28.9.07

Lobos, ou cachorrinhos?


A exemplar campanha dos “lobos” lusitanos pelo campeonato mundial de rugby terminou com a apoteótica recepção dos bravos heróis no aeroporto de Lisboa. O observador desatento diria que estávamos perante os campeões de mundo, tanta a algazarra, tantos os festejos que parabenizaram a façanha desportiva. E, contudo, os lobos foram tosquiados de cada vez que pisaram relvados e defrontaram os adversários. Há exculpações para a sucessão de derrotas, avançam alguns – entre adeptos da modalidade e outros que descobriram a galhardia com que os lobos lutavam em campo contra adversários imensamente superiores: eles eram a única selecção amadora (será?) e só a sua presença bastava para registar a heroicidade do feito.

Eu pensava que nisto das competições desportivas já tínhamos passado a fase das derrotas que se transformam em vitórias morais. Estava enganado. Regressámos ao passado, de volta à pequenez mal resolvida de quem foi império e agora está reduzido à ínfima parcela do território original. É incompreensível a excitação colectiva em redor dos lobos. Será que a entrega ao jogo (dizem os especialistas), a valentia inconsequente, o hino trinado com sentida emoção – será que tudo isto diluiu o desempenho que se traduz em resultados? E o esquecimento tomou conta da memória, passando uma esponja pelos objectivos traçados pelos lobos antes de viajarem para o campeonato? Queriam perder por menos de cem pontos com a Nova Zelândia. Não conseguiram. Queriam ganhar à Roménia, por a considerarem da sua igualha. Não conseguiram. É caso para perguntar: festejam o quê?

É verdade, são valentes, destemidos, atiram-se para os adversários com uma bravura que assusta, um misto de empenho físico e loucura. É verdade, são pisados, involuntariamente socados, apanham com um montão de corpos com mais de cem quilos em cima, partem dedos e perdem dentes, exibem feridas ensanguentadas sem o mínimo esgar de dor. As pessoas impressionam-se com a intrepidez dos lobos. E celebram-na. Fazem comparações: os jogadores de futebol são meninos do coro ao pé dos jogadores de rugby. Deviam tê-los como exemplo, perder as peneiras e aprender com o destemor dos lobos. Só que as pessoas deviam perceber que estas características não são exclusivas dos lobos. Todos os jogadores de rugby comportam-se desta maneira. Descartada, pois, uma possível explicação para a entronização dos lobos.

Houve quem tivesse ficado arrepiado com a forma como os lobos entoavam o hino nacional. Ainda há dias escrevi sobre isto, noutro tipo de registo: questionava o assomo de nacionalismo, como se os lobos sentissem “a pátria” mais do que o cidadão médio, ali perfilados como exemplos de dedicação à “nação” tão querida. As pessoas comoveram-se com a emotiva forma de cantar o hino. Esqueceram-se de fazer outras perguntas inconvenientes: antes dos jogos do campeonato do mundo, os lobos também cantavam assim o hino nacional? É que não há notícia de tal feito. Das duas uma: ou a imprensa andava distraída para a comovente entoação do hino nacional de cada vez que os lobos entravam em campo em representação da portugalidade, ou os lobos descobriram este truque para chamar as atenções sobre si. Aos que se entusiasmaram tanto a ponto de heroificarem os lobos, fica aqui o repto: investiguem, mergulhem nos registos de jogos anteriores e vejam se já nessa altura havia tanto, e tão patético, empenho ao cantar o hino. É que se chegarem à conclusão que os lobos só descobriram o orgulho pátrio, via hino cantado, perante as câmaras que filmavam para todo o mundo os jogos do campeonato do mundo, fica desnudada a composição de imagem dos lobos.

O empenho e a entrega não chegam para aplaudir ninguém. Apetece-me tecer uma analogia com os alunos que avalio ao fim de cada semestre. Serei capaz de passar um aluno esforçado, mas que nitidamente não mostrou conhecimentos mínimos? Aos que acham que o empenho chega, ou que a entrega e a capacidade de trabalho mostrada são meio caminho andado, digo que assim estamos a formar ineptos. Talvez seja uma possível explicação para o atraso de que padecemos, para o hiato de produtividade em relação à média europeia. O empenho também conta. Mas tem que ser aliado ao desempenho, aos resultados conseguidos. De outro modo, aplaudimos a mediocridade. E se, em turba, formos condescendentes com a mediocridade, acabamos por mostrar a mediocridade de que somos feitos.

Estranha esquizofrenia colectiva que nos anestesia diante da mediocridade, aplaudida demoradamente.

27.9.07

O comodismo da desconstrução


Tenho um ficheiro onde arquivo os assuntos que ficam em fila de espera para serem transformados em texto diário. Olho para o ficheiro e vejo os temas à espera de tratamento: as figas para que o D. Sebastião que nos governa fracasse na conclusão do tratado que virá substituir a abortada Constituição da União Europeia; uma digressão sobre o bafio que cobre os burocratas da praça, com o seu raciocínio tacanho e as cautelas cansativas que adiam decisões. Opto por não escolher nenhum dos assuntos. A eles hei-de voltar um dia destes.

A alternativa é perceber a simbologia daqueles temas. O que conduz à escolha de assuntos que jorram a crítica fácil, as palavras destrutivas sucedendo-se a um ritmo alucinante. Confesso que há um gosto perverso em alinhavar um raciocínio que desmonta, pedra por pedra, o que alguém disse ou fez, uma ideia, o que quer que seja. É natural que do outro lado a reacção não seja agradável (a não ser que fermente, activo, um fel que liberta a corrosiva crítica): a crítica pela crítica traz o cansaço. A certo ponto, a crítica reiterada, mesmo que venha aliada a um raciocínio límpido que tenta demonstrar a validade da desconstrução, esgota-se na sua própria insistência.

E, no entanto, não é só o gosto pela desconstrução que me coloca na rota dos textos críticos. Admito: é que escrever como alicerce da decomposição do que está de pé é a alternativa mais fácil. Eis-me rendido ao comodismo. Sucumbo perante a tarefa facilitada de esgrimir argumentos que destroem o que aparece pela frente e causa alergia, ou apenas alimenta a perplexidade, ou mesmo uma inquietação que toca os limiares do incompreensível. De braço dado anda uma insatisfação perene com o estado das coisas que me cercam.

Mas o pior vem no fim: o restolho da desconstrução. É quando chego ao fim do texto crítico e revejo os argumentos que tecem a antítese que mais noto a insatisfação interior. Nessa altura, parece-me que as palavras transpiram um moralismo insuportável. Eu, que odeio moralismos de qualquer jaez, sem dar conta vou tecendo uma crítica que no final vem debruada com um moralismo às avessas. Não tenho por hábito regressar a textos antigos (o tempo escasso é adversário da função). Nas raras vezes que o faço, descubro nessas palavras a lança moralista por antinomia. É que na crítica de gente, palavras dos outros, ideias, decisões, usos e costumes estabelecidos, solto o seu contrário. Haveria ao menos de se identificar algum mérito: prova-se que a crítica não é gratuita, como se intuísse a implosão de tudo sem haver a preocupação de levantar algo de novo.

Todavia, é isso que me desgosta, pelo travo de moralidade de sinal contrário que se ergue na linha do horizonte. Por paradoxal que pareça, descobrir que a desconstrução que se ensaia nestas palavras esconde um programa moral insinua em mim um inexplicável desejo de radicalizar a metodologia crítica – a pura desconstrução, sem cuidar de alternativa que substitua a devastação semeada pelas palavras tão críticas. Ao reparar na agenda moral escondida que sobra da demolição dos outros, das suas palavras ou ideias, dos usos e costumes, escorrego para aquilo que mais me perturba nos outros – quando se arvoram em sacerdotes da moralidade alheia, ditando regras que os outros devem respeitar em obediência ao “bom funcionamento da sociedade”.

É então que descubro que a crítica é sempre inacabada. Porque deixa vir ao de cima o contrário do que é criticado, o modelo diferente de moralidade – mas sempre uma moralidade que se devia cingir ao mais profundo do ser, sem gotejar cá para fora como manifestação de algo que o exterior de mim deva obedecer. A opção pela desconstrução é sucumbir perante o comodismo. Mas é, ao mesmo tempo, um suicídio do roteiro interior que rejeita a moralidade aspergida pelos outros. É uma contradição de que não me consigo desfazer. E tudo isto se volta contra mim, entregue nos braços dúcteis da incoerência.

Porventura, em vez de ceder perante o travo doce do que é aparentemente fácil (a crítica metódica), a libertação da paradoxal e insidiosa moralidade escondida na desconstrução exige mudança de planos: o sextante afinado para a arte tão difícil de elogiar, tecendo textos contemplativos, encomiásticos, singelos textos que destacam a beleza de pequenos nadas.

26.9.07

Deificação – e nacionalismo saloio


Como se nada mais importante houvesse a tratar, andámos entretidos com a demissão de um treinador de futebol que fazia furor em Inglaterra, tantas as vitórias e troféus arrebatados. A comunicação social elegeu a causa do momento e fê-lo com a parcialidade em que se especializou. O treinador, esse, foi glorificado, endeusado, quase como só se faz aos mortos que entram no panteão dos perfeitos porque já não estão vivos.

Para que conste, um registo de interesses: antipatizo com a personagem que saltou para a ribalta por ter sido “injustamente” despedida do clube londrino. Mas como não venho aos feitos desportivos e ao ter ou não nascido para ser predestinado, deixa-me à vontade para olhar para o circo mediático com um sentimento de agonia. Bem sei que o sujeito já ganhou foros de herói pela contemplação de milhares e milhares de nativos. Os seus feitos são uma exaltação da pertença nacional. Afinal, ele é um “dos nossos”, que anda lá fora a espalhar a boa têmpera de que a gesta lusitana é feita. A versão moderna das conquistas, que traz o arrebatamento nacional à flor da pele. Convinha que explicassem às massas que os sucessos dele só a ele pertencem. É abusiva a apropriação colectiva das glórias desportivas de que é feitor. Aposto que o treinador sentirá desconforto ao perceber que a sintonia de um povo com os seus êxitos, logo expropriados como caução da excelência nacional, tem o condão de colocar esse povo como parasita que adjaz a quem trabalha e festeja os feitos como se fossem seus também.

(E, já agora, era conveniente explicar à turba que ele, sozinho, não consegue ganhar jogos; que o desporto em causa tem muito de aleatório; e que há onze peças no tabuleiro – é certo, colocadas por ele, seguindo a estratégia que ele congeminou – mas que essas peças são cruciais para a vitória que é sempre, mas sempre, do colectivo.)

A imprensa desajuda. Foi patética a cobertura mediática, um jogo infantil entre os bons e os maus – entre o treinador “injustamente” despedido e o milionário russo que o despediu. Subitamente, não percebi se éramos convidados pelos militantes plumitivos a mostrar piedade pelo treinador despedido, ou pelo clube que iria decerto ficar órfão de tão salvífica personagem. É que se foi a primeira hipótese, a comiseração terminou no exacto momento em que se tomou conhecimento da indemnização astronómica que o demitido embolsou. Resta a segunda hipótese: afinal o “clube de todos nós” não será o popular Benfica, mas o Chelsea. Todos os dias aprendemos coisas novas.

O rosário de disparates continuou pelos dias que se seguiram. Reforçou-se a imagem do injustiçado, porque é intolerável demitir quem tantas vitórias depositou no regaço do clube. A personagem, esperta como sempre, prestou-se ao papel. A imprensa doméstica continuou de olhos postos no desempenho do clube que teve a ousadia de demitir tão infalível personagem. Todos à espera do jogo seguinte, todos os corações palpitando pela derrota – e de preferência contundente – para provar o tremendo erro de desaproveitar tão insigne figura. O Chelsea perdeu. Uma nação aplaudiu de pé. A vingança amesendada a frio. Afinal o Chelsea não destronou o Benfica do pedestal.

De permeio com a deificação, uma insalubre querela luso-britânica. Nós contra eles, como se ainda estivessem pendentes assuntos mal resolvidos da História conjunta. De que serve a retórica oficial de que o Reino Unido é o nosso mais ancestral aliado? Chegam ao conhecimento estes problemas e logo ganham natureza de incidente diplomático. A dicotomia “bom/mau” passa para a dimensão dos países, deixa de pertencer às relações profissionais entre demitido e quem o demitiu. Entramos no nacionalismo pacóvio. Para atirar mais lume para a fogueira, a imprensa serve-se de um acólito de ocasião: o fantasma dos nefandos capitalistas que são demónios à solta, apenas preocupados em apascentar os caprichos que a opulência autoriza. É o multi-milionário desmiolado que prescindiu do ilustre treinador, até se dispondo a pagar uma indemnização com mais números que muitas fortunas cá do burgo.

O outro, despedido e vítima da tenebrosa ingratidão do capitalista mafioso (que só agora a imprensa lusa foi vasculhar as origens da sua fortuna; antes, quando era patrão do predestinado, a fortuna era limpa como a cal. Agora tingiu-se com um breu implacável), sai do episódio voando com as suas asinhas de querubim. Irá a voar para a celestial dimensão onde só moram os deuses, infalíveis como nos são apresentados. Suspeito que este deus será o primeiro a habitar entre os terrenos, a crer no embevecimento com que a comunicação social contou a novela e no imparável umbiguismo da personagem.

25.9.07

Vende-se país


Não, não é mais um exercício de miserabilismo pátrio. Não foi o querido Portugal posto à venda. Soube há dias, foi a Bélgica em cacos que apareceu disponível para licitação pública num site que se dedica a leilões na Internet. A licitação começava por um milhão de euros. Uma pechincha, dirá o mais distraído. E aparentemente terá razão. Com um território que se estende por pouco mais de 30.000 quilómetros quadrados, o preço do metro quadrado sai em conta (33 euros).

Eis como o humor é a melhor terapia para casos problemáticos, daqueles que os sempre sérios políticos são incapazes de oferecer solução compatível. A Bélgica foi posta à venda porque há cerca de três meses está sem governo, após a realização de eleições. As negociações para a formação de governo não conseguem ultrapassar o impasse. Os partidos que podiam formar a coligação não se entendem, devido às divisões linguísticas que fazem da Bélgica um país tão peculiar.

Lembro-me da estranheza que senti quando fui a Bruxelas pela primeira vez: a toponímia, as placas com indicações, nas ruas, no metro, nos museus, tudo bilingue (francês e flamengo). Mais os conselhos do tio habitante em Bruxelas: se fosse para norte, terra dos flamengos, era preferível falar em inglês. É que eles olham de soslaio para o visitante que aparece a falar em francês. Detinha-me no mapa e nos dados geográficos e a perplexidade aumentava, sobretudo para quem estava habituado à tessitura homogénea do chão pátrio. Um pequeno país, cerca de um terço do território português, e tanta diversidade cultural, linguística, religiosa. E uma rivalidade ancestral entre valões e flamengos. Um país em pinças pela inimizade histórica entre as duas comunidades. Aprendi então que o federalismo é o milagre que cimenta os buracos que separam as duas partes com tudo para serem figadais inimigas. De como duas comunidades em antagonismo conseguiram superar inimizades e fazer-se país.

O espectro da divisão sempre esteve visível no horizonte belga. Agora recrudesceu, pela incapacidade de fazer nascer um governo, e porque essa incapacidade recua às rivalidades entre as duas comunidades. Um diálogo de surdos e as campainhas da intolerância a soarem mais alto que nunca fermentam o esboroamento da Bélgica. Há já quem sugira que, perante o impasse, a solução é a ruptura entre as duas partes belgas, o decesso da Bélgica como a conhecemos. A União Europeia perderia um dos seus Estados fundadores. Em sua substituição viriam dois novos (quase micro) Estados. De vinte e sete para vinte e oito Estados, a nova composição da União Europeia.

Dizem os sábios, “para grandes males, grandes remédios”. E se há casais que chegam ao fim da linha e escolhem o divórcio, também o casamento frágil que manteve a Bélgica como Estado tão artificial pode estar a caminho do divórcio. A História está repleta de casos de recomposição de fronteiras. A tendência recente é a pulverização de fronteiras, com a desagregação de outrora grandes países em vários Estados que assumem a sua autodeterminação, ganhando direito à independência. Tivemos a implosão da União Soviética e da Jugoslávia, mais a divisão da Checoslováquia. Seguir-se-á a Bélgica? E depois, a Espanha? Pois também há quem diga que o conglomerado de nacionalidades deu origem a um país artificial, um espartilho que asfixia a identidade dessas nacionalidades. Riscos que a portugalidade, tão homogénea, não corre. Para gáudio dos que mostram exacerbado orgulho pátrio.

Nada impede que Portugal surja à venda na Internet. Pode sempre aparecer um provocador profissional que se disponha a vender o país que o viu nascer. Assim como assim, somos educados na convicção de que somos o país e que o país somos nós. Daí ao direito de dispormos do património que nos pertence, um singelo passo. O seguinte seria congeminar uma fórmula atractiva para a licitação pública (e um valor de partida). Ilógico assumir o milhão de euros proposto para a Bélgica e usar uma regra de três simples, computando o território luso para aferir o valor de partida. É que as terras têm qualidade diferente. E o lastro dos países – o desenvolvimento que mostram, a têmpera dos povos – é factor de elevada ponderação. E ainda que Portugal seja 2,7 vezes maior que a Bélgica, isso não seria suficiente para começar a licitação pública com 2,7 milhões de euros. Exigível um factor de correcção para desvalorizar a proposta lusitana. Por estimativa, diria que seria aceitável partir de dois milhões de euros.

Faltaria a fórmula acertada para seduzir os potenciais compradores. Sugiro esta: “terra de abundantes horas de sol ao longo do ano, variedade de paisagens, monumentos a carecerem de intervenção reabilitadora, gastronomia válida, vinhos de qualidade, folclore inestético, fado enfadonho, tristeza popular por aplacar e preguiça congénita incorrigível; paz social e brandos costumes fazem da sociedade um plácido conjunto fácil de domar a quem vier gerir o estabelecimento.

24.9.07

O poder da palavra “undo” (outro ensaio de niilismo)


Há palavras notáveis, como se fossem terramotos devastadores que abalam até alicerces enraizados no mais profundo solo. “Undo” é uma dessas palavras. Na tradução literal para português, “desfazer”. Parece-me que esta tradução não mostra o carácter poderoso da palavra quando formulada na língua inglesa. A etimologia ajuda na tarefa. “Do” é o termo inglês para “fazer”. Até aqui, parece que a tradução dos termos oferece uma perfeita analogia. Quando o “do” vem antecedido pelo “un”, esta partícula produz o efeito destruidor do que foi feito. Tal como na língua portuguesa, que o “desfazer” revela como é possível destruir o que foi laboriosamente feito.

No entanto, “undo” enfatiza a ideia de devastação de um singelo momento demolidor. Não sei se será por reunir em apenas quatro letras a ruína do que foi desfeito. Já em português exige-se uma palavra mais comprida (oito letras), dando a ideia que o impulso destruidor passa por um esforço que, em muitos casos, fica aquém das energias que o dobro das letras (“undo” e “desfazer”) insinua. Desnudada a ideia que arruinar é um acto simples, muito mais simples do que construir algo. Num abrir e fechar de olhos, o que demorou tempo e consumiu energias é derrubado, semeando a desolação ao ver como tempo e energias dedicadas foram arrebatadas por um breve momento destruidor. “Undo” perfuma a devastação com a singeleza da palavra – tão curta, tão aparentemente anódina e, no entanto, tão avassaladora.

A deambulação etimológica transporta-me ao terreno do niilismo. De como toda a matéria se resume, em última análise, à destruição de tudo. É mais difícil construir, edificar, colaborar numa tarefa que traga obra feita. Leva tempo, exige o melhor da massa cinzenta, reúne a faceta imaginativa que desdobra a melhor essência da espécie humana. Por mais prodigiosa que seja a obra humana ou os feitos da natureza, o que fica à mostra é a sua delicadeza, como anos de esforço podem ser varridos num ápice por uma imparável força devastadora. Onde antes havia paciente construção humana as forças destruidoras esmeram uma fantasmagórico despovoamento. Anos e anos de labor humano diluídos em nada por instantes de imparável destruição.

A desconstrução pode vir de actos humanos como ser obra da natureza. No sempre inacabado balanço da história da humanidade, ainda está para estimar o deve e haver entre o movimento construtivo que edifica e os impulsos ensandecidos dos Homens que ousam destruir o que levou tanto tempo a compor. As guerras são o paradigma da estupidez humana que vem recalcar o que foi erguido e entretanto derrubado por bombas que eclodem com a sua força arruinadora. Ou as relações humanas que se diluem em nada, quando o mais difícil foi cimentar pacientemente laços e afectos.

Impressiona-me mais a força destruidora da natureza, cataclismos vários que a mão humana é incapaz de domar. Terramotos que derrubam casas como se fossem frágeis castelos de cartas. Furacões que sopram ventos diabólicos que levantam árvores, telhados, pesadas estruturas metálicas como se tivessem a leveza de uns gramas. Cheias que tudo inundam e interrompem a vida habitual dos povos, cercados pela água enlameada que destrói haveres acumulados em anos e anos de suor do trabalho. Tudo se extingue na voracidade de uns instantes. A fragilidade humana diante da poderosa natureza, indomável quando grita através da fúria dos elementos.

Dir-se-ia que a natureza que protesta encerra, no seu amplexo devastador, a essência niilista. O não que se sobrepõe à paciente elaboração das obras humanas que se entretecem à medida que as folhas do calendário são desfolhadas. Contudo, a manifestação da natureza, mesmo que tenha a voz ensurdecedora da destruição, é obra construtiva. É construção da natureza, mesmo quando a sua voz ecoa nos prantos das vítimas da devastação dos elementos indomáveis. Poderão os efeitos da natureza gritante estender a lamentação pela destruição entristecedora, o travo amargo de derrubar o que fora laboriosamente edificado. Há nisso um vento destruidor da gesta humana. Olhando apenas às forças da natureza, elas contêm algo de construtivo. A natureza em acção, independentemente dos efeitos nos humanos, não é destruidora. Um terramoto, um furacão, uma cheia, tudo destrói o que foi construído. Antes disso, são acção, são edificação da natureza.

A história da humanidade é o património genético do labor, os feitos e as obras emolduradas em livros que enobrecem a espécie. Sedimentam o tempo que passa e o suor humano que se enxaguou em obras, emblemáticas ou tão singelas como o lar onde habitamos. No deve e haver da humanidade, o fazer sobrepõe-se à força arrebatadora da destruição. Porém, a fragilidade de tudo o que foi feito fica à mostra sempre que a destruição fala mais alto. De como anos a fio de perseverante edificação se esboroam perante uns instantes de força destruidora indómita.

21.9.07

Música tortura


Continua a melomania, talvez a frustração de nunca ter aprendido música e de tanto dela gostar. Há sons, formatos, projectos, propostas, ritmos, artistas que agridem os tímpanos, ou apenas acusam a negação da estética. E por mais que seja tributário do relativismo, não arrisco cair em incoerência se disser que há sons que escorregam para os umbrais do mau gosto.

Não quero impor padrões estéticos ao confessar a irritação pessoal com o folclore minhoto, com a delirante música pimba que faz as delícias de emigrantes de regresso à terra pátria em Agosto, com certos ícones de música “pop” que empertigam adolescentes a braços com a borbulhagem que irrompe fruto de altercações hormonais, e com o meu odiozinho de estimação, David Fonseca. Não é intenção impor nada. Mas como não meço os meus padrões pela bitola dos outros, não me preocupa que haja quem goste daqueles estilos, daqueles artistas. Não ofendo o relativismo se fixar a inestética dos exemplos que acabei de fornecer. E se alguém viesse esgrimir argumentos a negar qualidade de outras músicas que reúnem as minhas preferências, só daria razão pela liberdade de opinião que a todos toca.

Noutros casos, não diria que é franqueada a porta do mau gosto: trata-se de sons pouco conhecidos, pelos menos no mercado do que é trazido à audição comum, e que agridem como se fossem instrumentos de tortura. Há um estilo musical que se encaixa à perfeição no protótipo. É uma música pouco conhecida do grande público, circulando no circuito nocturno, nas discotecas da moda. No afã de catalogar estilos musicais, há quem lhe chame trance, ou house, ou lá como isso se chama.

Quando acontece dar de caras (neste caso, esbarrar os ouvidos) no estilo, ao fim de alguns minutos noto uma desorientação dos sentidos, como se tivesse perdido o norte. Se por acaso acontece a música ser escutada no interior de uma discoteca escurecida, debitando os sons estridentes enquanto vem acompanhada por um feixe de luzes psicadélicas, o que sinto é que todos os passos são desconjuntados, que as caras que se cruzam parecem ir e vir como se fossem sopradas por rabanadas de vento que piscam ao sabor das luzes que ecoam a batida uivante da música. Não há muita distância da música minimal, pois o trance (ou o house, ou lá o que isso é) não é composição musical elaborada. Há mesmo um troar repetitivo, que entra nos corpos e os leva ao maquinal efeito da dança prolongada, anestesiados pelos uivos que os sedam até ao automatismo dos movimentos.

Das vezes que fui espectador desta música em discotecas senti o seu efeito poderoso, mas torturante. Olhava para a coreografia dos corpos, entregues ao robótico ondular que se repete enquanto os sons se prolongam, também eles repetitivos, por minutos que não parecem acabar nunca mais. Há nesta música, quando misturada com a enigmática escuridão de uma discoteca e o feixe de luzes psicadélicas, um parêntesis no tempo. Que parece suspender-se, demorar-se nos ponteiros retardados do relógio, também eles anestesiados pela música torturante.

Diria que há um efeito hipnótico, um inexplicável efeito hipnótico. Houve uma vez que o pude comprovar. Com vários amigos, numa discoteca algarvia que passava exaustivamente este tipo de música. Um deles juntou-se aos corpos ondulantes que festejavam a orgia de sons trance, ou house, ou lá como isso se chama. Recebeu a companhia de outro. O tempo passava e eles mantinham-se militantes peões da coreografia desengonçada, deixando que a cabeça, os braços e as pernas se entregassem aos gestos autómatos da dança. O cansaço apoderava-se de alguns dos outros, que eram apenas espectadores. Um voluntariou-se para ir chamar os outros. Já não regressou. Outro foi ao local dos corpos dançarinos para resgatar os outros três. E o tempo demorava-se sem que ninguém regressasse. Parecia que pisar o local onde os corpos celebravam a música que gritava a torturante sonoridade tinha um efeito contagiante, um mágico efeito contagiante. Os que lá iam deixavam apoderar os corpos pelo torpor insidioso da música trance, ou house, ou lá como isso se chama.

Confirmou-se: ao próximo que se ofereceu para recuperar os excitados dançarinos, um cenário hipnótico, como se tudo fosse tomado pelos sons repetitivos da música que soava estridente. Um deles disse: “isto pega-se”. Sem darem conta, extasiados pelo hipnótico efeito de uma música torturante. Imagino o efeito quando os neurónios dançam esta música anestesiados por comprimidos de ecstasy.

20.9.07

Assim chega o envelhecimento


Não é pelos aniversários que vão ficando para trás. Nem pelos cabelos brancos que vão ganhando camada nas laterais. Não será pelas pessoas mais velhas que partem, elas sim definhadas pelo envelhecimento que se instalou, impossível de derrotar. Até acontece haver amigos de infância que vão sendo enterrados, exangues pela droga que os carcomeu até ao esqueleto. Os poucos da minha idade e que comigo conviveram, que entretanto voaram da vida, semeiam uma angústia condoída. É então que sinto, talvez pela primeira vez, como o tempo também se encaminha para o meu envelhecimento. A dura realidade instalada a cada instante, sedimentando o moroso envelhecimento.

Hoje, não é essa fonte de velhice que me traz ao tema. É a morte de um programa icónico da música alternativa, que já levava quase trinta anos de existência, com rebaptismos mas sempre com o mesmo traço inconfundível do divulgador: António Sérgio. Ainda sou do tempo – do já longínquo tempo – em que o “Som da frente” passava a meio da tarde na Rádio Comercial. Não consigo reprimir a nostalgia desses tempos. Do febril consumo da música independente que António Sérgio trazia até nós, com a sua lupa meticulosa, o dedo selectivo que sabia separar o trigo do joio na muita música que (adivinho) chegava até aos seus ouvidos.

Até me recordo de quando o programa sofreu o primeiro rebaptismo e mudou de horário. Passou a ser “A hora do lobo” e migrou para um horário bem entrado nas profundezas da madrugada. E de como alterei horários, adiando a hora do sono para continuar a educação musical de que António Sérgio era pedagogo maior. Lembro-me: estava no último ano da licenciatura. Havia dois dias da semana com aulas às oito da manhã e não adormecia antes de o programa terminar, já os ponteiros batiam nas três da madrugada. No dia seguinte, não sentia falta do sono. Diria que havia alimento para o espírito nas duas horas “do lobo” que davam alento para as aborrecidas aulas de um direito-de-qualquer-coisa que vinham cedo pela manhã.

Depois perdi o rasto aos programas sempre madrugada dentro de António Sérgio. Só esporadicamente, uma vez em viagem noite fora, outra vez em demanda noctívaga com os amigos, ia ao encontro do programa. Há algum tempo soube que António Sérgio foi convidado por uma editora a organizar uma colectânea que condensasse todos estes anos de divulgação de música independente. A colectânea herdou o nome mais emblemático de todos estes anos: “Som da frente”. Recentemente a sua voz inconfundível ecoava pela casa quando a cara-metade sintonizava a SIC. É a voz que anuncia, nos intervalos entre um programa e a publicidade, o genérico de mais uma telenovela brasileira. Ao início, estranhei a voz cavernosa de Sérgio a disparar pormenores de mais uma xaroposa trama que se embrulha em maldades e amores que só no fim se reconciliam com a bondade. Depois fui notando como a voz descrevia as tramas, deslizando num tapete de ironia que só os conhecedores da personalidade de Sérgio conseguiam discernir. Ou, pelo menos, assim me soava; talvez como pretexto para aceitar que Sérgio emprestava a voz para divulgar aquelas telenovelas embrulhadas num delicodoce papel de mediocridade.

Este texto não é um obituário de António Sérgio, que continua bem vivo. Talvez demasiado vivo, sem se entregar ao cansaço próprio da idade que se acumula em todos nós. Não me interessa que a sua voz seja o termómetro de uma das estações televisivas mais absurdas. Quem pode acusá-lo do que quer que seja? Perante os serviços inestimáveis que prestou no éter, tudo se lhe desculpa. Aliás, nem é isso que está em causa. É do obituário do seu programa que se trata, assassinado a sangue frio pelo juvenil director da Rádio Comercial. Sim, o rapazote terá sido apenas testa-de-ferro dos espanhóis socialistas que controlam a Rádio Comercial. A música independente é um subproduto para uma rádio que cada vez mais faz jus ao adjectivo que coroa o seu nome. Ao que consta, sobrava um escasso reduto de incondicionais a sintonizar nas altas horas da madrugada o programa de António Sérgio. Numa rádio tão comercial, não há lugar ao direito à diferença – que, se bem recordo, era slogan distintivo do “Som da frente”.

Que interessam as lágrimas de crocodilo do rapazote que dirige aquela estação? Soubemos que se diz “amigo” de António Sérgio. Honra lhe seja feita: amizade não confunde com profissionalismo. Só que escusava de se desdobrar em escusas frívolas para justificar o assassinato do programa. Há alturas em que as palavras, mesmo as que soam a esforçadas desculpas, são ensurdecedoras deambulações pela indigência. Até isso nem interessa, que os livros da história não albergam sequer um rodapé para os medíocres. As figuras gigantes que souberam tecer, discretamente, o seu caminho, essas têm lugar garantido. António Sérgio até pode concluir que cumpriu a sua missão. E recusar a migração do programa para outra estação. Será um direito que lhe temos que reconhecer. Pelos serviços prestados em todos estes anos. E porque a ingratidão, a pesporrência, a ignorância deixam marcas indeléveis. Sérgio deixou a sua, construtiva. E isso não se apaga, nem que mil directores de rádios comerciais a soldo da incultura o queiram.

19.9.07

Contra factos…



Passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a determinação e, em geral, o sucesso com que foram definidas e desenvolvidas as principais apostas do Governo do PS (…)”, Vital Moreira, Público de 18.09.07

Todos os governos têm o seu Luís Delgado de estimação. Este (governo) muniu-se de uma correia de transmissão que tem o condão de perfumar as doutas opiniões com a sapiência que os lentes de Coimbra costumam ostentar. Vem da tradição: o lente perora e os comuns dos mortais, reduzidos à insignificância intelectual, agacham-se perante as deslumbrantes exibições de erudição, que a cátedra coimbrã não autoriza voz discordante.

Talvez assim se compreenda a entrada de rompante deste artigo doutrinário. Doutrinário, porque é um balanço encomiástico do governo, em jeito de verdade que fica registada nos anais. Doutrinário, ainda, na medida em que é asseverada a impossibilidade de contestar o sucesso do governo. É importante reter aquela fórmula, antes que ela passe como uma simples distracção semântica: “não se pode contestar”. E ponto final. Assim se celebra a liberdade de opinião, desde que ela reme para o lado do doutrinador que espalha a boa nova socialista. Porventura há hábitos que vêm do passado, formatações intelectuais de que é difícil o desprendimento. Quem usa aquela fórmula, ainda que o faça com o pretexto de que é uma força de expressão, encerra um labiríntico raciocinar pouco dado à tolerância em relação aos dissidentes.

É que, por acaso, até acho que o rol de façanhas desfiado pelo Avó Cantigas do PS merece contestação. É-mo permitido? Ou arrisco o desdém do professor coimbrão, à laia de reiterada arrogância, mesmo que queira rebater, uma por uma, as façanhas que este governo messiânico terá alcançado? Advirto, para começar, que não mo apetece fazer neste texto – e, repito, não é por falta de assunto, que atirar com provas da discordância da excelência deste governo, negando o panegírico do Prof. Vital, daria pano para mangas.

O que me intriga é aquela fórmula, a conjugação assassina de palavras que é a pior maneira de começar uma discussão (desiderato que, imagino, não é pretendido pelo artigo do opinador) ou de apresentar um ponto de vista. O jurista Vital, se algum dia pleiteasse em tribunal, decerto entraria de mansinho. A arrogância cai mal, mesmo aos senadores intelectuais que se encavalitam no capitel da (sua) razão. O diagnóstico piora quando a doutrinação é servida por alguém apresentado como independente e consagrado professor universitário (e de Coimbra, ó fama de antanho que perdura, perdura). É que há independentes que são mais propagandistas que devotos militantes em demanda de sinecura. Debaixo do manto da independência, há um servilismo escondido pela estatura intelectual do universitário reputado. Se fosse um Zé-ninguém a escrever “passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a bazófia, o culto de imagem e, em geral, a vacuidade do Governo do PS”, logo tombava o Carmo e a Trindade pela inconsequência da opinião emoldurada pela verdade incontestável que a frase encerra.

A urgência em compor os dois primeiros anos deste governo com uma máscara esbelta levanta suspeições. O Avó Cantigas tem direito à sua opinião – tem até direito a ventilá-la como se vivesse num paradisíaco país que só ele consegue discernir. É mais duvidoso servir-se do seu estatuto senatorial para disseminar a palavra inabalável, a verdade que todos temos que tomar sob pena de arrostarmos acusação de desonestidade intelectual ou erro de apreciação. O artigo doutrinário enumera muitos feitos ocultando o contexto que facilitou o sucesso (ainda assim, sempre discutível), ou ignorando “reformas” anunciadas à exaustão, publicitadas mais que uma vez em pomposas celebrações, mas que são terra árida quando se indaga a sua concretização. Isto só para começo de discussão; provando que, afinal, o Avó Cantigas está errado quando afirma que “não se pode contestar”. Pode, pode, senhor professor. Sobretudo quando alguém, para mais do seu estalão, anuncia aos quatro ventos o contrário, qual sentença inamovível que os pobres de espírito devem acatar, embrulhados na sua humilde estatura intelectual.

Em vez de só retratar o lado bonançoso da empreitada Sócrates, devia olhar para a outra banda, perder o viés que faz dele um “juiz” parcial. E se tanto se indignou – e com razão – do vergonhoso financiamento ilegal da Somague ao PSD, até hoje não se leu uma palavra, por singela que fosse, sobre o lodaçal em que os socialistas estão metidos, com financiamentos duvidosos obtidos no Brasil.

Há mitos que se esboroam ao passar a primeira brisa.

Há pouco, no Coliseu

Massive Attack - Karmacoma (live).

(E ficou provada a incultura geral do povo: quando passou o nome de Kaúlza de Arriaga entre as figuras públicas nascidas no Porto, ninguém conheceu o "fascista" e os assobios ficaram no bolso.)

18.9.07

As chinesices da Zezinha


Vale a pena andar acordado, e de olhos bem atentos ao rodar do mundo, para dar de caras com o insólito que nos cerca sem capitular. Não falo pelas surpresas boas da vida, aquelas que vêm adocicar a existência. Um livro, um disco, um filme, uma atitude de um anónimo na rua, um encontro inesperado com alguém que julgávamos desaparecido do horizonte, uma palavra singela. São estes instantes não programados que trazem aqueles dias absolutos, em que tudo parece perfeito, até os defeitos que espreitam à superfície. Instantes que dão alento para aguentar os pataratas que insistem em borrar a pintura, triunfantes no campeonato de imbecilidade. E, no entanto, há cada vez mais o impulso de rir, e a bandeiras despregadas, da idiotice alheia. Que é património genético da boa disposição semeada pelo paradoxal efeito de rir com o que só faria apetecer chorar.

Neste diagnóstico cabe o protótipo daquelas figuras públicas, muito enamoradas com a posse do poder, e que não hesitam em dar piruetas que fariam garbo ao mais exercitado dos ginastas com predicados olímpicos. Há-os em todos os quadrantes, em todos os lugares, sempre prontos a afinar a bússola para onde farejarem a possibilidade de deitar a unha ao poder. Em Lisboa tem-se destacado uma ilustre dignitária da direita conservadora e de sacristia que se enamorou pelo “projecto” do Costa que saiu do governo para fazer tirocínio à frente do município, etapa transitória para voos mais altos (o timoneiro que se acautele…). Consta que a beata está na calha para liderar um gabinete municipal para revitalizar a baixa pombalina.

Ainda antes de tomar posse, a comissária já começou a opinar. Eu diria, a asneirar. Perorou em defesa do “comércio tradicional”, dirigindo a artilharia contra um dos esteios que ameaçam o sector – as lojas chinesas que se multiplicam que nem cogumelos. Ter-se-á esquecido da outra lança apontada contra o comércio tradicional: os hipermercados. Falta saber se mais tarde fará investida contra as grandes superfícies comerciais em nome do tradicionalismo do comércio, ou se foi apenas um esquecimento oportuno, pois ao menos os hipermercados são capital português. Laivos de nacionalismo económico, reforçados pelo chauvinismo da medida: os malditos chineses, que proliferam por todo o lado e seduzem os incautos comerciantes com preços módicos e má qualidade do produto vendido.

A futura comissária para a baixa pombalina tirou da cartola uma mágica solução: fazer uma China Town no Martim Moniz, onde as lojas chinesas estariam obrigatoriamente acantonadas (juro que esta palavra não tem conotação geográfica, lembrando a origem de muitos dos comerciantes chineses). Assim, por decreto, obrigando ao êxodo das lojas chinesas para um recanto da cidade. Nos outros lugares, elas seriam proibidas. Eis um magnífico exemplo de engenharia social. É destas mentes iluminadas que tanto carecemos para o prometido progresso que tarda em chegar. Assim como assim, noutras metrópoles, de países “civilizados”, também há uma China Town. Com o sucesso conhecido e o perfume de atracção turística, e curiosidade etnográfica, tão reconhecidos. A be(a)ta senhora comete um pecado analítico: nesses lugares, as China Town não foram edificadas por decreto. Nada de novo numa lídima representante da direita conservadora e de sacristia que não hesita em defender a intervenção mágica dos poderes públicos – afinal, tão perto dos socialistas com quem anda agora de braço dado.

Pelo meio, uma perplexidade muito pessoal: até passo por cima das cambalhotas das cores partidárias, que uma pessoa tem sempre o direito a chamar a si o conveniente pragmatismo que cauciona a mudança de camisola. Falo apenas de estranhas alianças que irmanam personalidades de quadrantes tão distantes como os dois Zés Pereiras que andam de braço dado neste arremedo de “união nacional” que o predestinado Costa conseguiu arquitectar em Lisboa. Falta saber se o Zé da extrema-esquerda autoriza a medida chauvinista da Zezinha da direita bafienta. O Costa que tutela esta incrível “união nacional” – à qual os outros deviam aderir, tão inadiável ela é para os desígnios lisbonenses e, quem sabe, a prazo, para os desígnios do chão pátrio – terá um problema para resolver? É que o Zé da extrema-esquerda, mais dado aos amores do multiculturalismo, não se deixará seduzir pela trauliteira e chauvinista “guetização” dos comerciantes chineses. Ou estarei enganado?

Assim fermentará o tão conhecido “zangam-se as comadres”?

17.9.07

Geografia ou inglês, onde está o lapsus linguae?

Acabo de ver o sagrado primeiro-ministro a soltar, a esforço, umas palavras em inglês ao lado de Bush. A meio da intrépida prédica, discorrendo banalidades sobre política internacional, refere-se ao "Middle West". Agora estou dividido, perante o dilema: a juntar ao rol das incompetências, um problema de geografia ou apenas imperícia no domínio da língua inglesa?

É que: i) ou inventou um novo problema na agenda internacional (o "Médio Ocidente" - onde é que isso fica?!); ii) ou devia saber que "Médio Oriente" se diz, na língua do seu anfitrião em Washington, "Middle East".

É caso para dizer: quando a necessidade de brilhar é tanta, às vezes sai-se chamuscado. Ninguém há-de reparar, que não se belisca a imagem imaculada de sua excelência, o que só faz jogging quando vai de viagem ao estrangeiro.

O alistamento dos mancebos, versão século XXI


Passo ao lado do edifício onde estão os serviços administrativos da tropa. Cá fora, a fachada efusivamente decorada com um cartaz de grandes dimensões e cores garridas. Retrata a excitação de ser militar, com as façanhas dos mancebos em pleno treino. A encabeçar o mural, a mensagem grita um lancinante apelo: “jovem, junta-te ao exército”.

Malditos políticos que baniram o alistamento obrigatório dos jovens varonis na tropa. Maldita evolução da sociedade que desprestigia o exército, ao roubar ao tirocínio militar jovens sem deficiência física ou mental. É o que hão-de pensar os militares de carreira, que viram fugir por entre os dedos um precioso filão – o dos recrutas que faziam estágio obrigatório debaixo da sua alçada, o abocanhamento da tropa sobre alguns meses (ou mais de um ano, no passado) da vida dos mancebos que não tinham fuga possível. Os tempos mudaram, os hábitos também, as percepções dominantes ajuizaram que deixara de fazer sentido roubar tempo aos jovens com uma preparação militar cuja utilidade passou a ser incógnita. Até porque as convenções perderam o rasto ao absurdo ditado que considerava que um homem só se fazia homem depois do estágio castrense.

A falta de mão-de-obra obriga a repensar estratégias. Os militares consideram-se os mestres superiores da estratégia, como é sabido. Não interessa que muitos erros de avaliação tenham engrossado o rol dos desastres em tempo de guerra, porque os generais confortavelmente depostos longe do terreno de batalha sabiam que se a estratégia desse para o torto não eram eles a pagar com a vida. Hoje só idealizam guerras – ou cenários, mil e um cenários em que dão azo à sua veia imaginativa, ou para se entreterem com algo que lhes possibilite dizer que têm tarefas para cumprir. E se hoje os jovens preferem em abundante maioria passar ao lado da carreira militar, como preferem nem ouvir falar dos quatro meses de serviço militar voluntário, os tropas profissionais tiveram que equacionar métodos modernos para atrair alguns ao serviço que outrora, nos “tempos decentes”, foi obrigatório. A tropa recondicionada aos tempos do marketing sublime.

Daí o amplo mural que chama a atenção pelas cores vistosas e fotografias ampliadas que exibem jovens mancebos na actividade que faz deles projectos de ninjas excitados. Há-de sempre haver um punhado de jovens destravados que transportam a ambição de serem sucedâneos dos heróis de pancadaria que passam em filmes de acção. Não sei se saberão a diferença entre a acção que passa nos filmes e aquilo que vão encontrar na recruta. Porventura contentar-se-ão em imaginar fantásticas acções bélicas enquanto fazem o treinamento que lhes é dado na recruta. Aposto que desconhecem o tratamento embrutecido que lhes é dedicado pelos acéfalos sargentos que exibem constantes abusos de autoridade, exigindo um respeito sepulcral – que nisto do exército a interiorização das hierarquias é pedra de toque.

E, de súbito, percebo as pontes que se tecem entre o exército e a igreja. Pela hierarquia bem oleada, que não se questiona. Pela entrega e dedicação dos crentes de ambas as fés, que se fazem carne para canhão de causas de que se julgam soldados acríticos. Pela existência de sacerdotes (chamem-se sargentos, alferes, ou padres, bispos) que ordenam e são respeitosamente obedecidos pelos soldados. Pelo desapossamento do indivíduo, que se despe de padrões mínimos de dignidade para aceitar as imposições da hierarquia, castrense o eclesiástica. E há dogmas, numa fé como noutra.

O mural colorido seduz os jovens excitados com a ideia de serem recrutas, de virem experimentar as delícias da vida militar. O que a mensagem esconde é muito mais. Esconde a ideia de se esfregarem em esterco, pisados por colegas em sucedâneos de refregas, maltratados por sargentos abrutalhados, sempre com o atractivo de carregarem ao ombro as vetustas G3 dos tempos da guerra colonial. Para muitos desmiolados há-de ser o supra-sumo da pós-adolescência que ainda goteja acne tardia. Vai mal o exército: há sinais que são o sintoma da crise. A vinda da tropa para o altar do marketing cheio de néons é o sinal do afastamento dos jovens, hoje mais dedicados a hábitos mundanos e entregues à perfídia do hedonismo. O mesmo mal atormenta as missões religiosas.

Daqui, uma sugestão: que espalhem – tropa e igreja – representantes pelas discotecas, tentando seduzir jovens sem perspectivas para a vida atractiva de uma missão – castrense ou eclesiástica. Seria o complemento aos murais que trouxeram nova política de comunicação à tropa. Haverá a igreja de replicar a estratégia?


14.9.07

A cidade do nevoeiro


A intensa cacimba que cerca a cidade retarda a alvorada. É a espessura do nevoeiro que confere uma luz mágica, não deixando perceber quando termina a noite e raia a manhã. Como se fosse uma ponte que mistura as duas partes do dia, ou o negociador de uma paz impossível entre os antípodas da luz. E, no entanto, há uma alquimia que as palavras não conseguem retratar. Uma luminosidade baça que envolve as coisas, as árvores, as ruas. Dir-se-ia que o céu vem beijar o solo, tão perto o tecto plúmbeo se acerca do chão.

Sentem-se as gotículas no ar, esbracejando ao sabor da brisa que acompanha a deposição da luz clara. E há um odor suave que vem com a bruma que se apodera dos locais. A luz que se insinua mergulha sobre a cidade. Faz dela um antro sombrio, que definha na escuridão que retarda a chegada da manhã. As pessoas amanhecem tristonhas, cercadas pela cacimba duradoura e fresca que esconde o sol que já vai alto. Contudo, é bela a alvorada pontuada pelo nevoeiro que toma conta da cidade. Mistura-se com o granito férreo e envolve-a num manto espesso, a dureza dos corpos sacrificados pela alvorada que se confunde com o martírio de um dia de trabalho que começa. Um percurso espinhoso, que o nevoeiro persistente e intenso mergulha as almas numa tristeza perene.

A luz embaciada da bruma insidiosa é de uma beleza singular. Possam os entristecidos pela manhã enevoada compreender que é então que se salienta a luz clara e poderosa dos dias solarengos. A transição de um dia plúmbeo para um dia aberto à claridade é um bálsamo que traz à superfície a beleza escondida dos dias carregados pelo manto que esconde o sol. Não devem soçobrar perante a modorra a que se entregam em dia empossado pelo nevoeiro. O clima é pródigo em abundantes horas anuais de sol, apenas entrecortadas por intervalos de dias chuvosos e ainda menor frequência de manhãs tomadas pelo nevoeiro. Até pela raridade, o nevoeiro merece sagração.

Em dias de entronização do nevoeiro, a cidade confunde-se no manto espesso que a cobre. A humidade corrói os ossos e entranha-se até na alvenaria mais impenetrável, entrando nas casas. Pela janela voga a luz baça que impede a visibilidade distante. As cores que costumam apresentar o brilho matinal são uma imagem turvada, uma sucessão de vultos que só ao perto recuperam a sua nitidez. Há nestes dias de bruma uma miopia que invade os olhos dos habitantes da cidade, obscurecida a vista pela ausente claridade. E quando o nevoeiro se torna mais espesso, descendo até beijar o chão, vejo pela janela uma camada acinzentada a planar suavemente em direcção do solo, aterrando na relva, fazendo-se metamorfose nas pétalas das flores que se saciam na humidade que vem pousar nelas. O céu aterra no chão plano, que o acolhe como leito retemperador da descida desde as altitudes por onde habitam pássaros e aviões.

A escuridão semeada pelo nevoeiro é balsâmica. Torna o amanhecer diferente, tremendamente poderoso na sua luz que reprime a nitidez das formas e das cores. Nestas manhãs, as pessoas são apenas vultos indiferenciados. Percorrem as ruas como autómatos, impossível o discernimento das faces, escondidos os podres que percorrem as veias. O nevoeiro é um teatro onde desfilam os vultos disformes que reprimem as feições detestáveis dos seres. Não sei se há apaziguamento do nevoeiro com o pessimismo antropológico: ao menos a luz embaciada esconde a podridão que estala pelos corpos dos transeuntes, transtorna a feiura dos corpos que escorregam, contrariados, pelas manhãs mal dormidas. Será uma simulação dos dias habituais, onde vegeta a claridade que desnuda toda essa podridão.

Eis a terapêutica de uma noite retardada pela luz não nítida do nevoeiro: as desgraças perdem a sua nitidez, ultrapassadas pela manhã plúmbea que ofusca as formas e as cores, como as pessoas que não passam de vultos. Às vezes acho que todas as manhãs deviam ser manhãs conquistadas pelo espesso manto do nevoeiro. Uma singular manifestação de beleza: na luz cinematográfica da cidade apoderada pelo nevoeiro, e pela dissimulação dos corpos que se cruzam nas ruas.

13.9.07

Para a alfombra do socialmente incorrecto: não, os ricos não devem pagar mais impostos


Há dias, o editorialista do Público asseverava que todos concordamos que os ricos devem pagar mais impostos. Tenho um problema com os iluminados que sentenciam consensualidades, como se estivessem mandatados para falar em nome de todos – e como se fosse um dado adquirido que todos remam no mesmo sentido, sem haver lugar a dissidências. Se uma voz basta para furar o unanimismo, eis que me ofereço para desmentir o editorialista do Público: não, os ricos não devem pagar impostos mais elevados. E não, nem todos entoam esse cântico.

Há um erro crasso na petição de princípio: quando se diz que “todos” admitimos a necessidade dos mais ricos terem de arcar com um sacrifício fiscal mais oneroso, damos por assente que pagam menos do que deveriam pagar. É o problema da dimensão subjectiva: quando é convocada a produzir os seus efeitos, perturba o simplismo de qualquer análise. É que uns podem achar que os ricos deviam pagar impostos mais elevados, enquanto outros já estão satisfeitos com o ónus que suportam – e as opiniões podem variar ao longo do tempo. Em segundo lugar, se levássemos ao limite a petição de princípio, até onde iria o aumento dos impostos dos ricos? Taxas próximas dos 100%? Que riqueza se produziria então, se quase toda seria confiscada?

Há um adágio popular que desmente a verdade insofismável do jornalista: quem vai com toda a sede ao púcaro arrisca-se a parti-lo. E assim os predicados do socialismo (moderno ou ainda embrulhado nas vetustas vestes de antanho) expõem a sua vacuidade retórica. Parece consensual que os ricos devam pagar mais impostos. Argumenta-se que o sacrifício para a construção da sociedade não pode obedecer a uma distribuição proporcional consoante o nível de rendimento ou de riqueza. Que devem ser os mais abastados a suportar o fardo mais pesado, pagando impostos com taxas mais elevadas. Os rendimentos do trabalho mais elevados são penalizados com taxas de imposto que se aproximam dos 50%. Traduzindo, quem tiver a fortuna de auferir estes rendimentos principescos sabe, à partida, que quase metade fica retida do outro lado, a favor dessa abstracção chamada “sociedade”.

Podia discutir a razoabilidade do princípio “os ricos que paguem a crise”, que durante os saudosos anos do Verão quente foi mote para os abundantes murais pintados pelos revolucionários. Ou a falácia do conceito de “solidariedade social”. Prefiro ajuizar a eficácia da ideia. São mesmo os ricos que pagam impostos mais elevados? Quem não conhece alguém abastado que refugia contas bancárias na Suíça ou num paraíso fiscal, para não ter que suportar os exagerados impostos que teria que arrostar se as domiciliasse na Lusitânia? Quem não travou conhecimento com empresas que estabelecem sede fiscal no estrangeiro, tirando partido de um regime fiscal mais favorável? O efeito é lapidar: riqueza criada cá dentro e tributada lá fora. No rescaldo, o socialismo mergulhado numa crise de coerência, por carência de receitas fiscais que fogem (com cobertura legal) para outros lugares.

Mas no fim sobra o discurso tão belo dos engenheiros sociais que convencem as massas – todos, no sapiente entendimento do editorialista do Público – de que os ricos devem mesmo pagar impostos mais elevados. Mudam as regras, aumentam as taxas de impostos, aperfeiçoam a máquina persecutória do fisco, instituem um clima de terrorismo fiscal, com entorses a princípios básicos do Estado de direito (a inversão do ónus da prova: o contribuinte acusado de fuga ao fisco é que tem que provar a sua inocência). A máquina de cobrança de impostos tão bem oleada e, no final, os mais ricos começam a emalar a riqueza e a pagar impostos em lugares distantes e mais generosos para a sua abastança. O fisco, por cá, de mãos a abanar. O preço a pagar pela ganância socialista.

Admitir que os ricos devem pagar impostos mais elevados é um tiro no pé. Pelos sinais da economia, pela debandada da riqueza para o estrangeiro, não são os ricos que pagam a factura mais elevada da “construção da sociedade”. O socialismo milagroso sai defraudado. Só que os generosos socialistas não o confessam e insistem no discurso que atrai votos e afasta a riqueza para outros sítios. É um socialismo autofágico: por mais riqueza que emigre na direcção de impostos mais simpáticos, menos receita e, o que é mais importante, menos disponibilidade para investimento cá dentro. Ora, com menos investimento, como se estimula a economia? Como se criam mais empregos?

Nem sempre o que parece é. Quando damos por assente que “todos” concordamos que os ricos devem pagar mais impostos, talvez fosse melhor pensar demoradamente nas consequências do pressuposto antes de o elevar à categoria de verdade insofismável.

12.9.07

On the Hype (11): Keren Ann, "Lay Your Head Down"

Os lobos uivam (o hino)


Por estes dias, anda metade da nação excitada como o arrebatamento dos bravos jogadores da selecção nacional de rugby. Impossibilitadas as façanhas desportivas – que a cabazada com a Escócia até foi um bom resultado, pois não perdemos por mais de sessenta! – sobram outros fragmentos que desfraldam o orgulho de sermos nacionais da pátria lusa. A forma como entoaram o hino nacional foi o exemplo, tem sido dito com abundância. Do lado contrário, algumas esquerdas incomodadas com a exibição de orgulho pátrio dos lobos uivantes. Mais tarde irei a estas esquerdas e ao lamentável preconceito que exalam ao comentarem o episódio.

Não me entusiasmam as imagens de atletas nacionais que chegam ao lugar mais alto do pódio em competições mediáticas. Não fico comovido com a bandeira hasteada e os acordes do hino trinados bem alto, enquanto o olhar do atleta fica perdido no horizonte. Há quem se arrepie só de recordar estas imagens. Quem fique toldado pela emoção quando a turba reunida num estádio de futebol canta a uma só voz o hino do país, sem alguma vez ter interrogado se as estrofes fazem sentido. Bem sei que se trata de um símbolo e que a vida é toda ela muito achacada a simbologias. Que as identidades procuram refúgio em símbolos, falando a sua linguagem através dos ícones escolhidos. Os símbolos – todos os símbolos – andam sobrevalorizados. Não passam de símbolos, imateriais, a vacuidade que enche o imaginário de multidões. E depois há o elucidário oficial: os símbolos cimentam as pertenças. Não se questionam, portanto. Sem que haja percepção disso, entraram no restrito lugar dos dogmas.

Convém lavrar um esclarecimento: o meu respeito total pelos que não conseguiram reprimir o arrepio da pele ao verem os lobos a uivarem o hino nacional. Para além do respeito, o registo pessoal da dissonante reacção. Haverá quem fique ofendido se disser que ao ver o arrebatamento dos jogadores de rugby na entoação do hino pensei com os meus botões: “patético”. Será porventura excessivo dizê-lo. Arrisco até críticas furiosas de nacionalistas empenhados, por desrespeito de um símbolo nacional. A desidentificação que se apoderou de mim faz o resto. E, lá está, a retórica inócua dos símbolos não me mobiliza para causa nenhuma.

Hão-de ficar emolduradas para os anais das exibições de exaltado nacionalismo as imagens dos bravos paquidermes abraçados, cantando o hino aos gritos, expressões faciais de arrebatado sentimento. Não faltou muito para sermos testemunhas de homens de barba rija, exemplares garbosos da marialva espécie que jamais chora, a libertar umas lágrimas de emoção. Alguém haveria de perguntar se muito daquele sentimento não seria antes brio pessoal, porque foram capazes de um feito desportivo nunca alcançado. O que falou mais alto foi a necessidade de colocar a pátria no púlpito, como se esse fosse o caminho exigível para que cada indivíduo não seja um lobo isolado, sem alcateia para conviver. Ou como se todos estivéssemos empenhados à nação – empenhados com o significado de alguém que se ofereceu como penhor.

Se a reacção dos zelosos guardiães dos símbolos nacionais parece despropositada, do outro lado da barricada soltaram-se alguns uivos não menos patéticos. Algumas esquerdas doeram-se da bravura dos lobos e do enternecimento dos que escreveram palavras de admiração. O problema destas esquerdas não está em desvalorizarem o hino cantado com tanta comoção. Nisso coincidimos (e alguma vez haveria de traçar uma tangente com as esquerdas…). Algures a meio da argumentação, lá vem a confissão do que os leva a rejeitar o “feito” dos jogadores de rugby: é que por ali anda muita gente da linha de Cascais, muita gente dada às touradas e a outras coisas “elitistas” que as esquerdas gozam com desplante. Se no rugby não houvesse tantos “Franciscos, Vicentes e Uvas”, e se a rapaziada não tivesse cantado o hino com tanto entusiasmo (e, heresia fatal, um deles levou a mão direita ao coração enquanto o fazia), talvez o preconceito acabasse por não falar tão alto.

É o que tanto me atrai nestas esquerdas matarruanas: encomiasticamente, consideram-se campeãs da tolerância, acham-se imunes ao vírus do preconceito. Acusam a direita trauliteira de serem tudo aquilo que elas acham que não são. Quando o chinelo escorrega e o preconceito e a intolerância vêm ao de cima, sobra a retórica que não casa com a prática. É que ao menos a direita trauliteira, por execranda que seja, não esconde que o é (trauliteira) nem abafa os preconceitos que a conduzem. Estas direitas e estas esquerdas foram feitas umas para as outras. Merecem-se.

11.9.07

Argumento decisivo para a conversão ao islão: a cobrança de impostos é proibida pela lei islâmica



Assim o diz Bin Laden, na mais recente aparição depois de três anos de clausura para os holofotes do mundo. Cheguei ao discurso do pária através de um artigo assinado por Rui Tavares no Público de ontem (que por sua vez remete para a versão integral da prédica através do blog do autor).

Lá há diagnósticos de política internacional que fariam sucesso num qualquer programa de humor, Bin Laden desfia o rosário de acusações ao ocidente herege. Entre o cândido convite para que nos convertamos todos ao islamismo e a ameaça de mais terror cego se o não fizermos, serve-se do ocidentalizado marketing para seduzir as massas dos países que escolheu como inimigos: oferece-lhes o nirvana, na modalidade de isenção de impostos. Podia ter avisado antes, que se poupavam tantas vítimas do seu terrorismo ensandecido. Por cá, entregues cada vez mais aos prazeres hedónicos dos bens materiais, cada vez mais dependentes da força do vil metal que até ex-comunistas arrebata, já teríamos engrossado voluntariamente as fileiras do islamismo atraídos pela dispensa do pagamento de impostos.

O mais insólito é o terrorista jogar com as mesmas armas do inimigo, usá-las quando sempre se distinguiu pela recusa em fazê-lo. O que Bin Laden faz é oferecer um deslumbrante rebuçado aos hereges ocidentais, teimosos em declinar o cristianismo (ou o ateísmo, o que é ainda mais imperdoável), tão relutantes em abraçarem o islão. O isco usado é dos mais atraentes que os materialistas no ocidente podem morder: a afluência material através da isenção de impostos, essa incomodidade que subtrai à força a riqueza que criamos e os rendimentos do trabalho. Os governos dos países ocidentais têm pela frente mais um problema para resolver na guerra ao terrorismo dos fundamentalistas islâmicos. Daqui para diante terão que desmotivar as deserções de multidões, seduzidas pela lei islâmica que decreta a ignominia dos impostos. O inimigo, tão fisicamente à distância, e no entanto a combater o ocidente no seu próprio terreno, usando como soldados os que forem atraídos pela promessa de dispensa de impostos. Terá Bin Laden contratado um guru de estratégia política conhecedor dos truques de marketing?

Os governos dos países ocidentais têm uma solução para o dilema: jogar no mesmo tabuleiro, responder ao repto dos fundamentalistas. Para impedir que capitalistas primeiro, e demais povo depois, passem a envergar turbante e a fazer rezas virados para Meca sete vezes ao dia, aos governos ocidentais resta o desarmamento fiscal. As deserções serão combatidas se houver destruição dos impostos e terminar, de uma vez por todas, o assalto institucionalizado ao rendimento, à riqueza, ao consumo e aos milhentos actos do quotidiano que acabam por dar origem a mais um tributo a favor do Estado. O dilema mantém-se: é que mesmo que isso aconteça, a bomba pode estalar nas mãos dos governos ocidentais. Basta que os cidadãos queiram prestar homenagem a Bin Laden como inspirador da abolição de impostos. A passagem para o outro lado da barricada será inevitável, a menos que venha a ser proibida por decreto.

Os objectivos cumprem-se por etapas. Se uma fase se saldou pelo insucesso, outra se concebe. Queimada uma etapa, as agulhas afinam-se para outra que possa atingir o objectivo. Até agora quase ninguém se converteu ao islamismo atraído pela mais tentadora das promessas que o Corão sanciona – a poligamia só ao alcance do sexo masculino. Nem sequer a promessa de setenta virgens nos céus para kamikazes que sacrifiquem a vida e levem dezenas de vítimas num atentado suicida. A propagação do hedonismo semeia a desconfiança nestas promessas que não são verificáveis. Somos cultores da desconfiança metódica de S. Tomé. Perante o insucesso do apelo às hormonas masculinas, uma estratégia renovada: o afago da ganância dos mortais, tão maior quanta a prosperidade dos países, tão maior quanto o enriquecimento das pessoas. Estou curioso para ver os resultados.

Pelo caminho, uma inusitada descoberta: a ser rigorosa a tradução do discurso de Bin Laden, o islão é tangente aos libertários de direita, os únicos que não têm pejo em propor a extinção do Estado e que se deitam que nem cães ferozes aos impostos. Nestes três anos de ausência, para além de andar a jogar ao gato e ao rato com os poderosos serviços secretos das grandes potências, terá Bin Laden andado a ler os autores libertários (von Mises, Hayek, Rothbard, etc.)?

10.9.07

Cambalhotas ideológicas


Se há cerca de 20 anos te tivessem mostrado este texto como sendo teu, davas uma gargalhada pelo absurdo!”, comentário do PVG ao texto escrito na quinta-feira.

Cambalhota ideológicas, quem as não tem? Foi com esta reacção, e com um largo sorriso nos lábios, porventura revelador de quem não se leva muito a sério, que li o comentário. E pôs-me a pensar. Todos evoluímos, uns mais e outros a passo de caracol. Os primeiros, na ânsia de experimentar outras ideias, rejeitando o hermetismo das ideias imóveis, no afã de se desprenderem do colete-de-forças que os detém no tempo e no espaço das ideias. Os segundos, inertes por natureza, olham de soslaio para ideias diferentes das que cimentaram o ser, teimando no imobilismo, fiéis aos imperativos de consciência ou apenas recusando a mudança por receio da revoada interior que a mudança signifique.

O meu amigo PVG tem razão. Há vinte anos não teria escrito aquele texto. Tê-lo-ia criticado com alguma ferocidade nacionalista. Falta confessar o que não foi dito, mas apenas entendido nas entrelinhas: nessa altura andava nas franjas da extrema-direita. Sem militâncias, que nunca fui de militância de coisa alguma. Apenas no bujão das ideias, sem vergonha de defender algo que hoje renego com a vitalidade de todas as minhas energias. Mais que interrogar como era possível vogar nos lençóis da extrema-direita nacionalista (pela surpresa que a confissão cause em alguns espíritos desprevenidos: “como é possível”, interrogar-se-ão), talvez a pergunta interessante seja como mudar a agulha e passar a defender o contrário dos dogmas ideológicos de há vinte anos.

Não quero, com a mudança de interrogação, afastar o estigma que pesará sobre mim. Há, nesta confissão que recupera o passado adolescente e pós-adolescente, esse risco, suicida revisitação das ideias outrora defendidas. O passado nas margens da extrema-direita fica registado, para todos os efeitos. Não o esqueço, porque ele aconteceu. Para que conste, não o renego: porque passado algum pode ser renegado. Que renegue as ideias que dominaram uma parcela desse tempo, é uma outra dimensão. As figuras públicas conhecidas por (ainda maiores) cambalhotas ideológicas passam com incomodidade pelas catacumbas onde selaram a identidade ideológica que tanto os envergonha. Fogem desse passado como se ele não tivesse acontecido. Vivem amordaçados pelos fantasmas que adejam sobre si mesmos, de tanto quererem fazer tabu do que foram então. O meu amigo PVG, talvez por pudor, não o quis dizer com as palavras todas: que já tive uma simpatia pela extrema-direita, que mostrava uma repulsa por comunistas, que achava o nacionalismo a missão maior de qualquer cidadão, e que a democracia é um embuste.

Hoje execro todas as palavras e vírgulas do catecismo da extrema-direita (como tantas vezes sublinhei noutros textos a propósito do simplismo do conceito de “esquerda” e “direita”, o rigor obrigaria a usar o plural: há extremas-direitas, por causa das variações ideológicas que as diferenciam). E, no entanto, não tenho qualquer fantasma a povoar as entranhas pelos tempos que vagueei pelos terrenos da extrema-direita. Posso não ter orgulho em tê-lo sido, mas não o hei-de abjurar senão estaria a passar uma esponja por alguns anos da minha vida. Um exercício estalinista de reconstrução do passado que me recuso a fazer.

Os sedimentos ideológicos de antanho têm um mérito: não as ideias, hoje repudiadas em toda a sua extensão; mas a convicção de que somos sempre produto do relativismo do tempo e do espaço. Diga o que disser hoje, por mais arreigadas que sejam as convicções ideológicas de hoje, jamais saberei se daqui a dez ou vinte anos elas não foram ultrapassadas pela madurez dos anos acumulados. Fica à mostra a limitação de tudo a que nos agarramos como convicções pessoais. A alguns perturba saber que as “verdades”, mais ou menos insofismáveis, que cultivaram em tempos idos são apenas uma imagem distorcida perante o novo quadro mental que vinga num determinado momento. E que o mesmo pode acontecer quando, dez ou vinte anos depois, chegar o momento de fazer uma retrospectiva. E assim reforço a convicção de que não nos devemos levar a sério.

O comentário terminava com este desafio: “mas reconhece lá que foi importante numa determinada fase da tua vida. Foi e continua a ser uma referência – hoje, para ti, com um significado bem diferente de há 20 anos”. Admito que o foi. Porventura por – então como agora – defender as minhas ideias com veemência, o que cada vez mais acho que está errado (não o termos ideias, mas defendê-las com veemência, pelo risco de resvalarmos facilmente para a inconsequência dos dogmas). Sem querer soar a justificação pela improvável confissão que aqui fica, mas ela existe: o niilismo empedernido, outrora como agora, domina a arquitectura das ideias. Elas sedimentam-se por reacção a algo que me incomoda. Nessa altura, era a alergia às esquerdas, a percepção das muitas insuficiências da democracia. Introspecção agora: continuo a ter alergia às esquerdas e a considerar que a democracia atravessa uma profunda crise. O crescimento filosófico divorciou-me da extrema-direita, contudo: o individualismo metódico, a profissão de fé na tolerância como vector da maturidade intelectual, o programa libertário, a imbecilidade das nações – eis as matrizes que fermentaram a negação da extrema-direita.

7.9.07

O ecléctico, o historiador necrófilo e a meia rota


Ciência política, economia, direito, sociologia, relações internacionais, Europa. E agora história, que faltava coleccionar o cromo no álbum dos congressos que, por imperativo de profissão, tenho que frequentar a espaços. Os especialistas determinaram o cruzamento de disciplinas, o reino da “interdisciplinaridade”. Às vezes falam da “transdisciplinaridade”. O advento da pós-modernidade pôs fim aos especialistas de um domínio só. Esses passaram a ser comparados com os animais que precisam de palas que os encaminham para o caminho estreito que a sua visão alcança. Nesta pós-modernidade, são especialistas de nada.

Ao provar os sabores diferentes dos vários ramos da ciência, estilos que variam. Pessoas com tiques diferentes, semânticas nunca iguais, métodos que fogem da convergência e negam expressão ao acalmado, pelos teorizadores da conspiração “neoliberal”, “pensamento único”. Sobre os fragmentos de diferença, um traço comum a todos estes saberes: a bizarria que acompanha de perto a fauna que frequenta congressos internacionais. Diria que ser bizarro é, nos dias que correm, sinal de identificação de um professor universitário, ou de um investigador. O protótipo do cientista maluco corresponde ao participante médio nos congressos. Quem aparentar uma discreta normalidade sente-se peixe fora do aquário. Entre as exuberantes aparições de fauna saudosa do Maio de 68, estilo com crescente furor entre as camadas mais jovens, o pêndulo aponta para a anormalidade dos que destoarem do registo.

O congresso dos historiadores trouxe o inesperado: um número considerável de intervenções a teorizar o passado à volta de comunismo, das influências da União Soviética no partido trabalhista britânico na década de trinta, de como o neoliberalismo suplantou o movimento socialista a partir da década de setenta. Muitas pestanas queimadas, muitas leituras feitas, muitos arquivos vasculhados em demanda do socialismo, do comunismo, dos bolcheviques, com carradas de romantismo que perpassam desencanto pelo estado do mundo. Uma orfandade ideológica. Nunca pensava que fossem tão numerosas as comunicações remoendo o passado mal resolvido do comunismo – ou do “socialismo científico”, como eufemisticamente alguns insistem em usar.

O zénite estava reservado para o último dia, com a palestra, ao jeito de lição magistral, de um catedrático com ar de poeta louco. Dissertou longamente sobre Emma Goldman e a revolução bolchevique. Antes desta lição, sabia muito pouco de Emma Goldman. Naquela hora de prédica militante, fiquei-a a conhecer por fora e por dentro. O catedrático narrou as peripécias revolucionárias da senhora, como ela foi uma andarilha em missão de evangelização revolucionária – Lituânia, França, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, os locais que hospedaram Emma Goldman e o seu frémito de inocular o gérmen da revolução bolchevique no ocidente. Havia emoção sentida nas palavras do palestrante. Por vezes, a voz escorria lânguida, ecoando um romantismo que fazia do catedrático alma sedenta por viagem ao passado, até aos anos em que Emma Goldman espalhou o seu activismo e educou as massas.

Sim, a história é penhora de abundante investigação científica. Haverá muito tempo passado ainda ausente das páginas lavradas pelo punho de historiadores. E, pela amostra, é grande a sedução pela revisitação das páginas marcadas por activistas bolcheviques. Só não percebi se o viés do tempo e da análise cegam o investigador, não o deixando olhar mais além, para além do lirismo com que encara os activismos revolucionários que depois tiveram catastróficas consequências. Estará entre os que se colocam na linha da frente contra os fantasmas consignados – globalização, capitalismo, “neoliberalismo”, atentados ao ambiente, consumismo, etc. Da sua retórica vêm gastas “liberdade” e “direitos humanos”. Esquece-se que o ícone de que fala com um embevecimento patético cultivou uma acção que negava liberdades e direitos humanos sempre que eles se punham à frente do objectivo da “revolução”.

Um pouco mais tarde, o necrófilo de Emma Goldman sentou-se num lugar próximo de mim. E enquanto escutávamos uma intervenção aborrecida sobre história dos Estados Unidos, o catedrático descalçou o sapato direito e começou a coçar o dedo grande do pé que espreitava por um buraco de generosas dimensões na ponta da meia azul. E assim ficou, a baloiçar o pé de um lado para o outro, mostrando o respiradouro do dedo maior que, com precisão cirúrgica, ostentava uma linha negra que debruava a extremidade da unha que já carecia de tesoura.

Percebi então: a ciência é terreno proibido aos metrossexuais da modernidade. A dedicação à ciência não se compadece com o culto do corpo nem com a desoneração da higiene. E vi ali ao meu lado um asceta da ciência. O necrófilo historiador que teria, como plano maior da vida, deitar-se ao lado da glorificada, mas morta, Emma Goldman.

6.9.07

Portugalidade desconstruída via Saramago


Aprende-se muito quando à mesa se juntam pessoas de vários países. Entre a conversa patética que flui amiúde, tão própria de um grupo que arremete pelo conhecimento recíproco enquanto pela mesa vão passando garrafas de vinho e iguarias diversas, há por vezes momentos sublimes, palavras inesperadas que tracejam pensamentos doravante. Um dia destes um italiano, sentado à minha frente, lançou a provocação: “e ainda não falámos da proposta de Saramago”. Sem mais, a não ser um sorriso cínico que adicionou às palavras lançadas em jeito de desafio. O italiano errara no alvo.


Os restantes mostraram conhecer Saramago. O prémio Nobel traz reconhecimento mundial. Só não sabiam do que o italiano falava. Atalhei a resposta: “não me importava.” E depois expliquei aos demais onde queria o italiano chegar, pela palavras de Saramago: a defesa de um país só a abraçar o território da península ibérica, pela incorporação de Portugal em Espanha. Quando respondi “não me importava”, não havia concordância com Saramago. Não tenho aspirações a transportar bilhete de identidade espanhol. Ou de vibrar ao lado de cidadãos orgulhosos da sua hispânica condição, fermentando o chauvinismo que ensimesma o país do lado. É-me indiferente ser português, ou nortenho – houvesse o milagre da desagregação nacional e nascesse um Estado confinado ao norte – ou espanhol, ou hispânico, ou ibérico, qualquer que seja a fórmula. Não era isso que me tirava o sono.


A ideia mexeu com os esqueletos escondidos no armário mental da portugalidade. Vozes indignadas protestaram o ensandecimento do escritor laureado. Outras desvalorizaram, alegando que Saramago habita no limiar da senilidade. Outros ainda desdobraram-se em paninhos quentes, convocando a azia de espírito que se apoderou do escritor nos últimos anos como contexto para palavras que seriam apenas provocação para espicaçar a reflexão. Eu digo: o que interessa? Assuntos mais importantes teriam o condão de me atormentar. Se, por assomo do impossível, um dia acordássemos todos ibéricos – ou, heresia ainda maior, hispânicos – não seria insubordinação e revolta a fervilhar nas minhas veias. Não posso lamentar que o gérmen do nacionalismo não habite em mim.


Perante o pasmo de alguns convivas, adicionei detalhes da rivalidade histórica e de como ela só faz sentido nos calhamaços que contam a história. Revisitar o ar bafiento do passado só revolve os esqueletos onde se deposita uma densa camada de poeira. Mexer neles é espevitar a poeira que intoxica os afectos que confundem identidade com nacionalismo. E se tudo isto não bastasse, restava o laivo anacrónico, o mergulho nos dizeres que formatavam quadros mentais e que ensinavam que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”.


Fossem insuficientes estes argumentos, sobravam os dois mais persuasivos. Primeiro, Saramago não levara em consideração se os espanhóis nos queriam anexar. Para problema já lhes basta as bombásticas erupções de nacionalidade (basca, catalã, galega, e agora até andaluza). Para quê herdar nos braços uma portugalidade que é um problema estrutural? Segundo, o mundo moderno desmente Saramago. Por aí fora, o que se assiste é a desagregação de países pela vaga imparável de autodeterminação que faz nascer novos Estados soberanos. Os países não se estão a agigantar. Ao contrário, pulverizam-se. Aumentam de número e tornam-se anãos. O cantinho ibérico não pode ser excepção à regra.


O erro está em confundirmos identidade com nacionalismo – ou, na sua versão refinada, e de calibre pior, patriotismo. E placidamente continuarmos a prescindir da individualidade, que sucumbe perante uma coisa abstracta que é ser nacional de um país qualquer, quase como se essa pertença fosse a graça maior de qualquer pessoa. É aqui que irrompe um lirismo que se confunde com utopismo, um romantismo porventura inconsequente. Mas um lirismo espontâneo, genuíno, que me desprende das algemas da nacionalidade imponente que pesa sobre as costas de todos nós. Há quem lhe chame a utopia multiculturalista, com desdém à mistura. Não me importo que chovam acusações. Ao percorrer Oxford Street, em Londres, o contraste em toda a sua nitidez. É o ninho da multiculturalidade, onde todas as raças do mundo se misturam entre as paredes altas que simbolizam o consumismo e o capitalismo e a globalização e todos os ícones blasfemados com perseverante convicção por descontentes do outro lado da barricada. Ali não há gavetas herméticas que arrumem as pessoas por nacionalidade. A convivência multicultural salta as grilhetas das fronteiras nacionais.


Os passos em Oxford Stress reforçam a interrogação: o que interessa que Saramago tenha proposto o que propôs?


(Em Londres)


5.9.07

Postais britânicos (II)


Algo está errado quando um país reclama a condição de prósperas liberdades e se apura a multiplicação de liberdades mutiladas. É o que mais me inquieta quando estou de visita às ilhas britânicas e percebo que as câmaras de vigilância estão espalhadas por todo o lado. Dizem os que condescendem que é o preço necessário para defender a liberdade contra aqueles que insistem em atentar contra ela. A justificação não convence, nem a inversão dos papéis: a liberdade está tão restringida e as câmaras de vigilância (e outras medidas de supressão das liberdades em nome da segurança) tão vulgarizadas que a segurança ganhou o lugar da regra e as liberdades foram despromovidas à condição de excepção.


O argumento dos defensores do clima de segurança apertado é simplista: por causa das câmaras de vigilância, os investigadores de crimes têm mais possibilidades de os desvendar. Quando se deram os ataques terroristas no metro e num autocarro em Londres, foram as CCTV (a sigla por que são conhecidas) que ajudaram a descobrir os autores materiais dos atentados. E ficam todos exultantes – investigadores criminais, políticos que sancionam o clima securitário, e cidadãos que aceitam a padronização das restrições às liberdades – com o sucesso nas investigações. Apaziguados por se descobrir quem praticou os crimes hediondos e como foi orquestrada a operação terrorista – ou um qualquer outro crime que tenha sido apanhado nas malhas das câmaras de vigilância.


Tão entusiasmados, nem dão conta que o olhar está focado no lado errado do problema. A criminalidade está a aumentar e nem a panóplia de câmaras de vigilância é suficiente para impedir ataques terroristas. A consolação que resta aos defensores do gigantesco sistema de vigilância é saberem que têm meios para chegar aos fautores do mal – quando eles não se desvanecem em cinzas com a detonação da bomba que carregam. Pelo caminho, quem quiser cometer crimes ou planear um insidioso ataque terrorista não recua nas intenções só por saber que existe uma rede infindável de câmaras de segurança. Depois choram-se as vítimas, uma inevitabilidade contra a qual as CCTV nada podem. No rescaldo, não se garante a segurança e as liberdades esfumaram-se. O pior dos dois mundos.


As câmaras de vigilância hão-de servir para vários propósitos. Há as que são objecto do olhar zeloso de funcionários que passam o dia de trabalho a olhar para o que é transmitido por essas câmaras; há muitas outras que só são passadas a pente fino quando a localização de um crime obriga a rebobinar imagens gravadas. Na ânsia de encontrar meliantes em plena prática delituosa, ou apenas na corriqueira vigilância quotidiana feita em remotas e obscuras centrais de vigilância, todos somos potenciais criminosos, todos estamos expostos à lente perfunctória de uma câmara de vigilância. Subverte-se o princípio e a excepção, uma vez mais. E pouco sobra de um princípio do Estado de direito, de que o Reino Unido foi marco histórico: a presunção de inocência.


Sermos actores sem o sabermos, a partir do momento em que uma câmara de vigilância, escondida ou visível, nos filma, é uma privação da liberdade. Um beijo furtivo entre um casal de namorados é espiolhado na central onde as câmaras desnudam o que se passa nas ruas. O distraído, ou não, acto de tirar com o dedo uma excrescência do nariz em plena estação do metro há-de ser alvo de troça dos funcionários que espiam as câmaras. E se alguém estiver a ler um livro enquanto aguarda pelo autocarro, um cinzento zelador da segurança colectiva tomado pela curiosidade voyeur descobre o título do livro. São pequenos actos que não ameaçam a segurança, hão-de dizer os mais condescendentes. E dirão mais: se essas pessoas não cometem crime nem atentam contra a liberdade de todos, se nem aspiram à condição de terroristas, não têm razão para melindre por aparecerem, sem o quererem, nos ecrãs da central de segurança. Eu vejo o problema por outro prisma: se não sou sequer suspeito de nada, porque hei-de ver os meus passos, os meus actos, os meus tiques, as minhas leituras espiolhados de uma forma que desconjunta o meu direito à privacidade?


O problema tem a dimensão gigantesca quando tece as teias do combate ao terrorismo. E tem, também, uma dimensão micro, que junta os ingredientes para um moralismo intrusivo que vem contra a corrente da tradição liberal soprada desde as ilhas britânicas. Há dias vi numa rua um insólito sinal de trânsito pedonal. Ameaçava com multa de oitenta libras a quem tenha “bad social behaviour”. Não sei se existe lei a definir os critérios do mau comportamento social, ou se os juízes chamados a julgar um caso destes o fazem pela sua cabeça e os seus padrões. Nem interessa. A mensagem do sinal de trânsito é que as pessoas têm que andar bem comportadinhas nas ruas. Não há lugar ao mínimo deslize, ou a carteira tem que dizer adeus a oitenta libras. As câmaras de vigilância lá estarão preparadas para vomitar todos os maus comportamentos sociais. Um cutelo permanente sobre as cabeças dos “súbditos”, forçados a uma vida dentro de um colete-de-forças.


É então que vem à memória um jantar onde estavam amesendadas pessoas de variadas nacionalidades. Um chinês era acossado com perguntas e mais perguntas sobre a situação política na China. Alguém interrogou se ser membro do partido comunista obriga à delação. Ele anuiu. Eu digo que é a forma menos sofisticada, sem a ajuda da tecnologia, de espalhar câmaras de vigilância por todo o lado.


(Em Reading, Inglaterra)


4.9.07

Postais britânicos (I)

Já não vinha a Inglaterra há um ano. Entretanto mudou o primeiro-ministro. Blair, proto-herói da esquerda moderna, acalmado por alguma direita trauliteira que simpatizou com a decisão de entrar na guerra do Iraque, cedeu o lugar ao delfim que esperava há tempo demasiado. Gordon Brown é mais discreto, tem uma ligeira gaguez que todavia não é imperceptível, e prometeu uma viragem à esquerda. Ainda ontem ouvia, talvez toldado pelo vinho que escorreu ao jantar, um inglês adepto do partido do governo desprezar Blair, que nem sequer vai ficar na História, a não ser pelas piores razões – ter alinhado com o sacripanta do Bush, a teimosia da guerra do Iraque, e passar férias com pessoas estupidamente ricas e estúpidas em si, pela ignorância que destilam (ocasião para troçar de Berlusconi, como se já não fosse cadáver político). A memória é curta e cheia de conveniências. É ela que cultiva a vertiginosa descida de estrela reluzente a personagem que entra para o firmamento do anonimato.
Reparei, no trajecto londrino entre o aeroporto e uma estação de comboio, que os caixotes do lixo desapareceram. Andei largos minutos a carregar as malas com um papel amarfanhado numa das mãos, os olhos atentos em busca do primeiro caixote do lixo. Podia ter deixado o papel esquecido no chão, simulando um distraído escorregamento do papel mão abaixo, fazendo de conta que não tinha reparado que estava a poluir. Seria uma poluição inadvertida. E sempre poderia sossegar a consciência ambiental, caso me ela viesse incomodar, que à falta de receptáculos para o lixo ele não podia continuar a empestar as minhas mãos.
Seria a inovação sintoma da mudança de ares no governo? Podia ser que Brown não gostasse do efeito inestético dos recipientes que acolhem o lixo. Fiquei intrigado. Não só pela liquidação sistemática dos sítios onde as pessoas podiam acamar o lixo. É que as ruas e os túneis do metro estavam impecáveis, sem sujidade à vista desarmada. Só uma solução possível para o mistério: a substituição dos incaracterísticos e imundos receptáculos por brigadas de limpeza que vasculham todos os cantos da cidade à cata do lixo, graúdo e minúsculo, que os transeuntes deixam para trás. A solução teria o condão de combater o desemprego, embelezando uma política que quando vem atrelada ao adjectivo “social” atrai a simpatiza dos votantes e eterniza socialistas no poder. A ser verdade, seria o truque miraculoso para os prometidos 150.000 empregos que o “Eng.” Sócrates garantiu se lhe saísse em prémio a sinecura de primeiro-ministro.
Para adensar o mistério, não havia brigadas de pessoal de limpeza a patrulhar as ruas e corredores do metro na apanha dos restos que deslustravam o entorno. Podia-se pensar que a extinção dos locais adequados para deixar o lixo tivesse dado lugar a um recrutamento maciço de lixeiros – ou, para usar a linguagem politicamente correcta, e mais anódina, dos socialistas de todo o lado, “auxiliares de recolha do lixo”, ou “técnicos de alindamento do entorno”, ou qualquer fórmula semelhante.
Só restava uma hipótese: as pessoas foram instruídas para guardarem o lixo consigo. Todo o lixo que fazem desde que saem de casa ou do trabalho é arquivado, mas escondido dos olhares alheios, até chegarem a casa onde se encontra o inestético balde que o vai acolher. Onde é guardado nos interstícios, é matéria que não indaguei. Nos bolsos, ou em sacos onde se acumulam as sobras, ou uma outra solução que escapou ao olhar furtivo. É admirável como a mudança num espaço de um ano trouxe efeitos visíveis. Quando havia baldes do lixo espalhados por Londres, as ruas e corredores do metro eram sujos – não tanto como nas cidades lusas, ainda assim. Para além do inconveniente inestético, que os locais onde o lixo é depositado são peças de mobiliário urbano que não agradam à vista. Estaria quase convencido da bondade e da eficácia da do novo primeiro-ministro – não fosse dar-se o caso de, por mais que tente, não conseguir vestir a pele de socialista.
Após largos minutos sem avistar um balde do lixo onde deixar o papel que começava a entranhar algum do suor da mão, só a entrada no comboio trouxe a presença do utensílio. Feita a viagem, cheguei a Portsmouth e vi imediatamente baldes de lixo. Afinal não era Brown o arquitecto da estética purga de baldes do lixo. Terá o cunho do mayor de Londres. Fiquei sossegado por não ter que tecer loas ao delfim de Tony Blair.
Não consigo deixar de pensar na facilidade com que as pessoas se adaptam. Londres, por paradoxal que pareça, ficou a ganhar com o extermínio dos baldes do lixo: é que o lixo desapareceu das ruas. Detenho-me por uns minutos, a imaginar o que aconteceria se a medida fosse adoptada na Lusitânia.
(Em Portsmouth, Inglaterra)

3.9.07

O imperativo de procriar

A voracidade com que somos confrontados com a interrogação das pessoas, que querem saber quando engrossamos a prole. Diria que existe uma conspiração que se alastra a todo e qualquer cidadão e que pressiona para que venha mais um filho na asa da cegonha. Chega a ser cansativa a pergunta: “quando vem o segundo?” e fico inquieto. Inquieto que as lucubrações do “Eng.” Sócrates, agora viradas para a promoção da natalidade, tenham contagiado a população. Não é tanto pela repetitiva nota que chega aos ouvidos, como se de tanto o assunto ser aflorado se desencadeasse uma gravidez por acto quase espontâneo. O que me deixa assoberbado é a candura com que os cidadãos acatam as determinações do “Eng.” Sócrates, acefalamente, sem perceberem que o fazem nem as suas consequências.
Já sei da ladainha toda: que há uma crise demográfica. E se não desatamos a contribuir com mais filhos, daqui a uns anos (ou serão décadas?) viver na Europa torna-se insustentável. Porque a população vai envelhecer tanto que um dos sedimentos do Estado moderno esboroa-se. As reformas e as pensões deixarão de ser financeiramente suportáveis, a menos que estejamos dispostos a pagar mais impostos (a receita infalível). Perante estes sintomas de crise, há um imperativo que é de todos – pelo menos daqueles que têm constituída família e que se encontram em idade de procriar. O dever de fabricar filhos. A expressão é propositada. Fabricar filhos, como se eles passassem a ser mercadorias com utilidade social. Porque é disto que se trata, de alimentar as maternidades apenas porque alguém idealizou que a crise demográfica tem solução através da multiplicação da prole.
É curioso como há ciclos temporais que resgatam laivos de antanho. É que outrora, quando a pobreza e a miséria campeavam, sobretudo nos meios rurais, as famílias eram numerosas com um objectivo delimitado: os muitos filhos eram força braçal nos campos, a garantia do sustento familiar, que era necessário amanhar a terra e ficava mais barato (de graça, para ser rigoroso) empregar a descendência do que contratar homens à jorna. A constituição de família copiosa era um dever alimentado pela necessidade, com o travo materialista pouco compatível com os padrões actuais que ensinam que as crianças não devem ser açambarcadas para fins materiais. É sabida, e acertada, a forte censura social que se exerce sobre episódios de trabalho infantil.
Os tempos mudaram. Prosperámos, a indigência foi sendo remetida a bolsas de pobreza delimitadas. Os hábitos também mudaram: as exigências profissionais deixam pouco tempo para uma vida a dois, quanto mais para dedicar atenção a uma abundante prole. Por mais dura que seja a constatação, ter filhos passou também a ser uma decisão financeira: o infantário custa caro, a roupa é cara, os cuidados de saúde exigem um seguro que se adiciona às muitas responsabilidades ao fim do mês. É crescente o número de agregados familiares compostos pelos progenitores e um filho só. É aqui que a interrogação, intrusiva para quem ela é destinada, esbarra com uma frequência galopante nos últimos tempos. “Quando vem o segundo?” A placidez obriga a resposta diplomática, que tem o inconveniente – se não quisermos dar uma resposta antipática – de obrigar a revelar opções pessoais. Percebo que não haja malícia nos interrogantes. São vítimas inocentes, levadas pelo impulso que parece ter tomado conta de todos, preocupados com a prole alheia.
A evolução dos tempos conduziu a agregados familiares minimalistas. É que há quem opte por não ter filhos. Pelo andar da carruagem, qualquer dia serão os novos ostracizados pela moral familiar que se vai erguendo. Não seria surpresa se os frenéticos legisladores socialistas, Europa fora, inventassem penalizações para casais que não contribuem para o imperativo social da constituição de prole. E assim como começam a surgir prémios para a natalidade, que sanções fossem passadas à forma de lei para quem não concebesse filhos: impostos mais elevados; penalização na taxa de juro do crédito à habitação; descontos mais elevados para a segurança social, afinal o contributo indirecto (mas forçado) para resolver a crise demográfica; no limite, a suspensão do direito de voto. Tão imaginativos estes socialistas, que não é de excluir nenhuma hipótese. Até, quem sabe, internamentos compulsivos onde serão ministrados cursos de persuasão para as virtudes de ter, e muitos, filhos. Uma espécie de lavagem ao cérebro.
O problema é que esta “promoção da natalidade” é um eufemismo. Mascara a atitude de cordeiro manso, sem que as pessoas percebam que há na interrogação algo de intrusivo. E sem que percebam que ter filhos não é uma decisão leviana, como comprar uma mercadoria qualquer. Só me espanta que não haja discernimento do contra-senso: o que é feito do bem-estar da numerosa prole que haveria de nascer se todas as interrogações se reproduzissem num impulso de gestação? Se o tempo para dedicar aos filhos escasseia, sintoma de uma doença da modernidade que nos deixa reféns do trabalho; se o dinheiro mingua, e o milagre da multiplicação dos pães só está ao alcance dos sortudos ou dos que vão por caminhos duvidosos. Queremos fabricar filhos sem conta e dar-lhes condições de bem-estar que estão longe daquilo que eles merecem? É que me parece que isso significa retrocesso civilizacional, um egoísmo social inaceitável.
(Em Portsmouth, Inglaterra)