam a perversa globalização que tresanda a um sempre culpado “neo-liberalismo” que terá nascido nos Estados Unidos, eu contraponho: quanto mais aquela dicotomia cresce, mais nos “japonizamos”. São os japoneses que se casam com o trabalho. A “silly season” deve ter sido inventada em Tóquio.
Agostinho da Silva é que tinha razão quando esgrimia argumentos acerca da indignidade do trabalho para o ser humano. Com a carga simbólica que as férias têm, quando vêm aprisionadas à “silly season”, apetece reforçar a ideia de Agostinho da Silva. Já não bastava termos que trabalhar para prover o sustento, estamos agora acorrentados nas masmorras do trabalho, como se o trabalho e apenas o trabalho interessasse. É o descanso que nos faz melhores. Pessoas e, no fundo, trabalhadores.

6.8.06

For the old times' sake (2): The Stone Roses, "Fools Gold"

4.8.06

Vergonha do espelho?

"Bacchus", de Rubens

Para os cultores dos prazeres do espírito, não passem desta frase. O texto que se segue contém pensamentos supérfluos sobre a banalidade do corpo. Ou talvez não.

Não é caso para puxar lustro à inquirição de antanho: “espelho meu, espelho meu…”. A pergunta de retórica – vergonha do espelho? – esconde relações mal digeridas entre o indivíduo e o corpo que carrega. Do que se tem vergonha é do que o espelho espelha. Da silhueta retratada do outro lado do espelho, com as adiposidades que escorrem, abundantes, corpo abaixo, a camada de gordura que fez o corpo crescer para os lados. Reveses da idade. Desgostos da gula mal controlada, que o corpo tem mais barriga do que olhos (na inversão do adágio popular). É o corpo que paga as descompensações assimiladas. E depois do corpo exteriorizar o desmazelo, é o espírito que suporta os custos de uma relação conturbada com o espelho.

Descontando os problemas hormonais que trazem a obesidade, nos demais casos somos o espelho do descuido com o corpo, uma via-sacra para os descaminhos das doenças que vêm agarradas à obesidade. E se as consequências a prazo não estiverem no cardápio das preocupações quotidinas, ao menos o bem-estar pelo corpo que carregamos há-de pesar algo na consciência. A menos que nos escondamos do espelho. A menos que à saída do banho, na nudez irreprimível, haja o metódico exercício de olhar para o lado contrário do espelho. Não serão laivos de narcisismo. Já foi moda tecer loas à gordura como bitola da formosura.

Contudo, os tempos modernos têm a mestria de semear dilemas que castigam o espírito. Se a gordura deixou de ser formosura, aconselham os costumes a cultivar um corpo firme, enxuto de adiposidades, uma silhueta esbelta. Os hábitos alimentares que nos seduzem são adversários contumazes do protótipo físico que está em voga. Seja a fast food dos dias apressados, seja a gastronomia tradicional pródiga em gorduras copiosas, seja a gastronomia requintada que despreza o combate às calorias. Acresce o cansaço da vida quotidiana. É um apelo a repastos afidalgados, que só não culminam num sonoro arroto porque os costumes ocidentais não incorporaram esse hábito muçulmano. Por prazer ou por necessidade, o corpo pede alimento que se afasta da vida regrada, critério indispensável para um corpo saudável.

Dir-me-ão que um corpo disforme não é importante. Que um corpo avantajado, com as muitas pregas que acamam a gordura acumulada, não é sintoma de mau estar pessoal. Um obeso pode estar de bem consigo mesmo. Pode ser um compulsivo gastrónomo, o prazer maior que ele pode ter. O espelho é uma minudência. Um olhar pelo canto do olho basta para saber que as gorduras não cessam de crescer, sem olhar com vergonha para o que vê do outro lado do espelho. A disciplina mental consegue desfigurar as imagens que os nossos olhos vêm. Como se nos convencêssemos que o espelho revela uma imagem mais simpática do que a realidade oferece. Uma miopia benfazeja. Ou a bitola estética foi carrilada por uma avenida alternativa: fazer o louvor da gordura farta, pelo comprazimento pessoal de ser personagem de avantajadas formas. Não há corpos disformes, apenas corpos que cresceram de dimensões, o preço a pagar por adversidades várias da vida. A consciência há-de aquietar-se com o peso excessivo.

Como em tantas coisas na vida, há caminhos desencontrados. Corpos quase esbeltos que, ao mínimo sinal de uns centímetros a mais em torno dos abdominais, semeiam o desconforto de fitar o espelho. Ainda que esses corpos sejam exemplares ao lado de outros que exibem sem vergonha as adiposidades excessivas. Os olhos de cada um, o juiz supremo. A subjectividade do olhar impera, com os diagnósticos complacentes ou perfeccionistas que levam, respectivamente, a pactuar com as gorduras a mais ou à exasperação pelos centímetros herdados de algum desleixo alimentar.
Futilidade, dirão os cultores do espírito, que sempre desdenharam o exterior por não mostrar a essência do que somos. Admito a fútil natureza dos cuidados do corpo. Para além das divergências do sentido estético que levam à sobrevalorização ou à desvalorização do corpo, há um aspecto que não pode ser escamoteado: mesmo aos que cultivam a nobreza do espírito, quando estão de mal com o espelho – porque o espelho reflecte que estão de mal com o corpo que transportam – o mau estar é interiorizado pelo espírito. Que sofre, porque não está satisfeito com o corpo onde está alojado. Eis como espírito e corpo são um e um só. Desmentindo os líricos que olham à beleza do espírito, como se a alma de uma pessoa fosse desmaterializável.