30.9.22

A guerra também paga IVA

Massive Attack & Yolanda Quartey, “Paradise Circus” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=aJcw5mDluR0

Serviço de assistência ao cidadão: os países, quando entram numa guerra, pagam IVA pelas armas que compram? E a pré que pagam aos soldados atirados para os campos de batalha, desconta para efeitos de IRS?

Ai de quem defenda que a guerra não paga IVA. Ai de quem defenda que uma guerra é uma excecionalidade e que, por o ser, tem de estar isenta de impostos. Dizem: a economia de guerra é uma economia de emergência e, em casos de emergência, os impostos são metidos entre parêntesis, à espera que a emergência deixe de o ser. Para os economistas, habituados a pensar na estreiteza dos seus apertados corredores mentais, este é o pior dos cenários, pois o erário público perde por todos os lados: não cobra imposto à guerra e gasta mais dinheiro (e muito) para a pagar.

Os impostos são a fatura endossada ao inimigo. (Que palavra abjeta!) Pagam-se em sangue derramado, em angústia inflacionada, em vidas ceifadas – pois as vidas do inimigo valem sempre muito menos do que as vidas do beligerante que o agride. As vidas de quem está do outro lado da barricada não valem nada. De outro modo, não eram friamente esfouçadas nos campos de batalha, nos lugares onde se lançam os obuses cegamente assassinos. Esse é o imposto cobrado ao outro beligerante, também ele coativo e unilateral, sem dar direito a uma contrapartida. 

Esta linguagem soez que amesquinha o Homem não traz à lapela o cobrador de fraque que esquadrinha os livros de contabilidade deduzindo impostos em falta. Ainda o serviço de apoio ao cidadão indignado com a indignidade dos seus pares atravessados numa beligerância: muito provavelmente, as armas compradas pelo país mergulhado numa guerra não pagam IVA. Pois, se pagassem, seria uma cobrança em círculo fechado: o IVA pago alimenta o erário de quem o pagou. Como uma vez ouvi a um pesporrente magnata ao pagar a conta do jantar num restaurante que integra a sua carteira patrimonial, “sai de um lado, mas entra pelo outro”.

A guerra também paga IVA. Essa é a metáfora maldita, talvez a mais maldita de todas, que enxameia a guerra. Pense-se em todas as categorias de impostos que a muito fértil imaginação dos burocratas ao serviço do fisco podem congeminar; para se saber a fatura fiscal da guerra, juntem outros tantos tributos que ainda estejam por inventar.

Só falta saber o número de contribuinte da guerra.  

29.9.22

A floresta desfalecida

The Smile, “The Smoke”, in https://www.youtube.com/watch?v=tEPEqZnTwdo

A base inconcreta – invocava o poeta – não é o lugar inóspito onde assentam as dúvidas. Se os pés se metessem pela floresta depressa saberiam da sua infertilidade: a floresta desfalecida era o palco devastador.

O clima mudou e a geografia também. Os rios não passam de uma timorata expressão da fortuna que transportavam quando os Invernos eram Invernos tal como foram concebidos. A vegetação deixou de irradiar a pujança imaterial com o rastilho da Primavera. Só o Verão conserva a sua identidade, todavia estendida por períodos mais duradouros. Dir-se-ia: deixou de ser sedutor o mergulho na natureza, porque a natureza está adulterada. Um murmúrio ressoa, como se fosse anunciada a transformação das florestas em meros baldios.

O jeito macilento das árvores impõe-se ao olhar. Parece que as árvores suplicam ajuda, condoídas pela adulteração do clima que as transfigura enquanto atrizes no palco onde se movimenta a natureza bruta. A natureza deixou de ser uma força bruta. Não passa de uma ténue imagem do que foi outrora. É da natureza decadente que se fala. É da nossa decadência que se impõe falar, como agenda imprescritível.

Já não é em opulência que se pensa quando as imagens da natureza ascendem ao pensamento. A floresta desfalecida é apenas um sintoma. Um sintoma feito de uma confluência de forças paradoxais. Se os rios emagreceram e deixam à mostra uma grossa fatia de terra que já nem sequer lamacenta é, os mares ameaçam invadir a terra que estava a salvo das marés mais furiosas. A água emagrece de um lado e torna-se ameaça do outro. 

E nós, presos à pobreza que nos consome na estreiteza do efémero, vemos passar a angústia mais óbvia que devia ser a maior fonte de cismas. Somos nós, na deriva suicidária de que não damos conta, os fautores da nossa própria decadência. O resto vem por conta dela. E nós, não deixamos de ser os selvagens que alimentam essa condição.

28.9.22

Dicionário das “polícias da moralidade”

Cocteau Twins, “Heaven or Las Vegas”, in https://www.youtube.com/watch?v=6KnYw4EwYGc

Algum dia haveriam de ter serventia, os serviços secretos – e não se pense naquela parte imprestável de os serviços secretos espiarem o mundo inteiro e até se espiarem reciprocamente. Os serviços secretos descobriram o dicionário dos polícias da moralidade que enfeitam ministérios de idêntica designação em países tão diligentes no tratamento do estatuto moral dos súbditos. A mente sã nunca se deve desprezar, é o melhor tributo à dignidade de uma pátria que se reveja numa grandeza que está para além das vacuidades materiais. E funciona para gáudio dos tiranetes, que não abdicam de tutelar a vida dos súbditos, por (quase de certeza) a sua se ter tornado tão desinteressante.

Num destes países foi libertada informação confidencial, na posse dos serviços secretos de um país que solicitou anonimato (mas que é do conhecimento de todos os envolvidos no meio). Ficou-se a saber como os polícias dos costumes são gente castrada, sem dar o flanco, disfarçando a eunuca condição (em sentido metafórico) com a força bruta que sobre os outros exercem. Exigem dos súbditos que sejam o que eles sabem que não conseguem ser – e fazem-nos sem corar ou sequer tergiversar. Os manuais da moralidade e dos bons costumes costumam corroborar o adágio que fala em fazer e em falar e de como são entes dicotómicos, mas apenas para os outros.

Os milhares de páginas relevadas davam para encher um rio com o impudor da autoria dos polícias que policiam a moralidade. Convencidos de que são epígonos dos grandes teorizadores dos costumes, os pais de família dos volumosos calhamaços contendo as minuciosas proibições para fazer constar sobre os costumes, sentindo-se cobertos pela farda que ostentam, dedicam-se à travessia por um abundante catálogo de atos que nos súbditos são reprovados e reprimidos. 

Ele é o agente que gasta dois salários e meio em alucinogénios, alimentando o estado lisérgico com doses não homeopáticas de corrupção passiva; o comparsa que contrata prostitutos para seu deleite (ativo e passivo), mantendo uma coutada reservada onde os ditos são preservados da dura espada da lei que, fora daquela fortaleza, os pune sem contemplações; o general com hábitos S&D, preferindo, pela frequência da variedade, estar na posição do dominado; o alferes que ainda não passou dos insidiosos hábitos do jogo, exaurindo quatro salários mensais; um dos mais velhos, que rompeu, desde longa data, as proibições legais e está a ser tratado a uma cirrose; um dos mais incorruptíveis, que filma outros em filmes pornográficos (e soube-se, por testemunhos diretos, sofre de impotência e de incontinência); o ministro que, às escondidas, recruta noviças a escolas através de um catálogo metodicamente mantido numa das salas dos fundos na sede dos serviços secretos; outro operacional, que contrabandeia – com a cumplicidade da alfândega – cigarros fabricados no inimigo predileto; e um sacerdote do topo da hierarquia, onanista de imberbes rapazes e voyeur do auto-prazer de adolescentes raparigas.

Oxalá os súbditos tivessem conhecimento do rol do que, neles, é punido como intolerável desvio de comportamento. Nem seria preciso atear uma revolução, que se faria por si mesma. Mas os serviços secretos continuam a manter reserva dos documentos que seriam terramotos para as tiranias. Afinal, os documentos continuam a jogar às escondidas.

27.9.22

A violência eternamente prometida

Rodrigo Leão ft. Federico Albanese, “O Método”, in https://www.youtube.com/watch?v=suZAzdZBRCs

(Mote: filme “Restos do Vento”, de Tiago Guedes)

Não deixamos de ser animais. Quando, na palavra animal, está embutido o selvagem arreigado no mais fundo do nosso magma.

Ninguém pode dizer que nunca foi testemunha de violência. Da violência habitualmente gratuita e da violência que as dilações argumentativas podem considerar como legítima. Poucos serão os que contestam o axioma da violência legitimada pelas circunstâncias que acabam por seu o seu pretexto. É inútil entrar na subjetividade dos critérios que legitimam a violência. O conceito de violência legítima é que está em causa. Ao levantar a cancela que a justifica, a liberalidade com que se procurar legitimar outras formas de violência é a fogueira onde arde a indeterminação. A violência torna-se uma instituição humana.

Como somos estruturalmente fracos, a violência propende a ser exercida sobre os mais fracos. É outro anátema da violência: a hipocrisia. A pútrida luva da violência faz-se abater quando a perceção do vencimento da violência estiver mais próximo, ou seja, sobre os mais fracos. A violência dos fortes sobre os indefesos é um sacrifício que cola os algozes à selvajaria. Não só o indefeso suporta esta condição, sem disso ter consciência, o que devia torná-lo imune a qualquer forma de violência; como os que escolhem a violência sobre o vulnerável atuam em bando, ampliando a natureza aviltante da violência.

É uma violência institucionalizada porque se fundeia nos códigos de conduta informais da sociedade. Que se exercem por cima das leis, quase sempre: a engrenagem social, que se alimenta da espontaneidade das relações entre pares, de uma desinstitucionalização endémica ao menor pulsar popular, desiste do respeito das leis quando supõe ser seu substituto pela superioridade do resultado que acredita alcançar. A falsa coragem dos bravos escuda-se no exercício da violência em grupo. É um bando que atua, lançando a grotesca mão da violência que dilacera a vítima ideal, o indefeso que é sacrificado para apaziguamento instantâneo da turba. 

Há interrogações suprimidas, contudo. Talvez, propositadamente suprimidas. O remorso constitui-se procurador dos pesadelos dos que exercem a violência sobre a vítima útil? Talvez não: eles julgarão que honraram um código de justiça que não se afere pela fragilidade das leis instituídas. E em cada um de nós, mesmo dos que jurem a antítese da violência, não habita um potencial violento, só à espera do rastilho para se tornar espontaneamente violento.?

Talvez seja uma parte, importante e irremediável, da natureza humana.

26.9.22

As cadeiras vazias

 

Ólafur Arnalds, “Partisans”, in https://www.youtube.com/watch?v=RUeHmHMs7_0

A angústia hereditária desfilava pelas cadeiras vazias. Um sabor a deserção tomava conta do tempo. Há sempre uma razão para a ausência. O vazio não se tutela com as palavras insignificantes. Sabia-se apenas que aquelas cadeiras já tiveram pessoas como paradeiro.

A meada subia, ultrapassados os prolegómenos. Eram muitas as mãos artesãs que esculpiam o desmedo necessário. Passava-se por sucessivas salas e o silêncio era a língua-franca. O silêncio e o vazio – outra vez a impressão de deserção. Por dentro do labirinto, as janelas não existiam. Tudo estava encarcerado numa prisão hermeticamente selada ao mundo exterior. Com medo do mundo exterior, a prisão esterilizada das forças corrompidas que pudessem ser o mau legado do mundo exterior. Sobejava outra impressão: a de exílio.

Talvez por isso as cadeiras estivessem vazias. Não seria porque ninguém as queria habitar; seria porque as pessoas que já lá estiveram souberam perceber que teriam de procurar hospedagem algures. A sala com as cadeiras vazias teria sido a intercessão para outro lugar. Um lugar com a tangibilidade do mundo exterior sem ser permeável às suas influências decadentes, sem saber que exauridas ficariam as forças só de tentarem ser um embaraço a esses vultos.

Do silêncio como idioma, não havia muito a dizer. Ao contrário do que parecia, o silêncio não era uma venda a proibir a fala. Não era uma forma de censura. Era a liberdade outorgada às pessoas para poderem interiorizar estados de alma sem serem importunadas pelo ruido limítrofe. Havia lugares próprios para tudo. Nos areópagos da deliberação, onde eram cotejados argumentos dos pleiteantes, as vozes sobrepostas compunham a paisagem. Essa era a sua linhagem. Esse era o lugar para a antítese do silêncio. Na sala com as cadeira vazias, o idioma era o silêncio. O frio resultante aquecia o sangue.

Ninguém sabia dos rostos que foram moradores temporários das cadeiras vazias. Ninguém os podia comparar com o estado sucessivo à temporada na sala das cadeiras vazias. Lá, onde até o ar parecia rarefeito, a combinar com a solidão da sala das cadeiras vazias, o pensamento amanhecia em estado puro.

23.9.22

Não somos parte de um refrão (trovoada)

Sault, “Bitter Streets”, in https://www.youtube.com/watch?v=8EsExqdr-0I

As purpurinas exasperam a pele, deixam as provectas ansiedades do mundo a falar alto. De onde vieram, só sabemos que adejavam, sopradas pelo vento errático, sem paradeiro por determinar. Na mesa do lado, um rapaz está embebido na música que passa nos auscultadores. Por mau isolamento dos auscultadores, os demais sabem (se conhecerem) a música que o rapaz está a ouvir. Ele tem uma vantagem: não está com as purpurinas coladas à pele.

O refrão repete-se – como se o artista estivesse num mau dia de inspiração (eufemismo para a estrutural desinspiração, no caso) e não conseguisse passar das palavras atamancadas no refrão. O rapaz encena uns tímidos passos de dança. Não será dança completa porque está sentado a beber a cerveja pela garrafa, no olímpico ignorar do copo que a empregada deixou na mesa. A perna direita move-se energicamente, parece repetir o refrão à exaustão. Nós, que temos o desprazer de conhecer aquela música, perguntamos como é possível um artista ser artista à custa de um refrão primitivo. Logo a seguir, descemos à terra e consentimos na exposição da estética ao princípio geral da relatividade. 

O refrão parece colar-se à pele que serve de adesivo ao pensamento. Saímos do café, já tínhamos esgotado a sua serventia. Avançamos pelas ruas e o refrão não se descola da pele que serve de adesivo ao pensamento, abaulando a estética de que (talvez arrogantemente) nos julgamos tutores. O refrão já era um desprazer, agora tornou-se persona non grata. Apetece, num insano ato de violência gratuita, matá-lo. Pelo menos na pele que serve de adesivo ao pensamento.

Da estética de que nos julgamos tutores – voltamos ao assunto, nem que seja para obnubilar o refrão soez: um de nós adianta a hipótese de ostentarmos arrogância nessa condição. Não há arrogância, o que logo exclui a hipótese de ostentação. Partindo do princípio de que cada um segue um padrão estético, essa é uma divisa que aparece ao peito. Não se foge dela. Sem prevaricação que seja insultuosa aos demais, que a eles também está reservada, por adesão ou apenas por passividade, uma certa estética. 

O refrão é uma flecha assestada ao olhar. Um atentado à estética de que somos embaixadores (fica mais modesto, em vez de tutores, não vá um angustiado militante de qualquer coisa insistir na tese da arrogância intelectual). Não somos aquele refrão. E mais dizemos: não somos nenhum refrão, que tanto prezamos a liberdade de espírito e não fomos feitos para sermos coutada de movimento nenhum.

22.9.22

A máquina dos sonhos

Dead Can Dance, “Yulunga” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=7MeTXYmbUaU

O corpo arrasta-se contra os verbos sumptuosos. O palco assenta em alicerces de ouro e o chão é atapetado por pétalas. O idioma é o odor desengolido pelas pétalas ainda frescas. 

Arrumam-se os medos em dicionários onde só cabem palavras arcaicas. O desuso acompanha a claridade que é inaugurada pela manhã. 

Se os pesares não forem pesados, os olhos não decaem no crepúsculo que anuncia a noite. O suor fatiado veste-se na pele túrgida. Esperava-se que o sangue entrasse em ebulição. A anestesia conseguiu demovê-lo.

Ao longe, as montanhas orquestram o dia. Olhadas desde aqui, parecem varandas estendidas sobre o futuro. O tempo dirá se elas são apenas metáforas angariadas contra as farsas que tingem os dias correntes.

Às vezes, uma improvável categoria de sortilégio insinua-se nos interstícios que parecem compor as vidas. Pode não passar de uma ilusão, encenada para não nos abstermos da condição de párias.

Os engenheiros de tudo vogam na sombra, a sua pardacenta condição impede de aparecerem sob os holofotes da dignidade. Não os apoquenta, a discreta pele que vestem. Ao menos, podem andar nas ruas com a pele incógnita.

O passado dança na cidade erma. Reclama um lugar com paradeiro no mapa. O passado dança e dança, como se houvesse um concurso de luditas e as cores desenhadas nas costas de um bilhete de autocarro encorpassem o vocabulário sem freios.

A matrícula do automóvel sugere jogos de palavras. Dizes: podíamos ter outro entretenimento. Julgamos o mercado da semântica pela rugosidade das palavras. Às vezes, ficamos próximos de um poema.

A máquina dos sonhos não se desliga. Continuará ligada mesmo depois de o tempo se ter extinguido. Os sonhos conseguem a perenidade que é interdita às vidas.

Dizemos que não queremos prisões de qualquer espécie. As mais difíceis de evitar são as que fingem não o ser, seduzindo as almas para quimeras mal contadas. Se a máquina dos sonhos for interrompida, seremos as vítimas prediletas dos fautores de todas as prisões que nos cercam, com o seu ardiloso silêncio.

A máquina dos sonhos é a maior invenção de todas.

21.9.22

Não passes dos oitenta (multidão)

The Dandy Warhols, “Not If You Were the Last Junkie on Earth”, in https://www.youtube.com/watch?v=APrpB-i4d_E

A boca não se esconde das palavras impertinentes. É o pós-adolescência a medrar. Uma certa loucura não se distingue da ainda escassa lucidez. Os passos que demos eram maiores do que as pernas que que nos permitiam andar. É o roteiro de uma idade – a amplificação de uma ideia de transcendência confundida com a transgressão que nunca parece ser.

Esse era o tempo em que outra ideia gravitava na órbita de um certo despensamento: a sensação de imortalidade, exacerbada pelo convencimento de que ninguém morre tão cedo. Oxalá estivéssemos certos trinta anos depois. Trinta anos depois, os funerais são em maior número do que os casamentos. 

Quando uma certa loucura inadvertida tinha periscópio, viajávamos pela vida a uma velocidade alucinante. O tempo não metia medo. Ou melhor: não tínhamos consciência que o tempo viajava depressa de mais. Se houvesse um velocímetro como metáfora, andávamos quase sempre a duzentos à hora. Já nessa altura ouvíamos os mais velhos, sentados em cima da sensatez providenciada pela experiência, a aconselhar uma velocidade sóbria. Eles sabiam o que nós não sabíamos. Eles sabiam que o tempo acaba por meter medo. Nós julgávamos que eles já tinham desistido de viver. 

Não: não íamos a oitenta à hora, como nos era recomendado. Oitenta à hora era como estar parado no meio de uma autoestrada onde todos passavam por nós. E nós não queríamos ficar para trás. Não queríamos ser os últimos a chegar. Não sabíamos ao certo porquê. Só sabíamos que não queríamos ser os últimos na parada. 

Hoje, por vezes viramos o espelho que se torna retrovisor. Não queremos amanhar os despojos do tempo vertiginoso que foi o castelo que nos cercou de ilusões abundantes. Fazemos um inventário. Medimos as diferenças. Não queremos ser categóricos. Há um certo autismo que vem com a propensão de estimar como certo o tempo presente, desautorizando o tempo pretérito, atirando-lhe, sem condescendência, as desaprovações que nunca vêm a destempo – é disso que estamos convencidos. 

Demora a perceber como é errado esse inventário. Cada tempo tem o seu santuário próprio. Não há tempos errados, nem a prodigalidade se associa a um determinado tempo. Podíamos ir a oitenta quando nos aconselhavam a modéstia, como podemos ir a duzentos agora que nos amedronta a vertigem. 

20.9.22

Falar sem pontos de exclamação (Speakers’ Corner)

The Clash, “Guns of Brixton”, in https://www.youtube.com/watch?v=6eneRB5z1XM

Podia ser uma metáfora para a vozearia que se desembaraça quando a excitação (ou a exaltação) toma conta de uma conversa. As pessoas agarram-se aos pontos de exclamação e nem dão conta de o fazer (os pontos de exclamação não se colam à fala como sinais visuais). Se fosse para usar outra imagem, em jeito de reforço da metáfora, é como os atores revisteiros, fadados para o pregão inflamado e para o humor de fracos pergaminhos, a entaramelar a fala – ou, como imagem do avesso, a monocórdia enfastiante do ministro da economia.

Não se enfeitam as palavras com os necessários pontos de exclamação, a julgar pela tonitruante e exuberantemente ornamentada maneira de compor uma fala. As palavras não parecem sopesadas. Saem aos empurrões e a fala acaba com declinações que sofismam a serenidade. Tudo se passa como se a fala fosse sempre inflamada – porque, há que convir (mandam as preferências da maioria), somos latinos e os latinos são ladinos em tudo o que fazem.

Os espanhóis levam a palma. Junte-se um punhado de espanhóis num aeroporto: de comício montado, são imbatíveis no campeonato dos decibéis. De acordo com um teoria (cuja validade científica não foi possível demonstrar), quem sobe nos tamancos dos decibéis tem dificuldades auditivas: falam alto porque têm a necessidade de ouvir o que dizem. Daí os espanhóis e a vozearia invencível. Não há quem use pontos de exclamação com tanta prodigalidade. Tanta, que é convenção gramatical o ponto de exclamação preceder a frase antes de a concluir. Tudo começa e acaba por um ponto de exclamação. 

(E o escritor incorre em grave falha ao não ter rematado a frase precedente com um ponto de exclamação.)

Os pontos de exclamação são as balas que magoam as frases, ferindo-as com distrações que servem para desviar da sua inteligibilidade. Quem lê uma frase pontuada com uma exclamação perde-se no ornamento do ponto de exclamação. Atingido pelo fogo inimigo da pontuação gongórica, o leitor – ou o ouvinte, quando as exclamações se enredam na fala – fica sem bússola para se guiar. Deve servir os propósitos dos useiros e vezeiros de pontos de exclamação: dizem o que querem, porque quase todos apenas conseguem ouvir os pontos de exclamação que disfarçam as intenções.

A falta que faz a fala povoada por espaços em que o tempo se devolve em juros líquidos ao leitor. A falta que faz a depuração de pontos de exclamação, para a fala ficar fria e enxuta, nítida ao leitor, como só o teatro consegue alcançar.

19.9.22

O que é “um bom país para morrer”?

Wire, “The 15th”, in https://www.youtube.com/watch?v=kUv-7ouJ1uI

Ele há plumitivos que se encharcam em lugares-comuns, lugares tão amenos para eles que medram no nanismo intelectual, como para a audiência crescentemente acrítica. Um deles, figurão importante no meio, disse, sem lhe caírem os dentinhos, que este não é um bom país para morrer.

Não lhe caíram os dentes, mas a minha boca ficou aberta (continuando a saga dos lugares-comuns que se transfiguram em expressões idiomáticas). Depois de deixar de estar boquiaberto, só me ocorreu perguntar se há lugares que são bons para morrer. Parto do princípio, não metafísico, de que a morte é uma injustiça e que ninguém dirá de bom grado adeus à vida (exceto os suicidas, os heróis que consumam uma vida quando a perdem num campo de batalha e as pessoas penhoradas pela doença que suplicam pela partida). 

Ele há lugares que sejam bons para morrer? Dir-me-ão que a ilustre personagem da comunicação social estava apenas a empregar uma figura de estilo. Não quero saber de figuras de estilo que se encenem com a seriedade da morte. Admitindo que a morte é um pesar sem comparação para quem dela é vítima, não há lugares bons para a ocorrência. Poderá haver modos menos insuportáveis de cessar uma vida, outros que são violentamente invasores e ainda outros que não se destacam na adjetivação. Poderá haver quem sonhe com uma morte sem dor, durante o sono; quem não se importe de dizer adeus à vida, certificando que saldou todas as contas pendentes, num deve e haver que corresponde à preparação para a morte; e quem nem sequer pense no assunto, dele fugindo pelo temor que a morte lhe infunde. 

Apurar que lugar é melhor para receber a morte é como se a morte pudesse ser mercantilizada de acordo com os predicados (ou a sua falta) da geografia, escolhida ou apenas predestinada, que marca encontro com a morte. Esta – outro lugar-comum para terminar – não lembra ao diabo. (Que admito ser o alter ego da morte.)

16.9.22

What goes without saying

Echo and the Bunnymen, “Seven Seas”, in https://www.youtube.com/watch?v=LbYxP11rbSM

Gostas de diospiros? Não. E de clementinas? Dessas gosto. E dos autos que inscrevem nomes em pelourinhos indesejados? Não vejo a causalidade com diospiros e clementinas. Mas responde, em todo o caso. Não me é dado saber nada sobre o assunto. 

E tu, gostas de diospiros e clementinas – e, já agora, porque não, de framboesas? Gosto dos primeiros e dos terceiros, incomoda-me a acidez das clementinas. E dos autos que convencem as distopias a serem apenas distopias? Se ajudam as distopias a serem logros, assino por baixo. 

Já que falamos do assunto, concordas com as palavras suprimidas? Depende do que suprimem, depende do caso em que elas são suprimidas. Não te sentes agredido quando o silêncio é imposto do exterior? Essa é uma pergunta de retórica, só pode ser uma pergunta de retórica.

Ainda que tocas no assunto, tens algo a dizer à barbaridade antropológica da matança do porco? Digo que temos de nos alimentar. Portanto, ias a uma tourada? Como observadora de um fenómeno social, admito que ia, mas não aplaudia as lides (a menos que um cavaleiro fosse derrubado pelo touro enfurecido, sendo garantindo que o cavalo saía ileso). 

Mas ainda não estou convencida que não consideres o silêncio forçado uma não disfarçada censura, uma coisa abjeta. Não disse o contrário: sou eu que dito o meu silêncio, eu e as circunstâncias que o aconselhem. Não tens medo das palavras que ficam de fora? As palavras podem ser ditas outra vez, mesmo quando não foram ditas da primeira vez. 

És assaltada pela denúncia de palavras que ficaram por ser ditas? Todos temos os nossos arrependimentos, que são uma redenção adiada. E as palavras que ficam arquivadas no esquecimento são seletivas quando pensas nas pessoas a quem deviam ter sido ditas? As pessoas não são todas iguais; nem as que se remetem ao silêncio, abolindo as palavras que deviam ser ditas, nem as pessoas que as deviam ouvir: fica por saber o que não se disse. 

15.9.22

Para preencher os espaços em branco

Jóhann Jóhansson, “The Drowned World”, (live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=JEtiLhJdw3I

Em desocupação da opulência, desagravem-se os falsos abismos que são a combustão do medo. Em vez disso, o meticuloso, lúdico exercício de preencher os espaços em branco que alguns alquimistas deixam em espaços avulsos.

É pedida custódia da imaginação. Os espaços em branco supõem um exercício que tanto pode ser ao acaso como exigir uma formulação precisa e demorada. Uns não se interessam com a coerência e atiram as primeiras palavras que se atravessam na cortina do pensamento. O todo pode não soar inteligível, mas muita literatura tem idêntica linhagem. Outros abraçam a empreitada com a solenidade que julgam ser a sua medida, sopesando as palavras que vão ocupar os espaços em branco. Às vezes – talvez vezes de mais – o que é vazado em vez dos espaços em branco é uma prosa sem inteligibilidade. Outras vezes, sobra uma prosa gongórica, o exercício de imodestos eruditos (assim se consideram, em juízo excessivo de si mesmos) que fazem questão de esbofetear na audiência a sua erudição disfarçada de topete.

Preenchem-se os espaços em branco, substituídos por palavras que passam a ser porta-vozes do silêncio sóbrio. Os ardis deviam ceder o passo na passadeira onde os povoadores de palavras válidas têm prioridade. São os menos artilhados de sabedoria que gozam de fama na capacidade de desarmadilhar os sentidos múltiplos que as palavras contêm quando os mecenas se escondem atrás de disfarces. As palavras que ocupam os espaços que antes estavam em branco não agridem o olhar. Não ferem o pensamento.

Os vaidosos que desfilam no despudor da vaidade ou se convencem da presciência para tomarem o leme da palavra, ou desertam por desconformidade com o uso da palavra. Embotados os últimos, entregam-se à mundanidade. Os espaços em branco foram feitos para conservarem a sua alvura – argumentam. A palavra é um tirocínio cansativo. Os primeiros metem no coldre um património abundante de metáforas. Fogem das palavras no seu sentido direto. Fogem de tudo. Com eles, as palavras que substituem os espaços em branco são rasuradas vezes sem conta. Até que já nada se percebe das inscrições que acabaram por sepultar a função.

14.9.22

Paradeiro (RGPD dixit)

Dead Can Dance, “Anabasis” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=tLzBENQ3Ii8

Nos aeroportos, é como se estivéssemos no mesmo lugar. Não é que os aeroportos sejam iguais. A arquitetura varia. Por fora das cambiantes da arquitetura, os aeroportos obedecem a um padrão. A teoria é esta: se estivermos dentro de um aeroporto e, subitamente, a amnésia se ocupasse de virar a lucidez do avesso, não saberíamos onde estamos (para além de sabermos que estamos num aeroporto). Não seria a paisagem visível de dentro para fora do aeroporto a revelar o paradeiro.

Um pouco como nos aeroportos se fosse a amnésia a subitamente mandar, às vezes os lugares parecem todos iguais. Ou melhor: a distração consegue convencer que há um esquecimento do lugar onde nos encontramos; sabemos, talvez, onde estamos, mas não nos é dado a atestar o nome do lugar. Nos momentos em que nos despojamos e parece que gravitamos na nossa própria órbita, uma anestesia cuida de silenciar a lucidez.

Possivelmente esta ausência de paradeiro não é o que parece. Um não lugar instantâneo pode ser um lugar, intencionalmente procurado como exílio dos lugares habitualmente demandados. Sentimo-nos forasteiros no lugar que julgamos ser nossa pertença quando a lucidez não se esconde num exílio. As convenções insurgem-se contra esta vocação para sermos foragidos do lugar que elas imputaram como nossa pertença. Quem sabe, às vezes, somos foragidos de nós mesmos. Ou somos obrigados a sê-lo, por desprazer de algo que corresponde ao que julgamos saber de nós.

Não devíamos precisar de um paradeiro, como se ele se somasse ao nome de que não podemos abdicar (outra vez de acordo com as convenções). Jogamos o paradeiro contra as forças geológicas em que assenta a identidade. A identidade não devia depender de um lugar, muito embora se diga que os lugares, aqueles onde somos indígenas e os outros em que fomos forasteiros, ajudam a cimentar uma identidade. Forçar um paradeiro, ou coagir alguém a revelá-lo contra a sua vontade, faz o lugar sobrepor-se à identidade. Mas as pessoas é que esculpem os lugares.

Um paradeiro não pode ser um embaraço à vontade. Em caso de oposição, sacrifica-se o paradeiro, que só interessa ao seu titular. O RGPD tornou-se lei de bronze.

13.9.22

É a roda dentada, incansável

Bonobo, “ATK”, in https://www.youtube.com/watch?v=s39SDfB1iyQ

Se não fosse o deslumbramento, não haveria antídoto para as estradas esburacadas que aparecem no caminho. O deslumbramento anestesia a grande roda dentada, como se o tempo se enquistasse numa memória permanente e nada mais houvesse no exterior de nós. Nomeadamente, a imensa roda dentada onde tudo se terça. A roda dentada não dorme. Age, imorredoira. Ninguém a anestesia.

Até se pode ser feitor de uma ordem onírica. Mas os sonhos podem não ter confirmação quando se formular a ordem de aterragem. As dores crepusculares amontoam-se na ardósia que já não tem giz. Oxalá houvesse giz; ao menos, era usado para apagar a desordem, ou apenas para aplacar o corpo condoído pela não admissão a concurso do deslumbramento. Fica-se à mercê das contingências ditadas pelo sortilégio que só a roda dentada é capaz de segredar. O resto não conta. Somos evasivos por dentro de nós.

Alguns demoram-se na circunspeção para assegurarem uma conspiração a seu desfavor. Falam em espírito furtivos, vultos asininos, escombros que levitam ao levantar o véu do futuro. Ruínas jogadas nos despojos da decadência – todos estes ingredientes, a sementeira da roda dentada que se opõe à beleza matricial. À mercê dos humores voláteis da roda dentada, o rosto impassível denotando a fragilidade de quem admite ser um figurante nos acasos que se congeminam. 

Seriam precisos turnos para apreciar o labor consecutivo da grande roda dentada. Seriam precisos mil cientistas dedicados a estudar os movimentos meticulosos, compassados da roda dentada. Perante a impossibilidade da empreitada, as almas aceitam a inércia, como seres trazidos por uma maré avulsa que não podem domar. São indivíduos perecíveis, réus da dogmática incerteza.  

Os socalcos que se vindimam antes do anoitecer ficam arrumados mal a roda dentada faz descer o seu músculo centrípeto. Nem o mais encorpado de todos consegue dobrar o braço hostil da roda dentada. Os que se insurgem, convencidos da sua predestinação, são obrigados a curvar-se perante a roda dentada. Só então se convencem da sua imensa fragilidade ao pé da roda dentada. 

(Já houve quem chamasse deus à roda dentada, ou mantenha que deus consubstancia a roda dentada, mas isso não vem agora ao caso.)

12.9.22

Aprendiz de feiticeiro

Black Lips, “Funny”, in https://www.youtube.com/watch?v=VtZYa-X2TAE

Congeminava o efémero, porque o espírito de contradição se rebelava contra a apostilha do tempo em retrato panorâmico. “A vida é uma sucessão de instantes”, podia ser o lugar-comum desembaraçado do lugar involuntário onde eles são desprezados. Alguém contrapunha: “se formos longe, não podemos confiar no efémero”. 

Pela noite, as luzes da cidade desfilam pelo olhar apático, emprestando-lhe uma aparente tonalidade lisérgica. O pensamento absorto, refugiado num exílio intencional, foi atirado para paisagens ermas, lunares. Era como se percorressem um chão baldio coberto por arbustos indiferentes. Na cumeada estaria nevoeiro e o olhar não conseguia apreciar a paisagem que, de outro modo, seria dada a contemplar desde o miradouro. Não importava. A bonomia não se afere pelos disfarces que escondem um lugar. “Oxalá pudessem as minhas mãos levantar a cortina de nuvens e destapar a paisagem”, disse, meio perdido nas ruas labirínticas da cidade tomada pela noite.

Alguém sugeriu uma paragem para aldrabar a fome, agora que a noite ia adiantada. No posto de reabastecimento, os rostos cansados saciam os estômagos vazios, alimentando o silêncio. A noite estava sossegada. Se em vez de táxis ocasionais houvesse o bulício dos turistas que vieram colonizar os dias da cidade, esse movimento seria transferido para a noite. Ao que parece, os turistas não querem saber da cidade coberta de noite. Salva-se um módico da cidade original. Mais fica para os que da cidade fizeram seu um lugar. Eles é que são os autênticos tutores da cidade. Os turistas são a evocação do efémero. Chegam e partem, deixando a cidade para a colonização de outros, efémeros, argonautas da curiosidade pela geografia alheia.

“Parece que habitamos em duas cidades, uma o avesso da outra”. Os outros, ainda atarefados pelo apetite voraz, anuíram com a cabeça, mantendo o silêncio irremediável. No fim da encomenda, alguém adiantou a possibilidade de boicotar o turismo: “a cidade é nossa, os turistas são visitantes que partem depois e deixam quase nada de si. Não digo que os turistas sejam culpados. A culpa é dos que esculpiram um certo turismo, convencidos que era do agrado dos forasteiros. Moldaram a vontade do turista. Eles é que deviam ser punidos pelo delito de adulteração da cidade.”

Os feitores do turismo eram aprendizes de feiticeiro, useiros no fingimento de uma cidade, entaipada por uma maquilhagem que a transfigurou. Alguém devia explicar aos forasteiros que a cidade legítima não é a que os intendentes do turismo lhes apresentam. Para que eles próprios, forasteiros, não sejam sitiados pela aprendizagem de feiticeiro dos aprendizes de feiticeiro que os enfeitiçam com falsos predicados e logros repetidos.

9.9.22

As mãos do pintor

No Words Left, “City of Mirages”, in https://www.youtube.com/watch?v=q1rvb0uYSV4

Um caso de ti: esse olhar sem fronteiras, dicionário em que me pressuponho. Diria que minhas são as mãos do pintor ao ficarmos extasiados na contemplação das obras de arte que trazem o seu nome embebido. Elas, demoradas no olhar, tornando-se num magma que dispensa a fermentação; as nossas almas contêm a regeneração de si mesmas. Não deixamos de parte esta (ousada) epifania.

Diria: se as mãos do pintor revelam um sortilégio, eu gostaria de ter as mãos do pintor para escrever poemas distintivos sobre ti. Ou para que as mãos adejassem sobre o teu corpo e nele desenhassem os santuários que conservam os segredos de que somos únicos feitores. As mãos minhas, em transfiguração das do pintor, seriam maestras ao domar as intempéries que se abatem sobre o cais onde estamos. Para que nenhuma tempestade possa desarrumar a desordem em que teimamos; a desordem de quem somos hermeneutas insubstituíveis.

As mãos do pintor não são as minhas e nem assim me demovo de intenções. Pois um caso de ti é todo um universo contido nas minhas mãos que sobre ti descem e povoam as danças de que somos mecenas. As minhas mãos não são as do pintor e nem assim se diminuem na tradução do amor. Só preciso das minhas mãos para encontrar as estrofes que retratam o lugar único em que habitamos. Nossas são as manhãs que depõem os sonhos avulsos, as diferentes partidas que aumentam a nossa geografia, os lucros que trazemos de um filme, de uma peça de teatro, de um concerto. Essas mãos são testemunhas que o mundo não deixa de crescer, de acordo com a recompensa dos nossos olhares. 

As mãos do pintor são uma metáfora. Um pedaço do segredo nosso que não deixa de ser segredo. No horizonte que se torna baço com o nevoeiro que acompanha o entardecer, sentamo-nos a ver para onde vai o tempo e sentimos nas nossas mãos as mãos do pintor. A paisagem que se confunde com a linha do horizonte torna-se a diligência das nossas mãos. A paisagem rende-se ao proveito genesíaco das nossas mãos.

8.9.22

As furnas frias

Iceage, “Shake the Feeling”, in https://www.youtube.com/watch?v=wzvFof493ZY

A manhã fria desamarra-se da anestesia que foi sua véspera. Há noites suadas, dominadas pelos pesadelos que nunca são convidados para o sono. Sabia que há coisas que se supõem banais; elas sobrepõem-se à sua vontade, por isso as remete para a banalidade. Nessa condição, impingem-se na sua contingência, sem nenhuma validade interior.

Essas noites congeminadas por pesadelos são cenários de surrealismo. Quando os vestígios do pesadelo vêm à superfície (quase sempre por acaso, largas horas depois do pesadelo ter sido narrado em segredo), ficam por entender as suas sinuosidades. A combinação de atores, circunstâncias e acontecimentos atira o palco para o domínio do inviável, uma sumptuosidade que, por dentro dos pesadelos, se perfuma com a sua própria inviabilidade. É como se fosse impossível o impossível acontecer, devolvendo a impossibilidade a uma impossibilidade a ela maior, estrutural e centrípeta. Os sonhos em geral, e os pesadelos em particular, são averbamentos da impossibilidade que se transfigura em rostos possíveis.

Depois da repentina lembrança do pesadelo pretérito, o pensamento refugia-se nas furnas que não têm morada certa. As furnas têm paredes álgidas, tão álgidas que as mãos se ferem se nelas se ampararem. A frialdade das furnas é um desconvite à sua pertença. Notou que estar nas furnas também não tem filiação na vontade: estar nas furnas frias é um ato exterior, sente-se sitiado de cada vez que um pesadelo sem convite o encomenda para as furnas.

Um dia, percebeu a intenção dos pesadelos que assombram o sono. Atuam como uma provação. Ao ser desafiado pelos vultos que ensombrecem um pesadelo, era como se fosse submetido a desafios que depois podiam passar no palco que dá acolhimento à matéria sensível. Os pesadelos são o tirocínio para esses desafios, se mais tarde a congeminação dos palcos determinar o seu apuro. E entendeu a fantasmagórica aparição da furna fria como paradeiro dos pesadelos sem convite: eles só podem passar num ermo onde ninguém queira estar. 

Os pesadelos não se tributam na gratuitidade das profecias que sussurrem no vento dominante. Encerram um ónus. Cabe ao ator involuntário dos pesadelos perceber os seus sinais.

7.9.22

“O talento é o petróleo do futuro”

Fontaines D.C., “Nabokov” (live on Seth Meyers), in https://www.youtube.com/watch?v=rUWeFe3MjIo

(Tirado das catacumbas do mau fígado, em jeito de aviso prévio)

Não deve haver pior combinação do que o casamento entre gestão e psicologia. A retórica resultante, retorcida pelos pregões que ficam bem na hodiernidade desempoeirada, rivaliza com a língua de trapos que não é desconhecida à astrologia, ou a outras mistificações esotéricas.

Os gurus deste idioma são gente avantajada pela visão – como se fossem detentores de um periscópio que os habilita a ler o tempo antes de ele acontecer. Têm uma capacidade hermenêutica dos factos e dos fenómenos acima de qualquer mortal. A leveza semântica é crepuscular: as fórmulas usadas encantam os seguidores destes modernos pastores das almas, eles constantemente misturando o idioma nativo com o inglês (e fabricando anglicismos a eito, como se fossem a demonstração da sua imensa criatividade), sempre guiados pelo utilitarismo da produção e do consumo e despromovendo o que não obedece a esta materialidade, sempre movidos pelo lugar centrípeto da empresa e das estratégias comunicacionais que servem para posicionar a empresa no “mercado”, mas apenas lídimos representantes do capitalismo suicidário.

Ele há um reitor de uma universidade que foi rebatizada em inglês que, excitado com a perspicuidade da ciência de que é arauto, tem aparições públicas que são do domínio do metafísico. Tudo é trespassado por uma visão despejada dos acontecimentos, o futuro só pode ser colonizado por um otimismo militantemente ativo, o mundo é um lugar onde só há oportunidades, nada de embaraços nem de imperfeições que o desqualificam enquanto lugar mal frequentado, assim saibam, os que seguem a religião da gestão mancomunada com a psicologia positiva, tirar partido das oportunidades que devem saber detetar. 

É tudo um “state of mind”: os futuros empreendedores – pois o segredo está no segredo em guardar o segredo do empreendedorismo – têm o “skill” de ler as oportunidades que o mundo, tão prolixo, oferece em catadupa. Mesmo que sejam apenas “colaboradores” (não há cá trabalhadores, que isso sugere a vulgata da luta de classes do atávico marxismo, uma ideologia do desprogresso), devem fazer parte da empresa como se todos fossem da mesma família. O que conta é o “market share”, o “prize money” no final do ano (prova da produtividade, ou seja, do sucesso para a empreitada empreendedora), todos remando para que as “commodities” vençam no pleito do mercado. Que os “accomplishments” fiquem devidamente lavrados no Excel para memória futura (e para revelação dos CV, não vá o diabo ser tendeiro).

O tal reitor, inebriado com o sucesso instalado da sua igreja científica, atuando como se dela fosse supremo sacerdote, cunhou um novo lema que, de acordo com a sua conspicuidade, deve nortear os que queiram o sucesso (pois o sucesso é a aura máxima a que os “market agents” podem aspirar): “o talento é o novo petróleo”, exclamou, na apoteose de um momento genesíaco, em pose metaforicamente onanista. 

E eu fiquei a pensar na desconformidade entre a santa igreja da gestão & da psicologia e a moda ambientalista, pois se o petróleo é dos maiores responsáveis pela degradação do meio ambiente, possível promessa de distopia, o que se dirá do talento como transfiguração do petróleo? A deificação do talento será a autofagia da espécie. 

(Ou, se calhar, estes pregões são apenas vacuidades ditas por gente frívola para contentamento de outros frívolos que são seus acríticos seguidores. 

Às vezes, apetece-me ser de esquerda.)

6.9.22

Manual da aterragem forçada

Ólafur Arnalds, “Back to the Sky” (live in Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=9gGp9A-9XE8

Nuvens como bigornas metem-se à frente e tu sabes que não as podes trespassar. Para não seres matéria inerte (como os arquivos mortos), sopesas as possibilidades. Sabes que está sempre em aberto a aterragem forçada, pois há contingências que fogem à voragem da tua vontade. 

Tens de procurar o cais mais a preceito. Pode não ser o mais próximo. Se esse estiver sob os auspícios da tempestade iracunda, a aterragem forçada pode estar condenada ao sinistro. Ninguém colhe os ventos de um sinistro, a menos que não esteja em bom juízo. Pese embora as dúvidas que açambarcam os sonhos que campeiam durante a noite, estás convencido que a lucidez ainda não se desapoderou de ti. 

Excluído o cais mais próximo, consultas a memória para encontrar outro cais que sirva de alternativa. Temes que haja um módico de medo a poluir a lucidez exigível perante esta contingência. Metes gelo no pensamento, para que ele não seja contaminado pelas nuvens hostis que crescem a uma velocidade vertiginosa. A frieza de espírito saldou-se a contento. Preparas o voo para um ponto e vírgula; impõe-se um desvio de rota por causa das nuvens que desembaraçam os piores fantasmas e a escolha do cais que servirá para a aterragem forçada. 

Só que não tens a certeza se tens de proceder a uma aterragem forçada. Consultas os instrumentos que instruem a informação do tempo. Queres saber se as nuvens bigórnicas por diante são uma intermitência ou se pressagiam uma tempestade cavada. Tens de agir depressa. Já começas a sentir os efeitos da turbulência: as nuvens densamente povoadas avançam na tua direção. Não há tempo para uma indagação meticulosa. Tens de desviar a rota e procurar um caminho que leve até ao cais que servirá para a aterragem forçada.

Lembras-te, ainda a tempo, de estimar se o combustível guardado no depósito chega para alcançar o cais de emergência. Precisas de duas empreitadas simultâneas: ter mão no leme, para contrariar as primeiras rajadas que te atiram de um lado para o outro; e fazer os cálculos necessários para saber se o combustível restante chega até ao cais da aterragem forçada.

Sentes a camisa inundada pelo suor. A páginas tantas ficas sem saber se chegarás a tempo do cais de emergência. Tens de recorrer a um plano de contingência. Contar com os ventos a favor, nas ilhargas da tempestade, e aliviar o acelerador. Precisas de poupar combustível.

De repente, acordas. Era um pesadelo – e o pesadelo, a fonte de suor. Sentes-te contaminado pela nova contingência dos tempos novos, em que uma guerra não distante ameaça forçar os povos a um inverno negro, à míngua de energia. A aterragem forçada será dolorosa, com feridos a convocar inventário.

5.9.22

Ainda ninguém fez o inventário do número de autores (e das pessoas correspondentes) nos escaparates da feira do livro

dEUS, “Disappointed in the Sun” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=4QS2c7LpeJg

Quantos autores pertencem à feira do livro? Quantas são as pessoas que deram livros à estampa, entre vivos e mortos, acotoveladas nos expositores da feira do livro? Ouviu-se dizer: o inventário está por fazer.

Algumas dessas vidas são conhecidas: os autores famosos, personalidades cujas vidas saltaram para os néones. Aposte-se que a maioria dos nomes que dão a autoria a livros exibidos na feira só não são anónimos porque ganharam o direito a ostentar um ISBN à lapela do orgulho individual. Haverá alguém interessado em contribuir para a biografia das biografias da feira do livro? Podia ser uma obra coletiva que narrasse o lado banal de algumas dessas vidas. Ficariam à mercê do interesse do público. Não seria só uma feira do livro. Seria, talvez ainda mais, a feira do autor.

Dos autores cujas vidas são pouco mais do que anónimas, só sabemos os índices habituais de uma biografia minimalista: data e lugar de nascimento, outras obras publicadas, a profissão principal (se se der o caso de não serem escritores profissionais, que hoje já poucos ganham a vida a escrever), possivelmente quem os pôs no mundo. A instâncias das editoras, pode dar-se o caso de serem acrescentados uns pós à biografia do autor: ele tem a oportunidade de promover quem é, seja num registo solene (os autores que se levam muito a sério), seja num registo humorístico, ou num registo propositadamente auto-depreciativo (os autores que não chegam a perceber como houve uma editora que publicou o seu livro).

Se fossem compulsadas todas essas vidas, teríamos uma estatística avulsa: o número de licenciados, os que se casaram e, entre estes, os que depois se divorciaram, os que já foram ao Japão, ou à África do Sul, os que tiveram a ousadia de ler Petrarca (ou Aristóteles), os que sabem nadar, os que fumam, os que se curaram de qualquer forma de toxicodependência, os que são homossexuais (por hoje já mais interessa dar conta dos não binários), os que comem sempre um doce à sobremesa, os que detestam pijama, os que têm uma caligrafia ininteligível, os que são uma fraude autoinstituída (mas convenientemente disfarçada), os ateus e os hereges, os autores simplesmente lúdicos e os outros, insuportavelmente arcaicos, os que têm o vício do jogo (ou do álcool), os que só tomam banho às vezes.

Ou talvez não seja ideia a seguir. Para não fugirmos do que interessa e a feira não deixar de se chamar feira do livro.  

2.9.22

Oráculo do passado (ou: história do futuro virada do avesso)

Joan as Policy Woman, “Holy City”, in https://www.youtube.com/watch?v=zS5pjxseTQM

Recado aos patriarcas do futuro: convençam-se da frivolidade da vossa função. É o que do passado trazemos para memória futura. Os historiadores do futuro ainda não aprenderam que a contingência desaconselha a serem os feitores da presunção do futuro, pois adivinhar (mesmo que seja com base no pretérito) é um logro.

Ainda que fosse possível ter um oráculo virado para o futuro, a quem interessa saber as coordenadas desse tempo ainda ausente? O futuro está por fazer; antecipá-lo desaprova a sua linhagem, pois a ninguém são dados atributos para contemplar as variáveis, as certas e as indeterminadas, que são a pauta em que se compõe a posteridade. A quem interessa saber de que têmpera é feita o futuro, se a adivinhação ultrapassa o tempo por acontecer, destruindo-o na sua natureza? Ainda se houvesse druidas que apostam a carreira na categórica demonstração do futuro – mas os druidas pertencem à categoria dos unicórnios sem geografia. 

A empreitada de historiar o futuro não é convincente. Aposta-se na teoria das probabilidades, inventariada com o conhecimento da História (a tal que se repete como farsa, de acordo com um dos maiores farsantes do pensamento). Como se fosse possível extrair as bissetrizes do futuro pelo alinhamento dos acontecimentos herdados do passado – e todos os astros se congeminassem de forma a gerar acontecimentos vindouros. Servem-se do passado como oráculo para virarem do avesso a História do futuro. Não se iludam os enfeitiçados pelo advento desta impossibilidade. A função é uma patranha.

 As páginas do passado revelam-se na memória servida no periscópio do tempo. Usar o passado como ponte para o futuro é abusivo quando se distorce a linhagem do futuro, pretendendo dele reter na mão uma imagem de si fidedigna. Os usurários participam numa ilusão coletiva. Sem darem conta, falsificam o magma do tempo vindouro, convencidos que o poderão esculpir. Quando o futuro tem lugar, percebem o logro. Mas não aprendem.

1.9.22

Paredes absolutas

Preoccupations, “Fever”, in https://www.youtube.com/watch?v=oVM7dEBN7pM

As piores tempestades são as que não se deixam pressentir. A desordem terça o inesperado e o modo como não se sabe lidar com o sobressalto. É como uma febre sem cartografia. Os suores que tomam conta do corpo entorpecem-no, sitiado na sua impossibilidade.

As nuvens que colonizam o pensamento deixam-no embaciado. O que é difícil aviva-se nos horizontes da mente, como se tudo fossem contratempos que transfiguram as estradas em caminhos impraticáveis. Os olhos deixam de ser imperturbáveis. Encenam o caos como se este fosse o seu verbo gordo e todos os imponderáveis por recolher fossem a matéria sensível que nos põe à prova. Ninguém quer subir a palco, onde tudo se mostra à mercê da tempestade que vier.

As tempestades devoram os espíritos que deixam de ser à prova de contingências. Talvez tudo não passe de um logro: a existência de contingências é a matéria-prima para a incerteza que nunca pode deixar de ser inscrita nas equações que definem as vidas. As tempestades inesperadas são as que formalizam a contingência. São a contingência em nome próprio.

 Intuem-se os esconderijos que possam ser o elixir contra as tempestades que não se puseram antecipadamente de aviso. Nos esconderijos é possível escapar aos vultos que através das tempestades povoam a paisagem com as vísceras à mostra que se revolvem na nossa fragilidade. Salvam-se os que forem a tempo do esconderijo. Os outros ficam a favor da tempestade. No final, quando a tempestade tiver desarrumado o que estiver ao alcance da sua mão, faz-se o inventário das baixas. É para isso que servem os afortunados que conseguiram encontrar esconderijo a tempo.

Esses esconderijos são feitos de paredes absolutas. São paredes absolutas porque outorgam a proteção contra a desarrumação das tempestades. Noutros lugares, onde as tempestades têm a assinatura do Homem, as paredes são absolutas quando escondem as vítimas da desumanidade dos algozes. Sempre que forem um cais onde há vidas por continuar, as paredes absolutas são o tratamento possível contra as contingências irredutíveis. Sejam elas determinadas pela natureza sem freio, ou por Homens que medram na desumanidade.