30.4.12

Assim assim é mesmo assim assim


In http://www.cinemaportugues.info/wp-content/uploads/2012/03/Assim-Assim.jpg
Um filme é um filme. Uma história. E as histórias são, todas elas, a sua própria contingência, fermentam nas suas próprias circunstâncias.
Haverá muito a aprender das histórias pessoais narradas no filme “Assim assim”? É um retrato dos amores e desamores, em tentativa bruta ou em doce ilusão do atingível, da burguesia urbana que povoa a noite lisboeta. E do filme, bebe-se alguma lição? A complexidade das vidas modernas pode sitiar os olhos do espetador em alguma verosimilhança. Diríamos, depois de ver o filme, que as relações a dois são um oceano repleto de ondas alterosas. Mesmo nos casos embebidos numa ingénua felicidade, com as personagens ungidas por um anestésico estado de paixão. No desenlace da narrativa, as vidas com passos trocados são o logro em que descai a imensa felicidade.
Uma personagem insiste na retórica do “olhar para o lado” (eufemismo para adultério) quando a relação a dois desce os degraus da monotonia. As mentiras são necessárias, piedosas. Das tantas histórias da vida real que conhecemos, quantas vezes não tropeçamos em angústias pessoais de quem vive a fazer de conta que vive (feliz)? Talvez a grande lição venha da personagem mais nova: um adolescente imerso nas perplexidades existenciais da idade, absorvido pelos círculos concêntricos das paixões correspondidas e depois traídas em triângulos amorosos. Do fundo da sua inocência talvez não tão inocente, atira à mãe que não se importa que a namorada namore com outro ao mesmo tempo (enquanto demora o olhar cúmplice no namorado do dono da livraria onde lanchavam).
Às duas por três, as relações são complicadas de mais para manter relações a três ou a quatro ou a cinco (e, ainda por cima, com pluralidade de preferências sexuais). Se há ilação a extrair deste filme, é que é mais simples o celibato afetivo. E que o pragmatismo se desgasta quando aflora um sentimento (ou aquilo que se interioriza como sentimento, nem que seja tirado à inércia pelos fórceps que o corrompem).
Mas um filme, convém recordar, é apenas um filme.

27.4.12

Prisioneiro de dilemas


In http://silviakochen.files.wordpress.com/2012/01/prisc3a3o.jpg
Ó desfortunado pensamento que, de tão embebido nas suas incompreensíveis complexidades, fabrica os dilemas. Mas o que se pode fazer se não dar conta das encruzilhadas que consomem o sono e deixam interrogações órfãs de esclarecimento?
As algemas adejam na constância do tempo enquanto as incógnitas aterram antes dos dias em que nem o vento se faz ouvir. Ao longe, por vezes, um sibilo envergonhado coalha a impassibilidade do tempo. Mas não incomodam esses sussurros enigmáticos, pois de lado algum, entre a calma da madrugada, há vivalma que traduza ruído. Mas isso apoquenta o pensamento hesitante entre os contraditórios pontos cardeais dos dilemas que fermentam na intensidade dos dias que se repetem.
Por que hão existir interrogações? Se elas levam aos interstícios do nada, onde se dissolvem as sombras de tudo em nevoeiros espessos, novas cortinas desdobradas em cascatas diante dos olhos cansados. A cada passo, seja pelos dedos incinerados do arrependimento, seja pelas promessas da renovação que se embaciam no derradeiro momento, sobram esgares que são a transparência dos nadas obtidos ao interpelar todas as dúvidas. E a cada passo, por diante estendem-se encruzilhadas emparelhadas com um sobressalto interior. Só há uma certeza que os caminhos por diante deixam a nu: não há caminho em frente, só um emaranhado de pequenas vielas que desaguam da encruzilhada em direção de tantos pontos cardeais.
A custo, os dilemas desfazem-se na sua própria existência. Podem não encontrar desenlace a preceito. Tantas vezes, são a encarnação de uma ilusão. Não há maneira de lhes combinar resolução porque não chegam a ter existência. Os outros, com espessura, perdem-se na intemporalidade. Desgastam-se na impossibilidade de descodificação. Deixam de ser. Podem os pontos cardeais perder o seu sentido, de tantas voltas que viradas pela bússola antes de tudo deixar de fazer sentido. Até que, ao acordar, no meio de um tremendo nada, nem sequer o dilema deixou rasto.
Então, por fim, um (outro) recomeço.

26.4.12

O francês não é compatível com a matemática


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Às vezes fico com a impressão que os franceses (lá vai estereótipo) são pouco desembaraçados. Não é por acaso que a palavra “rococó” vem de França. E que um “rococó” é complicação desnecessária do que podia ser mais vistoso se primasse pela simplicidade.
A língua também têm o seu quê de trapos. Não economizam em palavras. A língua inglesa é mais poupada. Não seja esta comparação entendida como uma desaprovação da palavra, dita ou escrita; mas se podemos ir diretos ao assunto, para que havemos de estar com rodeios ornamentados pela semântica picuinhas? Quando estudei francês na escola recordo-me das fórmulas pomposas, em jeito de despedida, nas cartas remetidas a alguém. A despedida vinha cheia de arestas. É como se essas arestas vivas fossem uma armadilha para o destinatário. Um simples adeus envolvido num demorado arrazoado é o convite para o destinatário nem sequer passar os olhos pela linha que antecede a assinatura do remetente. Não é prático.
Quando chega à contagem dos números, dir-se-ia que os linguistas de serviço estavam incompatibilizados com os matemáticos. A contagem das dezenas é a habitual até se empilharem seis delas. Daí em diante, funciona o arrevesado raciocínio francês: setenta é “soixante-dix”, oitenta é “quatre-vingts” e noventa, para tornar a complexidade ainda mais ostensiva, é “quatre-vingt-dix”.
Nunca mergulhei nas raízes etimológicas do francês e das suas transgressões à matemática. Deve haver razão atendível para parar as dezenas à sexta contagem das ditas. Os linguistas de serviço só sabiam contar até seis? Ou a aberrante reinvenção da álgebra traz consigo múltiplos encómios aos linguistas, que afinal eram matemáticos ao mesmo tempo: pois em vez de dizerem setenta, oitenta ou noventa, os nativos e falantes tinham de fazer cálculos aritméticos básicos (respetivamente: sessenta mais dez; vinte vezes quatro; e vinte vezes quatro com mais dez em cima).
Quem disse que o exercício da língua não adestra a flexibilidade mental para o cálculo matemático? Os linguistas franceses eram uns visionários. Perdiam-se nos escaninhos da porventura inútil complexidade. Mas estavam três passos à frente dos linguistas de outros idiomas, estes de costas voltadas para o cálculo.

25.4.12

Conto de fadas (ou: a liturgia da liberdade)


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Mote: não se brinca com coisas sérias? (Um par de exemplos: a religião, a revolução de abril)
Não se faz. Os capitães de abril (e um par de oportunistas políticos em adjacência) estão furiosos com o fascismo implícito que se instalou. Já decretaram sentença: isto já não adere ao “espírito de abril”. Os seus eternos tutores também sentenciaram que os intérpretes do poder, notórios testas de ferro dos grandes interesses do capital, vendilhões da sacrossanta soberania, atraiçoaram o povo que vai penando entre duas levas de austeridade.
Qual é o fundamento da histeria dos militares? Há ou não eleições? Descontando a abstenção que cresce como devia crescer o crescimento da economia, governam ou não os mais votados? A justiça social vai de mal a pior? Deixemos o famoso povo pronunciar-se em eleições. É mais confiável que a presciência dos militares desde o seu posto de vigia. Às virgens ofendidas, pouco falta para nos assustarem com um sobressalto cívico que desagúe em sublevação popular. Seria a sua medida peculiar de atestar maiorias, o seu peculiar barómetro da democracia.
É pena que o povo, ignaro como é, escolha quem tem escolhido para mandante das ordenanças do grande capital e dos interesses exteriores. Isto havia de ser como na Europa: quando há referendos e o povo não vota como deve ser, repete-se o referendo até votar a preceito. Cá seria igual com as eleições. Os reumáticos eternos tutores do “espírito de abril” seriam vigilantes das eleições. Quando não gostassem do resultado, por suspeitarem que os vencedores são traidores do “espírito de abril”, mandavam repetir as eleições. A sombra do conselho da revolução, esse epítome de genuína democracia, ainda se deita todas as noites com os tutores de abril.
Folgo em saber que os ilustres militares estão no regaço da reforma. Não os devemos temer: não sairão dos quartéis com saudades de um novo vinte e cinco de abril (já lá não moram); e a agilidade física já não tolera aventuras militares. Devem ser umas almas atormentadas (não se lhes lê um sorriso). Por dentro das suas cabeças, o “espírito de abril” reconstituiu-se em assombração. Devemos-lhes a liberdade?
Nem quero pensar o que seria da liberdade se não tivessem, na altura certa, sido devolvidos aos quartéis. 

24.4.12

Do you say what you mean, or do you mean what you say?


In http://209.68.9.240/public-speaking.jpg
Na errância das palavras, lugares-tenente das que não deviam ter sido pronunciadas, esbracejam os prometidos perdões. Não somos todos albergues da contenção semântica, nem a todos é dado o privilégio dos diplomatas – guardarem para si as palavras que estalam, em pré-ebulição, na embocadura da boca.
É difícil decantar as palavras, decantar as emoções que escondem outra cortina de silêncios atrás das palavras que se entoam. Eu digo que as palavras merecem ser ditas. Todas. Ou somos reféns da mendacidade, as palavras resguardadas num silêncio escondendo a espessura dos sentimentos. Desfazem-se em nada as ilusões, despojam-se da sua poeira ácida as vontades que, pelo silêncio impostor, sobejam como vontades reprimidas, um lugarejo onde a vergonha faria a vez de tocha. Entre o fulgor das palavras irreprimíveis, tantas vezes corrompidas pela exaltação que toma conta do tempo, e as palavras medidas, como se não houvesse carestia do tempo e elas pudessem ser todas adiadas: um opúsculo que aparta os olhos da finitude, as vontades dilaceradas entre um dos polos, ambos leitos do radicalismo que, mandam os costumes, não é bom conselheiro.
O corpo passeia-se na orla que o separa do precipício. Os pés, trémulos, sobressaltados com o tremendo precipício, respondem a um convite para se manterem, ao custo que for, na fragilidade da fina orla. De um lado, a indeclinável ira das palavras ditas, não importa que abram feridas a quem elas magoem, nem que a comiseração sussurre a necessidade do silêncio. Do outro lado, o pecaminoso silêncio que nada cura e tudo adia no queixume que demora os dias, tornando-os uma insuportável viagem pelo tempo fora.
Dizem: há de virtude alguma situar-se no ínterim, algures entre o indomável punhal que sangra as lágrimas embotadas pelas palavras ditas e a capitulação vertida no ensimesmar dos silêncios ardilosos.