28.2.05


Covent Garden

De cada vez que regresso a Londres apetece revisitar Covent Garden. Entre as muitas atracções londrinas, esta praça destaca-se nas minhas preferências. É tanta a vida que ali fervilha que por um momento esqueço o incómodo de frequentar locais já conhecidos que, sei de antemão, estão apinhados de turistas. Curiosamente, os turistas são uma peça essencial da animação emprestada a Covent Garden.

O que me fascina é a animação de rua que convoca a atenção de quem se passeia, a beleza do edifício que encima o mercado ao ar livre, a sumptuosidade arquitectónica que testemunha a grandeza de outrora do Reino Unido.

A animação de rua é o exemplo de como a ausência de regras faz da espontaneidade o mais belo dos empreendimentos humanos. Em vários recantos de Covent Garden há performances da mais variada espécie. Os transeuntes formam um círculo em redor do artista de ocasião e entretêm-se durante uns minutos. Não há ordem preestabelecida que distribua os artistas de rua pelos recantos da praça. Percebe-se que a sequência apenas obedece ao princípio, tão caro aos britânicos, de quem chega primeiro tem preferência. Ao longo do dia os pretendentes a chamar a atenção dos turistas são em grande número. Por isso, as performances não se arrastam no tempo. É o respeito mútuo que leva os artistas de rua a conterem os seus espectáculos dentro de um tempo limitado. Sabem que outro colega espera, perdido no anonimato da multidão, para logo a seguir para tentar o seu ganha-pão.

Depois há o fascínio do edifício, ainda que marcado pela abundância de peças metálicas, o que lhe confere uma ambiência ferroviária. Os telhados são feitos de um metal esverdeado, assentando nos pilares que abraçam as extremidades do mercado. Lá dentro, pequenas lojas vendem artesanato - ou sucedâneos de artesanato, que os ventos da globalização também aqui chegaram. Num dos corredores dominam as pequenas bancas de artesãos que vendem quinquilharia diversa. Não sendo um mercado de frutos, flores e iguarias que embevecem a vista de esfaimados comensais, Covent Garden tem um colorido que o individualiza. Pode não ser um festival de odores e sabores, como noutros mercados onde os géneros alimentícios são mercadorias. Mas possui uma idiossincrasia feita da mistura das cores vivas do artesanato, do bulício de turistas que exibem o contentamento da alma pelo sorriso que trazem consigo, pelos sons de algazarra dos artistas de rua que chamam a atenção de quem passa, pela música dos violinos que ecoa das galerias subterrâneas.

Covent Garden é o espelho da grandiosidade do império britânico que se perdeu algures no passado que é remoto a cada dia que passa. Retrata a centralidade das vestes imperiais que inflamou o ego dos súbditos de sucessivas levas de reis e rainhas. Mais do que isso, é o legado das ilhas britânicas para os valores contemporâneos: a aragem de liberalismo que ainda sopra sobre o continente, apesar dos desvios totalitários que o varreram depois da revolução francesa. É o contraste dos valores da tolerância, do respeito pelo indivíduo, da responsabilidade individual (embora com desvios, há que reconhecê-lo), com a imposição de valores (a igualdade ilusória) que manieta a liberdade do ser humano.

A tolerância, o respeito recíproco que se alicerça na ausência de regras, a forma como as engrenagens da maquinaria funcionam sem empecilhos com a espontaneidade dos comportamentos que dispensam regras impostas de cima - tudo isto é a força inspiradora de Covent Garden. Faz parte do tónico que se renova de cada vez que Covent Garden é visitado. Uma ampola de optimismo que põe um lembrete na memória: ainda há lugar à crença no Homem.
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25.2.05

Dá-te asas

Red Bull, a bebida energética. Há quem acuse o produto de estar encharcado em cafeína, produzindo efeitos nefastos, por exemplo para desportistas que necessitam de recuperar energias após o esforço físico. Há quem diga que provoca dependência nos noctívagos que os bebem uns atrás dos outros para aguentarem uma noite cheia de ritmo. Outros levantam a sua voz contra a mistura explosiva de Red Bull com bebidas brancas, em cocktails alucinantes.

Como sempre, há vozes que se insurgem contra os paradigmas de sucesso. Umas vêm dos quadrantes que suspeitam de tudo o que seja uma demonstração das portas do sucesso abertas pelo capitalismo. Outros arautos da desgraça são os guardiães da saúde pública, sempre na linha da frente para denunciar os malefícios de substâncias nocivas para o organismo humano (mesmo que sejam eles os primeiros a fumar uma charuto king size, acompanhado por dois ou três copos de whisky, enquanto repousam as pantufas no sofá, à frente da televisão, num exercício físico exemplar…).

Apesar das más-línguas que não se cansam de apregoar os danos do Red Bull, milhões de pessoas consomem com prazer esta bebida energética. Sinal de que não somos obedientes cordeiros de um rebanho amanhado à vontade de educadores iluminados. Sinónimo de emancipação dos indivíduos que não se revêem nos alertas melodramáticos que os higienistas de serviço difundem a toda a hora. O Red Bull é um exemplo de libertação individual. Dando corpo ao lema que é a mensagem publicitária da bebida: Red Bull dá-te asas.

Em sentido literal, o slogan apela aos efeitos revitalizantes da bebida. A sua composição estimula a força física. O café tem efeitos semelhantes e goza do beneplácito geral. Faz lembrar a dualidade de critérios a que somos levados pela boa consciência social que teima em deitar a sua mão sobre cada indivíduo. O álcool é tolerado pelos hábitos sociais. Já os estupefacientes são alvo da censura social, criminalizados e perseguidos sem piedade. Por acaso álcool e drogas deparam-se com o mesmo risco – o risco da dependência, que pode arrastar vidas para uma existência lamacenta.

Os deliciosos spots publicitários da Red Bull são mais um exemplo do sucesso da bebida. São cartoons que convocam a compreensão da audiência para os efeitos quase sobrenaturais do Red Bull. Em todos os desenhos animados – a sequência já vai longa – os olhos regalam-se com a campanha imaginativa que dá corpo à mensagem. Desde a vítima de uma qualquer máfia que se consegue soltar do caixão de cimento que trazia acorrentado aos pés, e voa alegremente do fundo do rio onde tinha sido sepultado; ao tenor que, excitado pelo Red Bull que bebeu, se deixa enlevar pelo canto e levanta voo; até a uma largada de touros em Pamplona, em que o hábito se inverte quando os intrépidos homens que desfiam a manada ingerem Red Bull e, de perseguidos, passam a perseguidores, perante os touros atónitos e horrorizados com a exibição de força sobre-humana.

Reza a história que o austríaco que descobriu a fórmula do Red Bull veio do nada para uma fortuna colossal. Não é a componente materialista que interessa. Apenas o engenho humano, a chave milagrosa que nos liberta do espartilho das mentes que se acham investidas na superioridade intelectual para condicionar comportamentos. Ou seja: de como o espírito inventivo, a capacidade de engenho, o dom de convencer outros a consumir o produto que se fabrica, é a chancela para a libertação do indivíduo.

É nestas alturas que me convenço que o capitalismo, e só o capitalismo, é o sistema económico que franqueia o bem-estar e a realização pessoal. O Red Bull é apenas um microcosmos que o demonstra. O slogan publicitário sintetiza-o da melhor forma: as asas para sermos livres de qualquer constrangimento.

(Em Brighton)

24.2.05

Eu tive um sonho…

Sim, um sonho. Não tão idílico como o de Martin Luther King. Ainda assim um sonho. Ou antes um pesadelo? Resposta para o dilema, só no final.

Sonhei que descobri um projecto ambicioso para dois ou três anos. Um projecto que obrigava a mudar de vida, para que não desse um passo em falso, não comprometesse a refundação de identidade exigível para o sucesso do projecto. Sonhei que me inscrevia como militante do Bloco de Esquerda (de ora em diante apenas Bloco, carinhosamente Bloco). Não por convicção – longe disso. Apenas como pretexto para, no final do período de transmutação, escrever um livro sobre a vida interna do partido da moda.

Deixava de andar de carro. Os militantes de base do Bloco, aqueles que aderem ao partido pelas convicções ideológicas, não se dão ao luxo de aproveitar as benesses do hediondo capitalismo. Até o grande líder vai de metro para o parlamento. Sem querer ombrear com tamanha sumidade, temos duas coisas em comum: um doutoramento, a primeira; tirado na universidade de Sussex, a segunda. Já é um começo auspicioso.

Como universitário, e para ser um émulo do grande líder, teria que me despojar das gravatas que costumo envergar. Seria um ponto de partida para a necessária metamorfose de imagem, para não ser olhado de soslaio pelos camaradas de partido. Seria mais fácil apostar na imagem cultivada por certos dirigentes bloquistas, também eles universitários: na ausência de gravatas, roupa de marca – e decerto não adquirida em feiras do povo, a comerciantes ciganos. O corte com a postura exigia medidas radicais. Nem essa fase de transição podia atravessar. Adivinho a surpresa com que colegas, funcionários e alunos passariam a olhar para mim, agora vestindo roupas négligés, com predominância do negro. O cabelo teria que sofrer uma transformação, exibindo-se desgrenhado, a aparência (mas só a aparência) de não ver água há largos dias.

Nas aulas, a intervenção cívica de que não abdico manter-se-ia. Agora com roupagens opostas. Em vez do professor controverso que provoca os alunos com ideias ultra-liberais, a defesa das “causas fracturantes” do Bloco. Insistiria na obrigação do referendo sobre o aborto, diria que até seria lógico que apenas as mulheres e os homens que já experimentaram a gratidão da paternidade teriam o direito de se pronunciar nas mesas de voto. Teria ocasião de divulgar a coerência das propostas económicas da extrema-esquerda (perdão: lapsus linguae a evitar; aprender a mencionar apenas “a esquerda”, com aquele timbre característico do grande líder que soa a raiva espumada, como se todos lhe estivessem a causar grande perjúrio). Educaria os alunos sobre o fascismo que anda de braço dado com o grande capital. Encorajaria os alunos a desfilar em “manifs” contra a globalização. Evitaria as perguntas de algum aluno mais atento, sobretudo quando fosse inquirida a alternativa defendida pelo Bloco.

Iria às reuniões partidárias. Daria o meu contributo, com discursos inflamados contra a direita – e aqui vão no mesmo barco o CDS, o PSD e o PS. Não devia invocar certas passagens dos estatutos dos partidos membros (PSR e UDP), em particular onde se defende a via da ditadura do proletariado, o azimute que deve guiar a acção estrutural. Não o faria para não me desmascarar. Teria que aprender a conviver com a grotesca manobra de hipocrisia que o evangélico líder não se cansa de denunciar: fazer de conta que esses não são os objectivos, para não enxotar o eleitorado urbano, jovem e na casa dos trinta, pequeno burguês, os clientes que se vão fidelizando no Bloco.

Passaria a fumar charros nos locais de culto frequentados pela fauna bloquista. A violentar as preferências pessoais, sendo assíduo nos acampamentos do Bloco realizados nas faldas da Serra da Estrela. Teria que admitir o amor livre; desconheço se a minha cara-metade teria flexibilidade para embarcar neste modus vivendii bloquista. Se tivesse algum mérito – afinal este é um partido elitista, onde abundam professores universitários nos lugares de destaque, só para confirmar a base humilde e operária do partido… – nas próximas eleições podia ambicionar um lugar elegível nas listas. A manter-se a tendência para o Bloco ser o partido da moda, mais deputados seriam eleitos. Entre os quais eu, acorrentado aos ditames de um projecto prestes a concretizar-se.

Esse seria o momento para revelar a farsa. O momento para coligir as notas armazenadas ao longo dos anos de militância bloquista. Passá-las para letra de forma, dá-las à estampa num livro que denunciasse o que é o Bloco de Esquerda. Rompendo com a opacidade dominante. Seria então que, desnudado o disfarce, renunciaria à mordomia parlamentar e à militância bloquista. Voltaria a ser o eu que sou.

Sonhei que o livro seria um êxito. E o começo do fim de um partido totalitário, um anacronismo em pleno século XXI.

23.2.05

Treinador de bancada

É nesta pele que me coloco. Tarefa difícil – há que convir. Como diz o adágio, de médico, de poeta e de louco todos temos um pouco. Talvez seja a assunção da última vocação que faz com que hoje, pela febre inusitada com que o futebol é encarado, cada um de nós tenha apetite para ser treinador de bancada. Ou então devemos estender o adágio, moldá-lo às exigências modernas: e acrescentar o treinador de bancada à tríade.

Hoje apetece-me exercitar o treinador de bancada que há em mim para opinar sobre o futebol caseiro. Andam os especialistas excitados com a enorme disputa pelo primeiro lugar, coisa nunca dantes vista. Os catedráticos da bola puxam lustro aos registos estatísticos a asseveram que a competitividade do campeonato lusitano nunca conheceu melhores dias. São cinco equipas que teimam, semana após semana, em ombrear no topo da tabela, separadas por escassos pontos. O entusiasmo é singular.

Este é o campeonato dos disparates, da mediocridade. O campeonato em que o vencedor vai ficar nos anais como o menos mau. É por isso que me confesso: se há ano em que não desejo que o meu Sporting seja campeão, este é o ano. Não quero ver o meu clube sair vencedor da contenda apenas porque foi o menos medíocre. Não é vitória exemplar. Não é vitória que mereça ser recordada. O campeão chegará ao final do torneio com quase tantas asneiras como os rivais. A diferença estará em ter asneirado um pouco menos, o que lhe trará a palma.

Com a sucessão de disparates em que as jornadas são férteis, este é o ano ideal para o Benfica ser campeão. Para matar as saudades de não-sei-quantos-anos-sem-ganhar-um-campeonato. A sede de vitória é tanta que os incontáveis milhões de adeptos do clube vermelho não olharão a meios para degustar o sabor já esquecido do triunfo. Até porque, num campeonato onde a mediocridade campeia, nada melhor do que a equipa mais medíocre, a que joga futebol mais fraco, a que não chega sequer a ter equipa na verdadeira acepção da palavra, para emergir com o título na mão. Para contentamento dos não-sei-quantos-milhoes de adeptos (as últimas contagens do inefável Vieira apontam para seis milhões; um dia destes ainda descobrimos que há mais adeptos do que cidadãos nacionais. Os falecidos e os nascituros devem entrar nesta contabilidade…).

Outro sério pretendente é o clube do Porto que veste uma camisola bizarra, com quadradinhos pretos e brancos. É um rival digno para o clube de vermelho vestido. Aliás, fico na dúvida: a quem assenta melhor o título? Diria que a emoção me inclina para o clube lá de baixo, o tal que tem mais adeptos do que almas vivas. É o apelo da comiseração pelos desgraçados. Guiado pela razão, os pratos da balança inclinam-se para o clube de bairro daqui de cima. Esta equipa é um equívoco: ainda não percebeu que se enganou na modalidade – em vez do futebol, devia ter escolhido o rugby. Parece uma agremiação de presidiários soltados ao fim-de-semana, desancando a ira do encarceramento nas pernas dos adversários. São um hino à antítese do futebol. Se os inventores britânicos da modalidade vissem os maus-tratos que esta equipa inflige à bola, decerto se arrependiam de terem sido os inventores do futebol.

Para mal dos males, a equipa mafiosa está atarantada com a necessária travessia do deserto, depois da glória por engano do ano passado. Mesmo assim, ainda aspira ao título. Apesar de já levar três treinadores, apesar do esoterismo do presidente-papa, que aposta em Zés como se eles fossem a panaceia, apesar do presidente-papa estar finalmente a contas com a justiça, naquilo que parece ser o início de um ajuste de contas com as manobras ilícitas que foi semeando em mais de vinte e cinco anos à frente da agremiação de azul e branco. É o canto do cisne. Depois do acaso do ano anterior, com tantos e gloriosos triunfos, este é o primeiro dos anos do ocaso. Depois da glória do ano anterior, era de esperar que fosse sempre a descer, até ao lugar que merece ocupar.

Diante deste panorama, parece que o meu Sporting é o menos mau. Mantenho, todavia, a ideia: não quero que seja o campeão. Porque, mesmo sendo o melhor, a irregularidade coloca-o a par com os medíocres, fazendo dele mais um medíocre. E se há coisa que não queria era ver o meu clube vencer um campeonato de medíocres.

PS (sem segundas intenções): o presidente-papa decidiu furar o blackout. Abriu a boca para o seu desporto favorito: o disparate, a apetência para cair no ridículo. Como se fosse esmerado comentador político, descobriu que a derrota do PSD foi o castigo da população portuguesa a Rui Rio. A cegueira tem destes efeitos. A cegueira, ou a burrice, nem sei bem. A visão paroquial da personagem não lhe permite alcançar mais longe. Afinal, há que redefinir o adágio: de médico, de poeta, de treinador de bancada, de comentador político e de louco, todos temos um pouco!

22.2.05

O homem do palito

Estou a chegar a casa. Dobro a esquina e entro na minha rua. Em sentido contrário, o veículo utilitário, azul iridescente, leva o “par de jarras” – um casal de vizinhos assim conhecido. O jovem, ao que consta gerente do banco do Estado, transporta um palito na boca, apontado ao alto, preso nos seus lábios. Adivinho que o palito acabou de ser usado para retirar os excedentes alimentares agarrados ao esqueleto dental preenchido de buracos, sinal de que uma visita ao dentista não vinha a destempo. Com as mãos no volante, o palito servia para uma insólita massagem bocal, envolvendo lábios, língua e dentadura. Fruta seca.

Há uns espécimes que se passeiam e que chamam logo a atenção: são a antítese do que se projecta ser. No mais ínfimo pormenor, revelam facetas execrandas. Exibem um ar blasé, passeiam um nariz altivo, senhores de um ar empertigado. Querem mostrar que atingiram o estrelato possível. Entraram para o banco do Estado, saídos dos bancos da universidade com um curso tirado às três pancadas. O paizinho, ou o tio, têm uns conhecimentos. As portas do banco abriram-se e, com o culto da mediocridade que abunda na instituição, a ascensão interna foi meteórica. Ao fim de alguns anos, o supremo orgulho de ostentar o cargo de gerente de uma agência minúscula. A cereja no topo do bolo. As vistas curtas impedem-no de perceber que não sobe mais. O que explica a altivez, a vaidade inócua, o pedantismo.

Ponho-me a pensar outra vez no quadro (nada bucólico) do palito pendurado entre os lábios. A reacção instintiva: soltar um sorriso avantajado. Sempre que dou de caras com este “par de jarras”, coisas novas que não param de surpreender. É curioso o sentimento de daí retiro. São sinais de uma abominável piroseira. Ao mesmo tempo, esta reacção exala um snobismo que devo recusar. Dirão alguns, “fica-te mal”. Contorno o obstáculo. E dou comigo a reflectir no bem que me faz a colecção privada de cromos que vão surgindo diante dos meus olhos. É o aspecto folclórico que colora a vida. Já o povo cultivou o costume do folclore como expressão do ânimo que a vida recebe nos tempos livres.

Outra vez o palito: porque se terá convencionado que tragar negligentemente um palito é de mau tom? Aprendemos que certas coisas não devem ser feitas em público. Porque as convenções ditam que esses actos suscitam a reprovação das pessoas que os assistem – desde que o espectador de tais actos seja o “cidadão médio”, preso às convenções sociais. O palitar de dentes é um entre vários actos vedados pelo “estar bem” social.

Se os restos de comida incomodam os buracos dentais que povoam a negligência estomatológica, e se estamos num restaurante diante de uma plateia ávida em acenar a sua condenação caso o palitar de dentes seja ostentado, aconselham os “bons hábitos” a esperar pelo recato da solidão para extrair os incomodativos excedentes. Quando o palito vê a sua vida útil prolongada num acto lúdico – o jovem bancário ao volante do seu automóvel – surge a interrogação: os rebuçados não servem para isso? A bem da verdade, o palito é insípido. Não há memória da produção de palitos com sabores agradáveis, que levem os ogres a degustar pacientemente um palito enquanto conduzem.

Se calhar estou ultrapassado pela tecnologia. Porventura já há palitos perfumados com essências alimentares. Palitos com sabor a chispe, a feijoada à transmontana, a rojões à moda do Minho, ou a sarrabulho. Quem sabe se estes palitos são a terapêutica dietética que faz os mais gordos perder peso, as pessoas assoberbadas pelo colesterol a terem uma vida saudável.

E será que o homem do palito exibe, com garbo, o palitinho durante as horas de trabalho? Ou apenas o transporta nos momentos de laser, borrifando-se para o desdém que provoca quando se cruza com outrem? Cá para mim, é coisa que o transcende. Ele acha que é normal, como deve ser normal escovar a cera dos ouvidos com a unhaca bem crescida do dedo mindinho, ou limpar o salão perante uma plateia divertida.

Aposto que o homem do palito contribui para a esmagadora vitória cor-de-rosa do passado domingo.

21.2.05

A democracia alegre e colorida!

Há mais de um mês que não escrevia sobre política. Um exercício de refrescamento mental. Não foi uma ausência forçada. Foi uma distância construída com espontaneidade, um afastamento voluntário que trouxe compensações. Um afastamento que é para manter. Hoje tenho que furar a regra, para expiar a azia pós-eleitoral.

Dos derrotados não reza a história. Para bombo da festa, já bastou o muito que neles se arreou antes das eleições. Só interessa pôr os olhos nos vencedores. Aclamados com glória, do alto da sua pertinência vieram tranquilizar o país. Agora temos rumo, já avisavam em gigantescos cartazes que poluíram a vista dos transeuntes. Acredita-se que vão manter o prometido rumo. É isso que me preocupa. O rumo. Se – e sublinho o “se”, essa enorme contingência da propaganda eleitoral, o abismo entre as promessas megalómanas e o espartilho da governação – o rumo traçado for cumprido, a deriva para o abismo que começou com o outro engenheiro cor-de-rosa será culminada com o novo engenheiro da mesma cor.

Entretanto, as hostes vão preparando o banquete. Nas mentes com uma insaciável sede de poder, começam a esboçar-se os cenários de distribuição pessoal do espólio herdado. Socorrem-se de um arsenal de vassouras para escorraçar a tralha que passa o testemunho. É o primeiro acto que exprime a grandeza da vitória: a passagem de testemunho, a alternância que sublinha a essência da democracia. Ao mesmo tempo, a humilhação dos derrotados e o emproamento dos vencedores, empossados numa incontestável superioridade moral que a contabilidade dos votos sentencia.

As bases e os barões começam a fazer contas de cabeça. O assalto do aparelho do partido ao aparelho do poder anuncia-se como único motivo de preocupação para as semanas que se seguem. Há que distribuir os pedaços da carcaça pelos fiéis, pelos carreiristas que sempre demonstraram fidelidade canina, que agora querem o seu quinhão. Adivinham-se lutas intestinas dentro do aparelho. Camaradas que trepam às costas de camaradas mais influentes, assenhoreando-se de mordomias no governo, na administração pública, nas empresas do Estado. As cumplicidades do bloco central perpetuam-se. Gestores públicos, principescamente pagos, continuam a lambuzar-se num lauto banquete. Gestores alaranjados hão-de manter-se em empresas públicas, como agora gestores cor-de-rosa já lá estavam. É o odor pestilento do regime: um cocktail de laranja perfumado com pétalas cor-de-rosa, ou um bouquet de rosas aspergido com flor de laranjeira.

As grandes figuras apressaram-se a discursar. As “figuras gradas”, os “ministeriáveis”, aqueles que não há muito tempo fizeram parte de uma equipa que pôs o país ligado à máquina, com respiração artificial. O “Dona Constança” foi dos primeiros. Excitado, sempre pronto a disparar pérolas de humor que só ele consegue entender, não fez a vontade aos senhores jornalistas que queriam saber se depois de Bruxelas se segue um assento no Terreiro do Paço. O “Dona Constança” foi salvo pelo gongo da vitória esmagadora. Estava-lhe reservado um lugar no elenco dos “Malucos do Riso”, para exercitar o seu sentido de humor de fino recorte. Agora vai para o governo.

Para o final, as lágrimas vertidas por um abstencionista militante. Outra vez, ninguém liga aos números. Nós, os abstencionistas, não contamos para nada. Esta democracia é uma batota suprema. Abstencionistas foram 3.072.721. Mais, muito mais, dos que acreditaram no engenheiro com nome de filósofo: 2.573.302. As regras estão viciadas. Com estes números, ninguém deveria ser autorizado a formar governo. Venceria a anarquia. Por falta de comparência.

A perversão é tanta que o quórum não conta para as eleições. Só vale para assembleias de condomínios, para assembleias-gerais de empresas, para decisões no parlamento. Com isto, acho que descobri a solução milagrosa para diminuir a abstenção: inscrevia-se uma regra na Constituição, proclamando um quórum mínimo para a validade das eleições. Sob pena do poder cair no vazio. O povo, amedrontado pelos tenebrosos malefícios da anarquia, passava a afluir às urnas em massa. E os políticos teriam a legitimação que lhes falta nesta altura. Mais um número confirma-o, para terminar: dos 8.784.702 inscritos, apenas 29% votaram no partido que nos vai (des)governar doravante.

Nota final: o próximo parlamento vai ser uma paródia. Com oito anacletos eleitos, vai ser uma risada a toda a hora!

18.2.05

Metamorfose

Um súbito apelo, vindo bem do fundo, convocava uma mudança radical. De hábitos, de aparência, de gostos, de locais frequentados. Sentia-se cansado do que era. Ajuizando a necessidade de mudança como uma oxigenação da alma, um dia acordou e exigiu de si mesmo trilhar outros caminhos. A mudança assentava como a solução única para impedir que a assassina rotina o dominasse. Solução óbvia para não deixar que o descontentamento o levasse a perder a auto-estima que andava por níveis baixos.

Imaginou os actos seguintes, o calendário da metamorfose. Pôs-se a pensar nos hábitos adquiridos, na vida certinha que levava. Nesta viagem ao seu recôndito, reparou como se tinha robotizado, mergulhado numa sequência de actos rotineiros que o tinham transformado num ser maquinal, apartado dos arrebatamentos que trazem a grandiosidade da vida. Queria inverter um ciclo de vida. Viver mais quando estava habituado a dormir, dormir quando a luz natural ilumina o dia. Quem sabe, fugir do bulício, do contacto contrafeito com os rostos fechados que se cruzam na rua. Um roteiro ensimesmado. Queria estar com pessoas apenas quando sentisse o chamamento. Não queria ser forçado à convivência anónima e fria com os transeuntes de circunstância.

Quis renegar as referências do passado, os livros que leu, os filmes que trouxeram imagens retidas na memória, a música que cultivou com dedicação. Na procura dos novos caminhos metamorfoseados, a introspecção levou-o a empacotar em assoalhadas herméticas os quadros mentais que foram os seus alicerces. Tal era o desejo de mudança, tal era a sede de olhar para o mundo com outros olhos. No meio do caos de mudança que o assolava, só não quis renegar a família e os poucos amigos de longa data. Não por respeito ao seu passado – executado num processo de estalinista aniquilamento – mas por homenagem às pessoas que tanto lhe tinham dado.

Na busca de um ser diferente, começou a frequentar locais que antes eram desinteressantes ou impensáveis. Como se fosse um teste às suas capacidades, para levar bem longe as exigências de mudança que gotejavam com toda a intensidade desde o mais fundo de si. Contactou pessoas que sempre desdenhou. Tentou apreender outros modos de vida, outras concepções do mundo. Perceber como os outros olhos viam as coisas de forma tão diferente à estava habituado. Na busca pela metamorfose, o apelo de ver as coisas ao contrário.

Até a aparência foi ao encontro da sequiosa busca de mudança. Tornou-se numa figura exótica, cabelos desgrenhados, roupas descuidadas, piercingna orelha esquerda, tatuagem artística orgulhosamente ostentada no ombro direito. Por contágio dos meios artísticos que passaram a ser residência frequente, os hábitos de higiene deixaram de ter a mesma assiduidade de outrora. Amigos e família estranharam a mudança. Ao início, apenas o mostravam com o ar atónito com que o olhavam. O choque inicial foi dando lugar à perplexidade. Mostrava-se uma pessoa tão diferente do que estavam acostumados, defendendo ideias que antes lhe repugnavam, exibindo-se como a antítese do tinha sido no passado. Estranhavam a frequência do bas fond, ele que tanto execrava esses meios exibicionistas. Por pudor, ou por respeito, foram adiando a interpelação. Alguns foram perdendo o contacto com ele, não se revendo na figura problemática e provocatória em se tinha transformado.

Os meses passaram. A mudança radical tinha deixado as suas marcas. Ao fim de algum tempo olhou para trás e avaliou as sequelas da metamorfose. Sentia-se desidentificado. Algures perdido no meio de um vasto deserto, abandonado a si mesmo. Desenraizado, carente de referências – porque o antagonismo em que mergulhou trouxe um marasmo de valores, como se fosse um choque hipotérmico de onde não se conseguia libertar. Enregelado pelo banho de água gélida que decidira tomar.

Tinha agora outro problema: via naqueles meses de metamorfose uma espécie de anestesia de si mesmo. Simulava ser alguém diferente. Um ensaio de mudança, à força. Espreitou para trás, para esses meses intensos de fuga de si mesmo, e sentiu-se em hibernação. Os problemas não tinham sido resolvidos com a metamorfose. Apenas se adensaram.

17.2.05

O constrangimento libertador

"Entre a regra e a liberdade, não há nada mais libertador que um bom constrangimento" - M. A. Pina

Este é um trecho de uma entrevista feita a M. A. Pina na TSF. Apenas escutei esta parte, porventura seleccionada como síntese ou epílogo da entrevista do jornalista-poeta. A frase deu origem a um exercício interpretativo, que corre o risco de aparecer descontextualizado: não pude ouvir o resto da entrevista, nem apreciar o contexto em que a frase foi lavrada. Portanto, o ensaio que se segue tem algo de especulativo. Trata-se de uma contextualização minha de uma frase atribuída a outrem.

Ao escutar estas palavras fui assaltado por uma dúvida imediata. O que queria dizer M. A. Pina? O enigma ficou a pairar quando a TSF anunciou a entrevista com este cartão de visita. Pura estratégia de marketing: oferece-se um rebuçado tentador, os prolegómenos de um cardápio mais rico que levaria o ouvinte a sintonizar a rádio à hora anunciada, se o quisesse degustar.

A primeira imagem que surgiu diante dos meus olhos: a palavra “constrangimento” soltou-se das luzes da ribalta. Foi sobre ela que o exercício interpretativo se concentrou. Dei comigo a recordar aqueles momentos de constrangimento que, decerto, todos já passamos algures no tempo que ficou para trás. Momentos embaraçantes, situações que fazem corar de vergonha. Por imprevidência, ou por mero acaso, são momentos que ninguém deseja sentir na carne, porque nos expõem à chacota alheia.

E, no entanto, estes instantes de constrangimento são um roteiro de amadurecimento. Podem levar ao desnorte instantâneo, estimular a algazarra nas pessoas que testemunham o embaraço que nos armadilha. Mais tarde, quando se resgata da memória o momento de embaraço, acabamos por engrossar o coro dos que riram. É uma lição: apreciar com ironia a atrapalhação por que se passou. Táctica ideal para lidar com a zombaria que cada um de nós semeou. Aprender a rir com as atrapalhações individuais é um acto notável de crescimento. Um esteio da consciência dos padecimentos próprios, acto de humildade que se revê na percepção de que, algures no tempo, é a vez de sermos alvo da troça alheia. Toca a todos!

Horas mais tarde regressei à frase de M. A. Pina. Encontrei outra saída para o ensaio de hermenêutica. Um solução que me deixou mais inquieto. Desta vez não me enredei na sobrevalorização da derradeira palavra. Olhei para a frase no seu conjunto, descobri outro sentido. A parte mais importante localiza-se no início da oração: “entre a regra e a liberdade”…para asseverar que a libertação se encontra “no constrangimento”, ou seja, “na regra”. Perplexo, senti que M. A. Pina subscreve a ideia de que a libertação de cada pessoa não está na liberdade mas na regra, no respeito dos deveres que são auto-impostos pela abstracção da sociedade.

Cada indivíduo deve ser guiado por uma abstinência de liberdade no seu sentido mais puro. É o paradoxo de ver nas regras a espuma de liberdade que marca o reencontro de cada indivíduo com a vida em sociedade. Ideia paradoxal porque contém em si a negação do seu enunciado. O mergulho em regras, impostas do exterior, aniquila a liberdade individual. É um contra-senso com consequências conhecidas. Tem sido o terreno fértil para o cultivo de ideias totalitárias, para enraizar soluções arbitrárias que elevam ao grau mais alto do poder “engenheiros sociais” que se crêem dotados de uma aura iluminada, acima do comum dos mortais.

É a sacralização de homens comuns que se deificam através das soluções que conseguem impor aos restantes. Estes assentem, e entregam-se nas mãos dos novos deuses. Na antítese de um acto de libertação.

16.2.05

Criancinhas belicistas

Andar na rua, dar de caras com uma criancinha que carrega uma arma de fogo feita brinquedo – quem nunca deparou com este quadro? A criança ensaia a coreografia que aprendeu nos horrendos desenhos animados que estão na moda neste início de século. Da sua boca soltam-se onomatopeias que imitam os disparos saídos da espingarda modernaça que ostenta. Dispara em todos os sentidos. Como se quisesse atingir as pessoas que ousam cruzar-se com ela. Atrás seguem os papás, desligados do mundo, atentos às montras que desfilam à direita e à esquerda.

Não é honesto imputar culpas aos petizes. Na sua inocência, consomem com avidez o que passa à frente dos seus olhos. São os destinatários de uma linguagem de metamorfoses. Os desenhos animados de hoje são muito diferentes dos que a minha geração via. A violência gratuita é destilada em doses industriais. Os petizes são apanhados na voragem de imagens repletas de violência. As armas de fogo manuseadas pelos seus heróis disparam a torto e a direito, no afã de aniquilar os maus. A força responde à força, com o poder das espingardas que peneiram a justiça dos bons. As mortes são o código genético destes desenhos animados, na vulgarização da morte. Educam-se as crianças nesta forma de pensar: a desvalorização da vida humana, com a banalização da violência. Depois aparecem os especialistas, perplexos por vivermos asfixiados por uma violência indómita.

Natal atrás de natal, aniversário atrás de aniversário, os progenitores fazem a vontade aos filhos. Mais brinquedos que reproduzem armas de fogo dos heróis de banda desenhada. Mais crianças que desembainham armas, fazendo de conta que vivem dentro dos desenhos animados que povoam o seu imaginário. Elas são inocentes que pagam a factura da falta de siso dos pais. Não contesto a tendência de ter que satisfazer todas as vontades dos pequenos (ainda um dia destes, numa casa de banho pública, assisti à birra de um miúdo, perante a complacência do seu pai: reclamava uma prenda, apenas porque “estava quase a fazer anos”. Como se a antevéspera do aniversário desse direito a prenda. O pai deu a entender que até ia fazer a vontade à criança, quanto mais não fosse para calar a birra que incomodava os ouvidos). Não percebo como mergulhamos num comportamento ambíguo: denunciamos a excessiva violência que o mundo conhece, que leva o Homem a resvalar para o conflito que passa da fase verbal para a violência física; ao mesmo tempo, como pais, oferecemos aos nossos filhos armas de fogo na forma de brinquedos, na inocente ignorância que daí não vem grande mal para a formação da personalidade das crianças.

Os hábitos fazem-se desde a tenra idade. Acostumados a lidar com reproduções de armas de fogo, consumidores atentos de desenhos animados que são orgias de violência, estas crianças ficam dependentes da violência. A bebedeira de violência prossegue com o lamentável cortejo de mortes, como se a perda de uma vida fosse uma coisa banal. Muitas vezes o choque é maior quando deparam, pela primeira vez, com uma vida real que se esvai. Já não são as personagens de plasticina que fazem de conta que morrem. São pessoas de carne e osso, pessoas que podiam tocar. Acredito que a confusão nas suas cabeças seja terrível. Afinal a morte é uma coisa real, não uma mistificação que vem das horas infindáveis perdidas a ver filmes, ou no entretenimento de jogos de Playstation, com a macabra contabilidade simplória das mortes que se encavalitam num armário dantesco.

É nestas alturas que me gabo de nunca ter tocado numa arma de fogo. Nem das reais, as que roubam a vida, nem das que surgem na forma de brinquedo. Quanto às primeiras, nunca tive necessidade. Até porque o serviço militar me dispensou da sua convivência. Quanto às segundas, honro a educação que recebi dos meus pais, que nunca aceitaram oferecer brinquedos que me pusessem a fazer as vezes de xerife de ocasião. Que me recorde, nunca tive a tentação de pedir dessas coisas quando chegava a altura de receber prendas. A apologia do pacifismo – não do pacifismo folclórico das pombas brancas que por aí andam – eis uma das melhores heranças legadas pela educação dos meus pais.

15.2.05

Doce Inverno traiçoeiro

Outra vez este Inverno inusitado. Fora de tempo, começam a despontar as primeiras flores nas árvores. Em pleno Fevereiro, no pino do Inverno, um retrato que pressagia a Primavera que ainda demora. Os rebentos das flores esbranquiçadas são a imagem da Primavera extemporânea. O clamor de uma invernia suave, generosa de luz solar, carente da chuva que teima em visitar outros lugares.

Teremos a ideia que este é um Inverno adocicado. Pela ausência das nuvens que toldam o céu com a cor de chumbo que estiola as almas. A secura que tinge os campos de um verde entristecido contrasta com as resplandecentes flores que se desabotoam dos galhos que lhes dão nascença. Se as almas alegradas pela constância do sol já andavam exultantes, rejubilam revigoradas com o quadro bucólico que a paisagem oferece. A cada dia que passa, vão desabrochando as flores, tingindo as árvores com cores primaveris. Como se o Inverno fosse uma página dobrada.

Este cenário deixa no ar o cheiro a tormenta. Teme-se que as flores tenham nascido antes do tempo. Se os dias têm sido abençoados por um sol gentio, as semanas que estão para vir ainda hão-de trazer chuva abundante e frio à beira do ponto de congelação. Eis o quadro desleal para as flores juvenis nascidas antes do seu tempo. O receio de que não consigam suportar a severidade invernal aprazada para mais tarde. O receio que as flores extemporâneas tenham vida breve, ceifadas por chuva impiedosa, por rajadas de vento que as desprendem dos galhos de onde fruíram. E que as geadas tardias venham definhá-las nas noites geladas, levando a uma hibernação sem regresso, causticando-as até que atrofiem sem conhecerem o esplendor da Primavera.

A admiração com que se olham as flores esconde o temor das desventuras do tempo. É uma alegria que se vai consumindo na incerteza do porvir. É efémera: permanece na dúvida do destino das flores prematuras que podem desaparecer com o primeiro golpe bravio dos elementos. As flores que vão cobrindo as árvores testemunham o Inverno insólito. São o produto da aragem de secura que anda no ar. Ilustram as profícuas horas de sol que se têm deitado sobre a terra. Germinaram, antes do tempo, o ciclo natural das árvores. Anteciparam a sua regeneração primaveril. Diria que são a expressão viva da pressa em deixar o Inverno para trás – como se este Inverno fosse tão cruel que apressasse as vontades em dobrar a página, no desassossego de acolher a Primavera plena de cores e de odores.

Também esta pressa pode ser prematura. Hoje alindamos a vista com os primeiros botões que se vão transformando em tímidas flores. Sem saber que amanhã a tristeza pode invadir as almas que contemplam as cores vivas que brotam das árvores. Será o preço a pagar pela anormalidade dos elementos. Um hiato que iludiu o calendário, fazendo esquecer que Fevereiro não é momento para o florescimento das árvores. A traição dos elementos profanará o quadro bucólico que anuncia a destempo a Primavera ainda distante. Virá a tempo de recordar a impiedosa invernia que andou ausente algures, entretida a apoquentar outros meridianos.

Nessa altura, as doces pétalas alimentadas pela refulgente luz do sol serão levadas com a inclemência dos últimos suspiros de um Inverno que tardou. As árvores vão-se desnudar outra vez, num recuo do calendário que faz lembrar o Outono que ficou algures para trás. Estranha confusão de estações: quando o Inverno se apresta a dar passagem à Primavera, o fenómeno do desbaste das jovens flores fará lembrar um Outono também ele extemporâneo, mas por retardamento. Parece que as estações estão loucas, num desvario que as leva à intermitência, intrometendo-se no espaço que pertence à estação alheia. Bem diferente do outrora, quando o Inverno era Inverno e só depois vinha a Primavera, bem delimitada no calendário do ano.

Doenças da modernidade, sintoma das agressões humanas sobre o ambiente, ou apenas caprichos meteorológicos?

14.2.05

Apostilha de um amor exemplar

O Castanho é um cão vadio que ronda por aqui. É alimentado por algumas almas caridosas. Mas não é visita assídua: por vezes ausenta-se. São dias a fio sem aparecer. Suspeita-se que tem quem lhe dê guarida e sustento noutros lugares. Ou que, nesses períodos de ausência, o Castanho fareje cadelas com cio, esquecendo-se deste local onde algumas pessoas o acarinham.

Nos últimos três dias o Castanho acampou à porta de um prédio vizinho. Decerto que ali mora uma cadela que está com o cio. As maravilhas da natureza encarregaram-se de dotar os canídeos de um faro excepcional. Um odor que aos humanos é imperceptível é a chamada para o ritual de enamoramento. Nesses dias os cães perdem a dignidade. Humilham-se atrás da cadela que entrou no período de procriação. Quando se agrupam em matilha, perseguindo-a como se fosse um troféu de caça, enredam-se numa luta selvática. Vence o mais persistente, o mais forte, aquele que amedrontar a concorrência, afugentando os rivais de perto da tentadora cadela.

Mais enternecedor é ver o quadro pintado a cores de monopólio – quando apenas um cão descobriu a mina, não tendo que suportar a concorrência de rivais. É aqui que o quadro mostra (quem sabe?) o tal amor exemplar que nós, humanos, devíamos, mas não conseguimos, aprender. O cão estaciona à porta da sua prometida. Esquece-se de se alimentar. Mostra um olhar paciente, macilento, como se tivesse agarrado com as patas toda a paciência que existe no mundo. Na corte à porta da cadela com cio, mostra a dedicação que o leva a esquecer-se do resto. Como se o cão desse provas do seu amor com as trovas tocadas debaixo da janela da cadela ansiada. Uma serenata que se prolonga numa demorada espera, na expectativa de ver a prometida cadela sair da porta.

Uma espera vã, inconsequente. A cadela vem atrelada ao dono, que a impede de entrar em aventuras com o Castanho que vê a esperança a esfumar-se a cada dia que passa. Militante, persiste numa corte esperançosa à porta do prédio. Exibe a sua fidelidade canina, num interessado afago que o leva a perder o norte, num desencontro com o tempo. Exemplo de uma dedicação que se assemelha ao amor platónico cultivado por poetas em tempos imemoriais. O exemplo de como o inalcançável é o fio condutor de um amor maior que pode haver. Maior porque acaba por não se concretizar.

A cada dia que passa cruzo-me com o Castanho na sua espera interminável. Sinal de um tempo que é efémero, emoldura o seu ser na esperança de conquistar a cadela. Mas quando esse tempo passa e outra dimensão temporal se inicia, o Castanho deixa a vigília. Bússola reorientada, há-de afiar a agulha para outras paragens, onde outras cadelas lhe tragam o prometido desejo. Se pudesse imortalizar o tempo em que presta vassalagem à sua donzela aprisionada nas masmorras de um castelo algures prédio acima, a dedicação esperançada seria o sinal de um amor ímpar - na tradução dos sentimentos humanos.

Os mais cépticos poderão discordar: dirão que o Castanho apenas testemunha o interesse num alvo, quer deixar a sua marca na cadela enquanto o cio a põe preparada a recebê-lo. Passado o cio, o Castanho perde o interesse, esvai-se o tal amor exemplar que se procura demonstrar. É a mera tradução dos prazeres carnais que afinal alimentam a volúpia humana. Com a diferença – na minha contra-argumentação – de que o homem se recusa a tecer loas tão pacientes e dedicadas como um cão na sua espera por uma cadela com cio. É nisto que há algo de exemplar, na captura de uns momentos fugazes que terminam com o fim do cio da cadela. Para o compreendermos é necessário fazer um esforço para traduzir o comportamento típico dos canídeos para os sentimentos familiares aos humanos.

11.2.05

Não, não é homofóbico!

Juro que a peça de hoje nada tem a ver com a OPA encapotada do lobby gay ao poder político. Nem é expressão de hostilidade contra a homossexualidade. Aliás basta vasculhar no arquivo do blog para encontrar escritos favoráveis aos direitos dos homossexuais. Essa posição explica-se pelo princípio metódico de respeitar a liberdade individual, de aceitar as opções – quaisquer que sejam – das outras pessoas. Sem as menosprezar, nem as aviltar, ou sequer tratá-las com um cunho de discriminação positiva que remete os heterossexuais para o estatuto de desigualdade.

Não me choca ver dois homossexuais em público, em afagos que a sociedade conservadora em que vivemos decerto estranhará. Não me choca, quando ando pelo estrangeiro, ver dois homossexuais de mão dada na rua, exibindo carinhosamente o sentimento que nutrem um pelo outro. Não me choca ver, num restaurante do Bairro Alto, um casal de homossexuais numa deriva romântica em plena mesa, com gestos afectuosos que se vão perdendo de vista entre homem e mulher. Nada disto me choca. O que já me causa incómodo é ser eu o alvo da cobiça homossexual.

Passo a explicar-me. Isto acontece mais quando estou no estrangeiro. De vez em quando, noto olhares indiscretos que se fixam em mim. Olhares que vêm de homens, imagino que homossexuais. De outro modo, porque teriam a necessidade de disparar esses olhares perturbadores? Acontece na rua, ao cruzar-me com as pessoas que passam, num comboio, com a pessoa sentada à minha frente, até em aeroportos, nos momentos de espera entre dois aviões.

Ao início inspecciono-me de cima a baixo. Pode acontecer que esteja de braguilha aberta, ou que tenha a camisa rota, ou uma nódoa gigantesca nas calças. Esperançado que uma daquelas hipóteses explique o olhar persistente, ensaio a inspecção meticulosa. Como se dá o caso de nenhuma daquelas hipóteses se confirmar, só encontro uma explicação: a cobiça alheia, uma cobiça que incomoda porque é feita de olhares que buscam uma certa intimidade. A solução é a fuga, discreta. Sem alardes, para não ferir susceptibilidades.

Confesso o incómodo que a situação provoca. Como disse há pouco, não me causa estranheza ver dois homossexuais assumir a sua condição em público. Já me perturba saber que eu, heterossexual convicto, sou o alvo. Como diz um amigo meu, nada contra os homossexuais desde que não se lembrem de me meter ao barulho.

Esta é daquelas cobiças que faz mal ao ego. Sem que haja qualquer manifestação de homofobia nesta afirmação. Apenas o sentimento de desconforto que me percorre ao saber que do outro lado está um olhar masculino que vai para além na normalidade. Estou no meu direito, o direito de repudiar as abordagens por sinais codificados (porque consta que o mundo gay se desdobra em mensagens codificadas, numa linguagem que só eles conhecem), por não me rever nessa opção de sexualidade. Sem que nisto se possa ver o mínimo laivo de homofobia, repito. Sob pena de estarmos mergulhados na tendência actual que repisa a discriminação positiva a favor dos homossexuais, desvalorizando os direitos exactamente iguais dos heterossexuais.

Mal de mim, cobiça de sensíveis almas que cultivam uma sexualidade diferente. Mal passageiro, resolvido com a estocada final de ignorar os olhares convidativos que surgem do outro lado. Ou a simples ignorância, ou um olhar fulminante de desdém, chegam para matar à nascença a abordagem. Fica apenas o desconforto. Mais ainda de dar conta que o charme do escriba é pouco popular entre o sexo feminino, pois nunca estas abordagens partiram de mulheres…O que até acaba por ser bom. Agrilhoado aos deveres monogâmicos, até agradeço que os olhares indiscretos nunca tenham partido de heterossexuais femininas!

10.2.05

A vertigem dos títulos (doutores & engenheiros, Lda.)

É a mania dos penachos. A mania das importâncias. A melhor maneira de ostentarmos o pedantismo é chapar na cara dos outros que somos doutores ou engenheiros. Ainda que os outros também sejam doutores e engenheiros. Aliás, é curioso ver como se comportam dois nativos quando são apresentados. Aquele que toma a iniciativa de brandir com espalhafato o título universitário é imitado pelo comparsa, que não pode ficar atrás. Duas criaturas pavoneiam a vaidade académica, como se a partícula que antecede o nome fosse o necessário sintoma do valor que têm.

Há coisas difíceis de explicar. Quando pensava que os ingleses eram mais atreitos ao formalismo, presos às deferências que seriam consequência natural do seu comportamento fleumático, descobri o contrário. No tratamento pessoal, os títulos ficam engavetados. As pessoas fazem gala de serem tratadas pelo seu nome próprio, sentem-se incomodadas quando se insiste nos seus títulos académicos. Prevalece o informalismo, que habilita relações inter-pessoais mais familiares.

Por cá, o oposto. O cidadão que acaba de sair dos bancos da universidade salta para a luz da ribalta com o refulgente título de doutor ou de engenheiro. Nestes casos até é compreensível o comportamento. É próprio do deslumbramento de quem deixou para trás os calhamaços e as noites queimadas com o estudo que habilitou a usar o tão ansiado título. O bom senso aconselharia a que, passada a fase da excitação, as pessoas se aquietassem, que interiorizassem um espírito de humildade. Não é isso que sucede. Permanece a identidade alterada, como se após a obtenção do título houvesse a necessidade de alterar o bilhete de identidade para acrescentar “Dr.” ou “Eng.” ao nome com que nasceram. A obtenção do grau académico teria o mesmo significado legal da alteração do estado civil: a obrigação de um novo bilhete de identidade.

Passe o exagero da comparação, é esta a imagem que traduz os hábitos enraizados. De tanto mergulharmos no tratamento com habilitação do grau, até parece que os nomes se modificam pela partícula adicionada. Sinal de uma vaidade mal escondida para uns, ou da necessidade de verem o esforço gratificado pelo reconhecimento social, para outros. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, para muitos. Certo é que o pedantismo é cada vez mais evidente, porventura por ser crescente o número de licenciados. Se, no passado, a licenciatura fazia a diferença entre uma casta reduzida de doutores e engenheiros e o resto do povo, agora os licenciados acotovelam-se em listas de espera para empregos que subaproveitam as suas capacidades. Mas somos todos doutores e engenheiros. Como se esgrimir a titulação académica fosse sinónimo imediato da capacidade das pessoas. É aqui que tomo contacto com uma recordação dos tempos de estudante universitário: foi aí que conheci as pessoas mais ignorantes. Hoje são advogados que passeiam toda a superioridade intelectual que gostam de exibir. Confirmando a percepção de que o mais burro de todos é aquele que o sendo se faz passar por inteligente.

A febre do grau estende-se a quem possui outros títulos após a licenciatura, em especial se as pessoas estiverem na vida académica. Por cá, os salamaleques dos títulos são o pavimento de uma coreografia inútil que consome as vaidades de muitos académicos. Lá fora, esses títulos não saem da gaveta de quem os possui quando as pessoas se relacionam. Diria que a febre do grau, que no passado se restringia a doutores e engenheiros como expressão da licenciatura, se estendeu aos que estão habilitados com títulos de pós-graduação. É vê-los a assumir, garbosamente, os títulos quando se assinam como tal. Mais ridículo é ver aqueles que alcançam o grau em universidades estrangeiras (sobretudo nos Estados Unidos ou no Reino Unido) e, após a assinatura, colocam um risível “PhD”.

No tempo de Salazar éramos um país de néscios. Só um reduzido escol de iluminados conseguia sair da universidade com um grau superior. Dando razão a quem sustenta que somos um povo de excessos e contrastes, agora damos a imagem oposta: só há doutores e engenheiros. Nem que, num dia destes, aconteça como no Brasil, onde aos doutores de muitas artes não resta outra opção senão conduzir um táxi.

9.2.05

Um estranho na própria cidade

A meio da tarde, parado no trânsito no centro da cidade. Sobre a direita ergue-se a torre dos Clérigos, majestosa. Aponta ao céu, soerguendo-se por entre o casario rasteiro que evoca a ancestralidade da cidade. Em redor, as casas testemunham o abandono do centro da cidade. Basta atravessar a fronteira para ver como o centro histórico das cidades foi tratado com esmero, num acto que presta justa homenagem ao património genético que é o passado de cada cidade. O centro histórico do Porto, pelo contrário, está ao abandono. Entristece-me ver edifícios de bela traça despedaçarem-se aos poucos, quando podiam manter-se vivos com o vigor da sua beleza histórica, embelezando o centro da cidade que definha perigosamente.

Ainda parado, com uma fila de carros à minha frente que avança a passo de caracol, volto a reparar na torre dos Clérigos. Dou comigo a pensar: é incrível como nunca entrei neste que é um dos monumentos mais emblemáticos da minha cidade. Nunca escalei a estreita escadaria em caracol que serpenteia torre acima até ao seu púlpito, para me maravilhar com a vista altaneira da cidade. Mais estranho é este sentimento: porque me orgulho da cidade onde nasci, com a sua beleza agreste, com as cores tristonhas que perpassam do cinzento afivelado pela abundância granítica.

É neste momento que me sinto estranho nesta que é a minha cidade. Confronto-me com o paradoxo de ter recordações mais nítidas de tantas outras cidades visitadas, mais nítidas do que as imagens que retenho da minha cidade. Há um sintoma que ilustra este desfasamento: no papel de um turista ávido, a cabeça anda sempre no ar, atenta a todos os pormenores que possam ser captados para reter uma imagem fidedigna de locais nunca outrora visitados.

Pelo contrário, quando percorro as ruas da minha cidade a cabeça raramente se desloca para além da linha horizontal que se perfila à frente dos olhos. Ao andar no Porto, a cabeça não se fixa nos pontos mais altos. Quando a espaços exercito a postura de turista na minha própria cidade, deparo-me com surpresas agradáveis. Pormenores de edifícios que estiveram escondidos do meu olhar durante tantos anos. Pequenos adornos que encimam as casas mais antigas, as cores e as formas que passaram desapercebidas durante anos a fio. É como redescobrir a cidade que esteve, nos seus detalhes, em hibernação.

Por vezes sinto-me estranho na minha própria cidade. Quando descubro alguns destes pormenores escondidos detrás de um biombo construído pelos meus olhos, é como se conhecesse melhor outras cidades onde sou forasteiro. Quase me leva ao involuntário desenraizamento do Porto natal. Sem razões, a não ser a rotineira passagem pelas ruas da cidade. Quando penso que a conheço nos seus detalhes, descubro a cada dia que há recantos, ruas, molduras que retratam as paisagens mais belas que me são reveladas com a distracção do olhar. Descubro então que retenho na memória pormenores mais avivados de outras cidades.

É o torpor diário que me esconde a cidade por descobrir. E, contudo, o Porto é uma cidade pequena. Que, no entanto, parece esconder mil e um segredos que estão à vista desarmada. Os olhos encandeiam-se com a rotina que asfixia, que impede de devotar a atenção que os recantos desconhecidos merecem.

Desconfio que nunca hei-de conhecer o berço que me viu nascer. O que angustia. É bom ter a ambição de conhecer muitos locais, tantos quantos o tempo e a disponibilidade para viajar permitem. Mas desencanto-me por dar conta que esta ambição remete para um esconso lugar das prioridades o conhecimento dos lugares escondidos da minha cidade.

8.2.05

Carnaval é todos os dias

Dizem os líricos que natal é todos os dias, é quando o homem quer. Porque não estender a vulgata ao Carnaval?

Há coisas que me metem espécie. Celebrar o Carnaval em apenas três dias é uma delas. Como se o espírito cínico se resumisse a uma ínfima proporção dos dias do ano. Quando, bem vistas as coisas, há motivos para uma celebração contínua. Bem sei que com a festança sempre em dia, as pessoas perdiam o gosto por ela. De tanto foliar, a folia deixava de ter significado. A tristeza emergia com a sua força tentacular. Por isso o Carnaval se restringe a três dias. Para fazer de conta que nestes três dias troçamos com o que somos ao longo dos outros dias do ano.

Os mais bem dispostos, sempre a postos para uma folia com requintes de máscaras imaginativas, dirão que “é Carnaval, ninguém leva a mal”. Como gostamos do lugar-comum! Este está para o Carnaval como o poético ditame que abriu este texto está para o natal. Ninguém leva a mal, portanto. Ninguém se importa que nestes três dias zombemos uns dos outros. Apela-se à capacidade de encaixe das pessoas trazidas para a arena da troça. A arraia-miúda vinga-se dos restantes 362 dias do ano, quando os figurões agora troçados andam na limalha da ribalta, espezinhando o povinho.

Interessante a sina carnavalesca. Reverte-se o leme da nau. Por três singelos dias, fazer dos poderosos o objecto da humorada ira popular. O Carnaval é o expoente da democracia popular. Nunca como no Carnaval o povo se diverte zombando de quem está no pedestal. As gradas figuras do país, que ondeiam nos outros 362 dias exibindo o seu garbo, refugiam-se no anonimato para resguardarem a sua dignidade. O Carnaval não é para eles. É uma festa das massas. Elas acorrem em massa aos locais emblemáticos onde se passeiam os corsos. Um ensaio contido da revolta popular. Um termómetro que mede o pulso aos desamores das massas.

Depois há os que não estão em nenhum dos lados da barricada. Escusam-se a engrossar as multidões que se inebriam com as festividades carnavalescas, e não podem (ou não querem) ser entronizados no elevado altar do reconhecimento público. A estética afasta-os de todos quantos se entusiasmam com a festança. O pudor distancia-os das veneráveis elites que enchem as parangonas carnavalescas nos cortejos que se aproveitam da magnanimidade festiva para zurzir nas figuras públicas.

O Carnaval é um paradoxo. Restrinjo-me à etimologia. O Entrudo é a razão. O Entrudo refere-se à zombaria festiva da ocasião, à boa disposição dos foliões que elegem a festividade que flutua no calendário para lavar a alma das tristezas mundanas que ocupam o quotidiano. O Entrudo é a necessária exegese que tece um cínico balanço, ao mesmo tempo que oxigena os neurónios para os disparates que as elites preparam para os tempos vindouros. Regresso à etimologia: o Entrudo é uma palavra que me soa ao contrário da folia reinante. Ouço a palavra e imediatamente a associo a carrancudo. Será defeito fonético, decerto. Mas uma face carrancuda é o oposto das gargalhadas sonoras, dos sorrisos de orelha a orelha, da boa disposição contagiante que flutua em tempos de Carnaval.

O mistério deslinda-se. É só recordar os corsos carnavalescos que prestam tributo à idiossincrasia nativa. E ver como as figuras retratadas desfilam na pele de horrendas caricaturas que desfeiam ainda mais as personagens que trazem toda a fealdade ao nosso quotidiano. São as carrancas sobre as quais se zurze, se destila o fel humorado de um povo cansado da vácua lengalenga quotidiana. É um Entrudo carrancudo.

7.2.05

Surrealismo e boas maneiras

Já não é a primeira vez que o ginásio aplaina caminho para um texto diário. A história de hoje é daquelas experiências bizarras, tão estranhas que quando passamos por elas apetece beliscar a pele para saber se é a realidade que vivemos ou se é apenas um sonho esquisito.

Estava no balneário, depois de sair do duche. Ao meu lado dois indivíduos, já na casa dos cinquenta. Dialogavam, entretidos, creio que sobre futebol. Decerto se conheciam bem, porque tratavam-se na segunda pessoa do singular, o que em pessoas desta idade revela alguma familiaridade. À boa maneira masculina, talvez ainda resquícios de uma educação militar que não se coíbe em, amiúde, empregar palavrões, a conversa decorria animada, com turpilóquios entrecortando o diálogo. Nisto entra de rompante outro homem, mais novo, que por ali anda de semblante sorumbático. Tão depressa entrou no balneário como, para surpresa de quem lá estava, disparou de forma intempestiva quem tinha acabado de soltar um palavrão:

- Faça o favor de dobrar a língua! Olhe que não está em casa.

Ficámos atónitos. Mais ainda o destinatário da advertência. Ficou sem reacção durante uns longos segundos. O puritano de serviço voltou costas e começou a remexer no seu saco, tentando nervosamente encontrar alguma coisa. Foi então que o acusado se sentiu na obrigação de ripostar.

- Vai-me desculpar, mas creio que não estava a incomodar ninguém…

- Incomodou-me com esse linguajar de lota, interrompeu, de dedo em riste, quem tinha provocado o incidente.

Já com a paciência a perder-se com a ebulição do momento, o homem acusado de linguagem imprópria defendeu-se, usando tacto e pedagogia.

- Sabe, entre homens, aqui no Porto, é comum usarmos palavrões. E ninguém se ofende. Estamos acostumados.

- Não venha com essa. A minha família é do Porto e não fui habituado a ouvir tantas asneiras.

Perante o absurdo do argumento, o homem feito réu de ocasião ficou desarmado. Começava a ferver perante a impertinência do moralista do momento. Virou-lhe costas, dando a entender que queria colocar uma pedra sobre o lamentável episódio. Parecia não querer dar a importância que o bizarro moralista convocava para si mesmo. De repente arrependeu-se, deu meia volta e, com um tom de voz agreste, retorquiu:

- Já reparou que a sua reacção foi despropositada? Por acaso notou que as outras pessoas que estavam aqui antes de você ter entrado não se melindraram com a minha “linguagem de lota”? Foi o senhor que fez disto um problema.

E virando-se para mim, perguntou:

- O senhor estava incomodado com a minha linguagem?

Disse-lhe que não. O excelso moralista, vendo que as coisas se tinham descomposto para o seu lado, abandonou o balneário sem mais nada dizer. Deixou o outro homem, especado, a falar sozinho.

Ser mais papista do que o papa dá para disparar tiros no próprio pé. Tão preocupado com a linguagem imprópria, como se o balneário de um ginásio fosse um local de trato e polé, o moralista incomodou-se com os excessos de linguagem mais ao jeito de uma caserna de trogloditas militares. A sua reacção despropositada trouxe à superfície a falta de verniz. Há coisas que têm esta veia surreal. Lança-se a rede para sublinhar uma faceta, e sai-se da faina com a imagem queimada, com a antítese do objectivo programado.

Os moralismos têm estas adversidades. Prega-se a superioridade moral aos outros, esquecendo-se os moralistas que, ao fazê-lo, cultivam a antítese do que um moralista deve ser: respeitar os outros, porque de outro modo não pode ambicionar ser respeitado por ninguém. Se não tivesse uma entrada de rompante, se aguardasse uns segundos para ver se as outras pessoas que ali estavam exibiam algum incómodo pela linguagem asnada, porventura não lhe teria acontecido a desdita de ter entradas de leão e saídas de sendeiro. Com a aura imaculada de um moralista de quinta categoria bem chamuscada.

4.2.05

Onde está o tempo?

Emolduramos o passado. Como se quiséssemos reter fragmentos da vida que ficou para trás. Reter a marcha dos ponteiros de um relógio que, sabemo-lo, continua na sua caminhada compassada rumo ao infinito tempo que há-de vir. Num acosso de nostalgia, tentamos imortalizar os momentos memoráveis que ficaram presos do passado.

No fio da memória, desenterram-se as recordações que trazem rejuvenescimento. Tudo se passa como se do baú das memórias viessem os flashes que abrilhantam a vida presente. Quando damos conta do acesso de nostalgia, e pomos os pés no chão, surge a interrogação: estamos presos à ditadura do tempo enterrado nos anos idos? Estamos embrulhados na memória das coisas boas, como se andássemos descontentes com o tempo presente?

As imagens retratadas surgem como memoriais ao que somos, naquilo que fomos. Parece que mergulhamos num esforço de auto-demonstração: as reminiscências são o património do que somos; o mergulho nos tempos de antanho respeitam o que fomos, sabemos que chegamos onde estamos porque percorremos uma árdua estrada que não pode ser esquecida. E, contudo, ficamos presos na ambiguidade. Entre prestar tributo às memórias reconfortantes, e resistir ao apelo do passado por conveniência da vida presente, pela consciência que o desafio vem com os dias que estão para vir.

Gastamos o tempo que ficou na bruma do passado? Ou foi tempo que perdemos, quando damos conta que tantas coisas projectadas não foram realizadas? Tempo gasto, tempo perdido, pouco importa. Porque é tempo que não se recupera, a não ser quando desfolhamos as páginas da nossa história muito particular. Nas convicções carregadas de dúvidas, a impressão que o tempo que se gasta a remoer as pedras gastas do passado é tempo perdido. Nos excessos de nostalgia que recuperam as boas recordações colocamo-nos nos trilhos do tempo perdido. Exaurimos o tempo que temos na busca das sensações que ficaram para trás. O tempo presente ausenta-se nas recordações, nas imagens que a memória já colocou nas devidas molduras. Os fragmentos do passado não devem ser revisitados com muita frequência. Perdem o seu sabor, tanta a assiduidade com que resgatamos os registos do tempo que se imortalizou no passado.

É um sentimento ambíguo: sentir que revolver o passado é desperdiçar o tempo presente que se vai esbatendo no recurso à memória; mas sentir, ao mesmo tempo, que renegar o passado que construímos é a denegação do que somos. Não sabemos onde nos situamos perante o dilema. Ficamos presos num ténue fio que balança entre os dois lados de um abismo. Entre olhar para trás e ausentar o tempo que escasseia para o futuro; e apenas olhar em frente, como se o passado deixasse de ter significado, num ensaio que apaga da memória o bom e o mau que deixámos na escala do tempo.

É nestes momentos que adensam as dúvidas. Por vezes impelidos a ir em frente, outras vezes perseguidos pelos fantasmas do passado, ou pelos belos momentos registados na memória. Sem saber o que fazer, porque a cada momento a opção tomada traz o contacto com a dúvida: e não seria melhor a opção contrária?

Onde está o tempo? Algures numa dimensão misteriosa, que se desdobra entre o que somos e o que fomos, a espessa capa que fomos edificando para sermos o que somos. Há uma ponte que se renova em cada dia. A ponte entre os dias enterrados no passado que não se repete, e o tempo incerto que o futuro anuncia. Nisto, a recusa em ver o tempo passado como tempo perdido. Antes o tempo necessariamente gasto, os caminhos percorridos, mais ou menos lineares, mais ou menos tormentosos, até chegarmos onde estamos. Temos apenas a certeza do passado que somos. É esse o tempo que sabemos. É esse o tempo que não podemos desprezar.

3.2.05

Vá para fora, garantimos-lhe o "cá dentro"

Vulgarizou-se, para consumo doméstico, o mote turístico “vá para fora cá dentro”. Os nativos são incentivados a gastar as suas economias no turismo nacional. Temos um país pequeno que esconde tesouros desconhecidos a muitas pessoas que se aventuram no estrangeiro em turismo. Lembrei-me do slogan a propósito de algo diferente: da tendência dos turistas estrangeiros (sobretudo ingleses e norte-americanos) para levarem consigo um bocadinho da terra natal para as longínquas estâncias turísticas que frequentam.

Nos poucos locais exóticos que conheço, o padrão é o mesmo. Na amálgama de nacionalidades que se instala no hotel, os ingleses e os norte-americanos são dominantes. Talvez por isso, há certos pormenores que reflectem a padronização cultural tão censurada pelos detractores da “globalização selvática”. Dir-se-ia que o mito do pensamento único chegou ao turismo. A alimentação e a animação musical são dois exemplos de como as pessoas daqueles países – logo acolitadas por outras nacionalidades que dão para o mesmo peditório – se prestam a descansar em paragens longínquas, mas não abdicam de um cheirinho da casa que deixaram temporariamente para trás.

Da escassa experiência destas coisas, apercebo-me como ingleses, alemães, holandeses, canadianos, australianos, norte-americanos não prescindem dos hábitos alimentares que cultivam no quotidiano. É vê-los nos seus pequenos-almoços avantajados, pródigos nas gorduras servidas em ovos cozinhados de diferentes formas, no bacon frito, nas salsichas, até nos feijões que alguns tragam com inusitado prazer. Descontada a subjectividade, mete-me impressão como um estômago normal consegue digerir uma refeição deste calibre à laia de pequeno-almoço. Uma vez fiz a experiência em Inglaterra. Não consegui terminar a abastada tarefa, nem sequer comer nada até à hora do jantar, tal foi a fartança e a indisposição.

O que me deixa perplexo não é o hábito alimentar do pequeno-almoço destes povos. Mas o facto de não conseguirem deixar parar trás esse hábito nos breves dias que estão longe de casa, nas férias em locais paradisíacos. Recordo-me, num desses locais, que ao pequeno-almoço o hotel punha à disposição um festival de frutas exóticas. Deliciava-me com um banquete de frutos. Um pequeno-almoço diferente daquele a que estou habituado na sucessão dos dias normais. Um séquito de paladares diferentes, a ilustração de que as férias são diferentes dos dias normais.

Se estou longe de casa, se as férias são sinónimo de quebra das rotinas instaladas, há que levar a diferença até às últimas consequências. A alimentação é um domínio de eleição. Não apenas para romper com os hábitos agrilhoados à terra nativa que ficou para trás. Também para partilhar os costumes locais, para alargar os horizontes e ter um enriquecimento cultural que é perceptível pela identificação dos hábitos alimentares dos locais escolhidos para férias.

Outro domínio onde os turistas não se conseguem desprendem das sementes nativas é na música. Os hotéis tentam seduzir os clientes, envolvendo-os num ambiente lúdico que preenche os momentos nocturnos com animação musical. Invariavelmente, músicos locais tocam música anglo-americana. Os hits da música popular contemporânea desfilam, para gáudio da horda de turistas, não cansada de encher os ouvidos com estas melodias ouvidas até à exaustão enquanto vivem as suas vidas caseiras. Entusiasmam-se com os sons da beatlemania e quejandos, como se tivessem saudades daquilo que estão fartos (ou talvez nem tanto) de ouvir nas rádios e televisões dos seus países.

É das experiências mais negativas que tenho das estadias em locais exóticos. Decepcionado, porque esperava ambientar-me aos sons nativos, aos sabores locais em vez da cozinha internacional. As exigências da padronização, indo ao encontro das preferências de turistas autistas, impedem que as coisas sejam diferentes. Após o jantar, a opção passa por um passeio nas redondezas, ou pelo refúgio no quarto.

Sinais de que os turistas querem ir para longe de casa, na busca do descanso retemperador das merecidas férias, mas recusam-se a perder o contacto com a terra mãe que deixaram à distância de milhares de quilómetros. Cultura local? Não…hábitos ancestrais, anacrónicos, sons estranhos que não condizem com as melodias formatadas a que estão habituados. Ir para fora, decerto, mas sem nunca perder de vista a terra natal. É o lema de uma estupidificação notória.

2.2.05

A violência doméstica: o dogma do absurdo

Rambos de aviário. É o que são os "heróis" que vingam as frustrações nas suas companheiras. Elas, mais fracas, incapazes de lhes fazer frente por inferioridade física, suportam na carne a dor. A dor física da violência. E a dor que não se ouve, a dor que só a elas consome, silenciosamente, por dentro. A dor interior de ver transformado um amor num inferno.

A violência doméstica tem deixado de ser tabu. Notam-se diferenças de lugar para lugar. Não vejo que o tema tenha a mesma actualidade que em Espanha, por exemplo. Aqui ao lado há campanhas contra a violência doméstica. A comunicação social exerce uma função pedagógica, não deixando passar em branco notícias de desacatos conjugais que trazem sacrifício físico e psicológico para a mulher. Por cá o assunto não tem a mesma acuidade. É difícil libertar as amarras dos constrangimentos do passado. Parece que ainda vivemos acorrentados ao dogma educacional (mas antítese do civismo) que apregoa que “entre marido e mulher ninguém meta a colher”. Entre as quatro paredes os segredos conjugais consomem-se. Com eles diluem-se, quantas vezes, casos de violência doméstica que repousam na poeira da memória. Outras vezes, o balanço é trágico: elas deixam de estar lá, prontas a suportar os anacrónicos maridos, porque entretanto a sua vida perdeu-se em mais um acto estúpido de violência doméstica.

Muita gente viva presa aos tabus enraizados. São hábitos inculcados, transmitidos de geração em geração. É difícil esbater esses tenebrosos costumes. É necessário ir combatendo a aleivosia, o que exige uma passagem de testemunho, de geração em geração, que quebre o imobilismo. É uma montanha enorme, escalada passo a passo. Mas há que ter a consciência que os maus costumes de antanho também têm os dias contados. Não será tarefa para o dia de amanhã, derrotar este estulto comportamento que vê na mulher o alvo para destilar ódios interiores. A denúncia exige uma interiorização do que somos, enquanto homens, e uma ruptura com um esboço da malévola submissão feminina a que os homens foram habituados.

Regresso à incompreensão da violência doméstica. Porque não percebo o que pode levar à transformação de comportamentos que fazem da fronteira entre amor e ódio um traço muito ténue. Parece que há um abismo profundo entre amor e ódio, mas os casos de violência conjugal mostram como a transição se faz num estreito passo. O que é angustiante. A incompreensão acentua-se quando sabemos de casos de violência reiterada ao longo do tempo, quando damos conta de um silêncio conivente da vítima. Resquícios de uma educação absurda, que encarcerou hábitos promíscuos: a mulher casa-se para a vida e deve submissão total ao marido. Daí aos actos de violência, um passo apenas. A tal violência abafada pelas vítimas, que a toleram para não desagregar os alicerces da vida familiar. São heroínas perdidas num estoicismo sem significado.

Quem leva a palma no absurdo de tudo isto são os varões que exibem a sua superioridade física através da violência indomável. Exemplos de uma coragem vã. Eles não merecem o mínimo respeito. A começar pela companheira que os atura nos seus caprichos de violência. São excrescências que merecem o isolamento, denunciados como fautores da incivilidade que emerge a espaços. É uma bravura esconsa, preenchida por frustrações íntimas, o espelho daquilo que ansiavam ser mas são incapazes de alcançar. As suas companheiras são os sacos de porrada que servem para equilibrar as descompensações interiores. São casos de internamento psiquiátrico, sem mais.

Há anos, estava na urgência de um hospital quando entrou um homem ensanguentado, estendido numa maca. Cercado por enfermeiros e médicos, envolto num reboliço que anunciava um estado grave, entrou directamente para um sala. “Sala de ressuscitação”, era o nome da sala. Passados uns minutos, os médicos saíram. “Nada a fazer”, disse um deles. Logo a seguir, duas enfermeiras trocavam impressões com o polícia de serviço. O homem, de impressionante envergadura física, morreu às mãos da sua mulher. Terá sido vítima de si mesmo, não fosse ele um exemplo de continuada violência doméstica. Ela fartou-se e desferiu o golpe fatal. Jamais seria a vítima da estúpida violência. As esquinas da vida apanharam-na nesta armadilha. Livre de um inferno, decerto pagaria o preço com a reclusão numa qualquer prisão.

1.2.05

O beija-mão

O bicho homem tem rituais esquisitos. Tome-se como exemplo a cerimónia onde uma criatura toma posse num cargo político. Se o cargo for importante, a tomada de posse é revestida de uma encenação que faz corar de inveja os melhores encenadores da nossa praça. O ritual é composto por vários actos. A parte que mais me diverte é o final, quando se pensava que tudo já tinha terminado. A bem da verdade, é quando tudo começa. Depois do agraciado com a comenda pública lavrar a sua assinatura e jurar pela sua honra que vai desempenhar as funções com honra e blá-blá-blá, segue-se a parte mais demorada: o beija-mão.

É ver como as pessoas se acantonam numa longa fila para cumprimentar o felizardo. Os actos oficiais estão terminados; esse é o momento que serve de charneira para a parte, como direi, “social” do acto público. O aperto de mão de todas as pessoas que querem prestar a sua homenagem ao homem ou mulher que acaba de ser investido na importante sinecura. Um desfile de pessoas que, mais do que felicitar o investido, querem mostrar-se. Pode acontecer que, na distribuição de comendas que se seguem, o beija-mão venha a dar frutos.

Chegam a ser às centenas os funcionários públicos, de elevado estalão e a arraia-miúda, que se sacrificam na fila esperando largo tempo para se fazerem notados perante o homenageado. Arrastam vagarosamente os pés, à medida que a fila avança nuns lentos e esperançosos milímetros. Chegada a sua vez, desfazem-se em cortesias, derretem-se em lisonjas. No seu íntimo, cada um leva dali a esperança de que o beija-mão tenha colocado a sua pessoa na memória do figurão. Pode ser que calhe uma sinecura melhor, abrindo caminho à progressão na carreira. Outros, mais comedidos, prestam o tributo como exigência necessária. Marcam a sua presença, só para que o chefe saiba que eles existem. Temem que a ausência seja sinónimo de um acto de desrespeito. Não querendo arriscar as benesses instaladas, lá vão ao beija-mão.

Espanta estas pessoas julgarem que a sua presença na cerimónia é coisa decisiva para as suas carreiras. Mesmo que o cumprimentado tenha memória de elefante, alguém acredita que ele consegue fazer a contabilidade das presenças e das ausências? A menos que cultive um ego exacerbado (também os há), não estou a ver como se pode gastar tempo com essa contabilidade desprezível. Mas o ritual repete-se sem parar.

O beija-mão é uma estranha praxe. Desconheço se o ritual é exclusivo nacional, ou se reproduz o que se passa noutras paragens. Como perceber a necessidade do acto que prolonga por tempo indefinido a cerimónia de tomada de posse? Neste domínio onde a fogueira das vaidades atinge o seu esplendor, onde a luta de poder é coisa selvática, onde a mediocridade é premiada, talvez o beija-mão seja o necessário acabamento para embelezar a investidura. Se nada disto fosse apanágio do exercício da coisa pública, não seria importante estender a passadeira para sua excelência ser alvo da vassalagem dos súbditos. Se a meritocracia fosse o critério, as pessoas com mérito que fossem escolhidas não teriam a necessidade de ser aduladas.

O culto da personalidade faz-se de formas diferentes. Atingiu o seu apogeu nos regimes totalitários – fascismos e comunismos. Mas também se apoderou das democracias modernas, com o cortejo que se estende palácio fora na ânsia de estender a mão à proeminente figura que ascendeu na hierarquia. Este, investido na função tão importante, não se furta ao predicamento. Porque no passado também ele engrossou a fila por mais do que uma vez, sente-se engrandecido agora que chegou a sua vez de estar do outro lado, a receber intermináveis cumprimentos de quem o homenageia.

E se, em vez de se perderem horas com este ritual bacoco, toda esta gente estivesse a trabalhar?