29.1.21

Cansei de ser sexy (epílogo de um D. Juan em vésperas de reforma)

Cansei de Ser Sexy, “Let’s Make Love and Listen to Death From Above”, in https://www.youtube.com/watch?v=7agPOt1XZz8

Um tempo extingue-se. Todos os tempos se extinguem. Uns, a tempo. Outros, a destempo. Pensava nisto, nesta platitude, enquanto se observava ao espelho depois do banho matinal. O corpo já não é o que era. As adiposidades ecoavam pelo espelho fora. Se exagerasse, diria: as adiposidades transbordavam o espelho. A lisura da pele perdera-se. No rosto, as rugas acentuavam-se, marcando a passagem dos anos e (não o queria admitir, por ir contra o código ético dos boémios) o desregrar. Os cabelos agrisalharam-se e começavam a escassear. As capacidades já não eram as de outrora. “O corpo está a começar a ficar gasto”, reconheceu, a custo, dragando a melancolia para o resto do dia.

Tudo era cansaço, por aqueles dias de introspeção. Por fortuna, não notava a capitulação do viver. As coisas tinham de ser separadas. Como acontece nos livros, que são divididos em capítulos. A exaustão do corpo não se contagiara ao demais. Continuava intensamente ativo nas faculdades mentais – ou, pelo menos, assim queria que fosse a bitola afivelada. Não se dispersava em distrações, não sentia gasta a concentração, e permanecia leal aos exercícios mentais que prolongavam estas capacidades. Uma mnemónica para memória futura. Mas o resto enfraquecia. Não podia resistir a uma certa nostalgia precoce que invadia o palco. 

“Cansei de ser sexy”, protestou. Como se, em jeito de redenção, batesse vigorosamente no peito à medida que as sílabas se arrastavam. É que as pessoas, as pessoas que não são sexy, não sabem do ónus de ser sedutor. É preciso ser constantemente simpático. Às vezes, nos dias maus, a simpatia é a maior das dores. É preciso ser constantemente imaginativo. E nem sempre a fonte da criatividade é generosa. É preciso lidar com múltiplas solicitações. Muitas vezes acontece que a satisfação das múltiplas solicitações obriga a fazer opções, com o elevado preço a pagar na moeda franca do dilema. 

A cura do tempo precata os males que ele pressagia. Era assim que, já o podia declarar, “outrora sexy”, agora se situava. Não contassem com ele para os jogos de sedução. Não estivessem à sua espera para alimentar o filão da boémia. Que não esperassem pelo seu contributo para a miscelânea de corpos e de lugares em simultaneidade, ou para a voragem de corpos assestados nos muitos palcos demandados. 

O espelho, à saída do banho matinal, fora a sentença. “Agora, deixo o veneno de parte.”

28.1.21

À tona

Três Tristes Tigres, “À Tona”, in https://www.youtube.com/watch?v=89O9ULMrv-M

O casaco de couro puído, minimamente roto numa manga, abriga-o do vento noturno. “Já não há gente a ocupar a noite, como dantes”, lamentava, enquanto fugia entre as sombras para não ser apanhado em delito. O sono estava em atraso. A insónia atirou-o para a rua. Era das raras testemunhas da noite fantasma.

Não sabia por que o sono estava em atraso. Não havia frases que o condoessem, atritos com os dias recentes, nenhuma angústia existencial, ou preconceitos castradores. Não tinha querelas. Não sabia se não era exigente para não exibir ausentes padecimentos, ou se a vida era pródiga consigo. “À melhor de cinco, como nos jogos de ténis: à melhor de cinco, vai ser o critério para prosseguir o exílio noturno”, jurou aos deuses esquecidos. Seriam no máximo cinco encruzilhadas e um pouco de acaso a determinar a rota da noite. Corria o risco de ser apanhado em falso. As forças policiais eram exigentes com os contrafatores que saíam de casa à revelia.

Esgueirava-se como os gatos vadios, saltando de soleira em soleira, abrigando-se da chuva incessante, aninhando-se atrás de um carro estacionado quando percebia as luzes feéricas de outro carro em aproximação. Toda aquela adrenalina era contraproducente. Se saíra de casa, foi porque a insónia dera instruções nesse sentido. A demanda noturna seria como um medicamento tomado para convocar o sono. Só que a infração contínua causava um sobressalto interior. Era o contrário do precisava para a convocatória do sono. Não se acanhou. A excitação dos sentidos compensava. Já há tanto tempo que não sentia as labaredas a exsudar o gelo entediante. Era a supressão deste sentido em falta que o apoquentava. Só que não sabia. 

Por fim, sentia-se vir à tona. Deixava de ser a ínfima fração do que em si se encerrava. Não queria sondar as desfeitas que o conduziram à apatia – não podia perder esse tempo, precioso que era. Depois de se sentir a vir à tona, a plenitude não se gorou. Era como se o mapa dos lugares não chegasse para a estatura da sua silhueta. Agora que estava à tona, não podia deixar de ser toda a colheita de si vertida. Já fora tempo de mais a fingir, a obedecer a costumes, a ser mandado, e ele submisso, a deitar-se à hibernação que fazia com que fosse apenas a ínfima fração do que em si se encerrava. 

Agora, que emergira à tona, era todo ele em seu esplendor. Sem contas a prestar, sem o medo a açambarcar as fragas do tempo, sem fantasiar com palcos fátuos onde as personagens são o idioma vivo do fingimento. Ele, em todo o seu esplendor, sem vernizes ou cortinas de sombras, desembaciado, luminosidade singular. 

27.1.21

PJ

Marilyn Manson, “Personal Jesus”, in https://www.youtube.com/watch?v=Rl6fyhZ0G5E

Deixa a decadência ser o seu próprio ácido sulfúrico. Não deixes que os sobressaltos se transformem em atos trágicos sem pano de fundo. Na dúvida, recorre ao teu PJ (personal Jesus). O PJ é gratuito! Ele não desaprova o teu gesto de oportunismo. Pois há para cada um de nós um PJ que sabe ser sua função amparar as angústias e as crises existenciais e servir de cais para as confissões que exorcizam descaminhos pretéritos. O PJ sabe que não lhe cabe estar ao teu lado nas horas boas, que nessas tu não te lembras de o convidar.

Magnânimo, o teu PJ está sempre de atalaia. Por mais que julgues que está distraído, o PJ segue-te com cuidado. Não te insurjas contra o PJ se um contratempo desarranja um dia, ou se és vítima de uma iniquidade, ou se os planos metodicamente cerzidos se estilhaçam sem razão aparente. Da mesma forma que não convidas o PJ para comungar as tuas proezas e os momentos em que te sentes gratificado, não queiras que ele te tenha como marioneta e tu sejas apenas um boneco inanimado, comandado pelo PJ através de um controlo remoto, na irrelevância da tua vontade.

Poderás dizer que as pessoas dizem constantemente “se deus quiser”, o que deixa à mostra, nas entrelinhas, que tudo o que acontece e desacontece é produto de intervenção divina. Mas aqui falamos do teu PJ, o embaixador de deus naquele plano intermédio entre o céu e a terra onde o PJ (todos os PJ) tem residência – ali algures na estratosfera, para não correrem o risco de, distraídos com as urgentes incumbências, chocarem com aviões em altitude de cruzeiro. Não queiras imputar responsabilidades ao teu PJ quando invocas o seu superior hierárquico. É que, além do mais, dizer “se deus quiser” não passa de uma expressão idiomática.

Por acaso sabes quando é o aniversário do teu PJ? Alguma vez lhe ofereceste a prenda preceituada na ocasião? Nunca pensaste na ingratidão em que medras quando rogas a intervenção do PJ nos momentos maus que te deixam melancólico ou desarmado ou com vontade de capitular? Alguma vez convidaste o PJ para a tua festa de aniversário, para o casamento, para uma celebração de um feito qualquer?

Estas injustiças teriam o condão de fragilizar os PJ, não fossem os PJ encorpados, psicologicamente coriáceos e à prova de insensibilidade dos seus protegidos. Eles nem precisam de sindicato que defenda as suas causas.

26.1.21

Desacontecimento (short stories #294)

Perfume Genius, “On the Floor”, in https://www.youtube.com/watch?v=ln4S83JeY2Y

          Parece repetente no labirinto dos pesadelos. Onde se repetem, incansavelmente, pesadelos que desarrumam o sono. Ao acordar, fica tudo em paz. Era só um pesadelo. O mesmo pesadelo que, de tão recorrente, devia ter sido erradicado da categoria de pesadelo. Haveria forma de o reclassificar. Passaria a desacontecimento. Como aqueles incidentes que deviam ser banidos da memória – ou, se a ousadia não fosse inacessível, o tempo viesse atrás para impedir o acontecimento de ter acontecido. Entrando noutro labirinto de arcadas fechadas, onde a inteligibilidade das palavras se perde no ar pesado que dissolve a lucidez. Seria uma espécie de limbo, a pergunta constantemente a ser feita: “o acontecimento aconteceu?” Enquanto perdurasse a indecisão, enquanto a pergunta continuasse órfã de resposta, um lugar deserto, irrepresentável em mapas, seria dicionário dominante. Uma certa nebulosa tomaria conta da memória, escurecendo a lucidez. Durante o limbo, não haveria modo de garantir o acontecimento, ou que se saldou por uma miragem que o remete para desacontecimento. Talvez que a vontade seja o critério para separar as águas e entronizar uma ilação sobre se o acontecido aconteceu ou se apenas se franqueiam as portas do ermo labirinto onde, em forma de sortilégio, os acontecimentos são reduzidos à classe de desacontecimentos. Apagando da memória todas as camadas onde as arestas do acontecimento assim sonegado se enquistavam. Seriam escusadas as advertências sobre o filamento do logro que adere às paredes do labirinto. Seriam escusadas as admoestações sobre a falaz desconsumição por acontecimentos que se peticionou não terem acontecido terem caído na reclassificação de desacontecimentos. A memória propositadamente turva inclina-se para o cenário mais favorável (ou, dir-se-ia, o cenário mais cómodo). Ao cabo da ablação da anamnese, o próprio tempo seria reinventado. Para servir de cais ao patíbulo onde o labirinto das reconsiderações assenta. 

25.1.21

E se?

Bill Callahan, Bonnie Prince Billy & Ty Segall, “Miracles”, in https://www.youtube.com/watch?v=9TzRkOR7kU4

E se não fosse âncora, mas antes exílio, a claraboia que se oferece de véspera?

E se não fosse medo o ciciar perpétuo que rima com as manhãs embaciadas?

E se não fossem promessas que compõem os férteis campos das ilusões?

E se as teias não trepassem pela pele suada e se fizessem ouvir nas juras emaranhadas?

E se um silêncio fosse apenas a tradução das palavras desejadas?

E se a armadura que avaliza a fortaleza que somos fosse encimada por frágeis ameias e, ainda assim, constituísse privilegiado amparo contra as invasões?

E se a alma pura coubesse na deserção?

E se a meias com a teimosia falasse mais alto uma inacabada fragilidade?

E se todas as viagens deixassem por revelar muitos mundos à espera?

E se as palavras perdessem os acentos sem ficarem órfãs?

E se fugíssemos para um lugar que só pertence ao nosso dicionário?

E se o estipêndio da matéria roubasse ao inverosímil a sua garantia?

E se trouxéssemos da noite o luar e com ele caiássemos a própria alvura?

E se virássemos do avesso as costuras das palavras para as sabermos insubmissas?

E se não fosse perfumado o exorcismo das almas com a maresia destronada pelo entardecer?

E se na combustão dos corpos nos soubéssemos sublimes?

E se não houvesse conspirações a destronar a lucidez?

E se às horas mortas emprestássemos o resplendor que nos completa?

E se ao tempo vindouro não houvesse juras afiveladas?

E se dos contratempos se angariassem as forças expostas?

E se de fraturas pretéritas medrasse a vigilância da alma?

E se às horas contadas devolvêssemos os juros da felicidade?

E se no debruar do horizonte fosse descoberta a centelha inesperada?

E se num oráculo sem tempo fosse desenhado o limite do passado?

E se num apertado abraço se ordenassem as preces que substituem contratos?

E se à espera das incógnitas traduzíssemos a equação em estrofes emolduradas nos rostos vivazes?

E se a árvore centrípeta reservasse uma elegia adiada?

E se nos poros das mãos se contivesse o húmus da angústia?

E se amanhã fosse apenas a espera pelo amanhã?

22.1.21

Nem todo o chão dá uvas

TV Priest, “Press Gang”, in https://www.youtube.com/watch?v=XMT9f_apQU4 

“Inventaria-se a safra antes de se saber dos pergaminhos da terra.”

Descolorida sintaxe, esta que transfigura a medula e torna os seres em ilusões de si mesmos. A passerelle compõe-se de figurantes desarmados pela indigência. Não passam de caricaturas de um escol sem pertença. Em terra assim lavrada, só se colhem as pedras que vierem à superfície.

“Se formos ao chão e trouxermos um pedaço de terra nas mãos, tornamo-nos tutores do devir.” 

Não somos o que nos apetece ser. O material fundente que se apodera da noite contamina-se no resto do tempo. Mas somos tutores do nosso devir. Não fugimos do inventário que nos filia. Somos intransigentes com os disfarces que, malévolos, combinam com os conspiradores a tomada de praças fortes. Não fugimos do lugar onde estamos (sem ser o geográfico sentido da palavra). Porque sabemos da lavra de que somos.

“Provavelmente, mudando de sementeira, aparecemos com outro rosto.” 

Só se o magma de que somos feitos se traduzisse numa coisa diferente em virtude de uma semente variegada. Dir-se-ia: se a lava trouxer outra cor, comparecemos como produto de um enxerto de temperamentos. Mas coabitamos numa identidade sem paradeiro. 

“É das marés que fugimos. Não é dos outros que se insinuam em nós. Pois os outros não assimilam as marés que nos afligem.” 

Poder-se-ia sucumbir ao apelo do rosto coberto por fuligem. Continuaria a ser o mesmo rosto. As evasões encenadas deixam-nos desarmados. Se julgamos resistir às provações, acabamos suas presas prediletas. E só o saberemos depois de percebermos que a liberdade se extinguiu no cárcere onde somos aprisionados. A vontade deixa de ser uma manhã à espera de derrotar a noite. É a treva contínua.

“Nem todo o chão está inscrito no oráculo da fertilidade. Há terra não arroteada, terra baldia, terra inacessível, terra indescritível. Não perdem valor por essas circunstâncias.” 

Todas as palavras encerram a sua beleza. Até as que se enfeitam de uma beleza escondida. Se somos terra agreste, que não se apodere de nós um manto lutuoso. As paisagens inóspitas são decantadas por poetas e músicos e pintores. A sua bruta natureza não as amesquinha. Apenas denuncia a sua feição indomável, a expressão máxima dos lugares que os Homens não conseguem colonizar. 

São as terras que não dão uvas e, todavia, pertencem ao ouro de todos os tempos. 

21.1.21

A retalho

Dry Cleaning, “Scratchcard Lanyard” (live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=zyjuJ6jLsxA&pbjreload=101

O perfume a jasmim aplaca o dia mau que se pôs. A sucessão de dias soalheiros, embora frios, terá feito anestesiar o que do inverno se padece (descontado o frio, uma vez mais). Nota-se: os cenhos que desarrumam as ruas, como se as pessoas seguissem, contrafeitas, no caudal do dia chuvoso.

Consulta-se o boletim do tempo para os dias vindouros. Não se espera o regresso do sol tão cedo. As pessoas vertem a cabeça no chão, esmagadas pelo peso plúmbeo do céu tomado pelas nuvens cerradas. À medida que os dias sucessivos de chuva se amontoam sobre os corpos pesados, as pessoas combinam trazer apenas os seus retalhos. Guardam o melhor de si para os dias soalheiros. Equivocam-se: se apostam a preferência nos dias povoados pelo sol, deviam pressentir o sol como a centelha que os faz rimar com um espírito afortunado. Escusavam de esperar pelo sol para de si darem o melhor, que o sol (ao que parece) já é essa quimera.

Melancólicas, arrastando os corpos contra a intempérie, afundam-se com a luz sombria que não chega a divorciar-se do dia. Dizem-se a retalho, propositadamente. Não querem exibir o melhor de si se o dia chuvoso não quadra com elas. Avançam contra o tempo como se o tempo contasse a triplicar. É como se o vento tempestuoso, que atira bátegas de chuva contra os seus corpos ensopados, conspirasse; e as pessoas não querem ser cúmplices de uma conspiração de que são vítimas. Escondem o olhar radioso. Escondem os rostos lustrosos. Mostram uns contidos fragmentos do que são. Talvez tenham medo que a tempestade consiga arrancar o melhor que nelas se encontra. Ou medo que a tempestade as dissolva.

Como gratificação dos dias soalheiros que são um prémio raro em invernos sacrificiais, as pessoas elegem os dias invernais como dias maus. Desconhecem a poesia que se disfarça nos interstícios de um dia medonhamente tempestuoso. Recusam, por preconceito, levitar no sortilégio de um dia carregado que mantém a claridade refém. Não são vultos que se escondem nas fundações de um dia chuvoso. Não é a artrose do pensamento que adere ao desarranjo dos elementos à mercê da borrasca. É o perfume do jasmim que desata os nós de um dia que falsamente se estabeleceu como dia mau. Nem que seja do jasmim que há em memória.

O mau do filme em constante rodagem não é a chuva. É o preconceito que a difama.

 

20.1.21

O estatuto médio (short stories #293)

Sleaford Mods (ft. Billy Nomates), “Mork n Mindy”, in https://www.youtube.com/watch?v=iKcbSOjIzjQ

          Ajanotam-se, os aspirantes ao desanonimato. A fatiota mais graciosa, compondo o cabelo ao milímetro e ensaiando o discurso, com as vírgulas no sítio e, de preferência, escassa adjetivação e moderado uso de advérbios de modo. Os tais “cinco minutos de fama” não podem ser desperdiçados com uma entrada de sendeiro. Tudo tem de estar à beira da perfeição. Poderá não haver outro ensejo. Na hipótese de ser gorada a tentativa de subir o corrimão da fama, sobra o anonimato. Podem ficar no umbral da melancolia, entendida como a patologia de quem não consegue sair da cepa torta. Não percebem, estes aspirantes, que o anonimato é o que mais os aproxima de um dom incomensurável. Não tomam consciência, talvez por desconhecimento de causa, que o descaimento dos holofotes sobre as suas pessoas, uma vez extraídos ao estertor da indiferença, termina com as possibilidades de escaparem aos olhares intrusivos que os “conhecem de algum lado”. Se pudessem ir ao estrelato e regressar ao conforto do estatuto médio, dissolviam a ambição de se tornarem públicas figuras. Enquanto figurantes da imensa mole indiferenciada, são mais um entre tantos. Sem outros olhares espiolhando o que fazem e o que dizem. Sem se prestarem aos juízos que sobre si impendem, com a descomodidade de verem outros sentenciarem sobre as suas vidas. Se conseguirem singrar na imodesta proposta que se atribuem e o filão das públicas personagens conseguirem engrossar, sosseguem que não é deformidade definitiva. Na intensa efemeridade do hodierno, tão depressa estão nas bocas do mundo como caem no oblívio. Nessa altura, resgatam o estatuto médio. Podem voltar à rua sem terem olhares estranhos a invadi-los. Podem, sem receios outros que não seja a prestação de contas que se autoimpõem, desandar das convenções. Não digam que o estatuto médio não é o mais apetecível.

19.1.21

O bolça desvalores

Beck, “Everybody’s Gotta Learn Sometime”, in https://www.youtube.com/watch?v=PaI1sLqFOuE&pbjreload=101

        (Qualquer coincidência com uma personagem que enfeita gigantescos outdoors e contamina o espeço público não será acidental)

Há um terreiro empestado de pagãos, no que os pagãos representam de chicória num lugar onde se procuram as melhores linhagens de café. Esse terreiro é um pântano que prospera até quando se atravessam épocas sucessivas de estiagem. No pântano, ladeado de jacarés esfaimados que não hesitam em lançar a dentadura às presas ingénuas, reina o bolça desvalores.

O bolça desvalores é um apóstolo da maledicência. Não sossega enquanto não espalhar o caos e atirar impropérios de variado calibre aos que se lhe opõem. Passeando uma pose triunfante, a do badernista que se autoconsidera muitíssimo na ordem dos humoristas e que se autocertifica numa elevada posição na hierarquia dos inteligentes. 

Todavia, sobressai a lucidez que da sua putativa inteligência diz ser uma mera contrafação. O bolça desvalores ensanguenta, e com sangue fétido, o terreiro imundo. São de sangue pútrido as palavras vis com que ultraja adversários. O terreiro já era imundo antes de ele subir a palco e contracenar no contrabando de valores. Não ora; arrota chistes dignos de um primata, vomita dizeres que julga apoucarem os adversários quando, no fim de contas, são o espelho fidedigno do autor. 

Atrás de si, granjeia um séquito. Ele, o patriarca dos desvalores, e o séquito, sublinhadores oficiais da aleivosia que sobre a confraria se abate. A cada exibição soez do bolça valores, a cada incursão ofensiva sobre um adversário, a horda aplaude-o com excitação onanista. Se os atingidos cometem a imprudência de responder à letra, erguem-se uma maré de fundo e uma cortina de fumo, deitando o bolça desvalores num presépio que serve de cama para as grandes vítimas deste mundo inexplicável. O opróbrio pertence sempre aos outros, que o olvido sobre a primeira pedra atirada pelo bolça desvalores pesa sobre o demais. 

A emergência do bolça desvalores atesta um mal-estar que estava hibernado. Atrás do bolça desvalores pululam os seus pajens que, dantes, fingiam moderação enquanto nidificavam noutros poisos. A zoaria em volta do bolça desvalores contamina o lugar com um odor duplamente putrefacto: o do lugar em que frui o bolça desvalores e seus seguidores e o do lugar onde se normalizam outros apóstatas, de linhagem oposta, que também não cultivam os valores ofendidos pelo bolça desvalores.

18.1.21

Não contem com a nossa apatia

Rhye, “Come in Closer”, in https://www.youtube.com/watch?v=cG2SFddXgBk

Não é sonho, que os sonhos não se materializam em coisas tão mundanas. É um desejo alinhavado na frustração de quem se sente desconfortável no meio vizinho.

A demissão coletiva é uma doença que agrava a patologia mais geral que se abateu sobre o sistema. As pessoas não estão contentes com o que têm, ou então as vozes vivas dessa insatisfação não corporizam o sentir geral, que deve estar cerzido no silêncio de uma putativa maioria. Olhando ao grau de desistência na comparação de diferentes momentos, o coro dos demissionários tem vindo a aumentar. As maiorias que oferecem a caução aos vários regentes que exercem mandato transfiguram-se numa minoria. Os que fogem do sistema participativo exercem um direito: o direito de estarem à margem. Ignorar o coro crescente de pessoas que se coloca voluntariamente à margem é das maiores hipocrisias das personagens com protagonismo no sistema instituído.

Eu gostava que a alienação fosse capitalizada numa qualquer forma de intervenção que sinalizasse um clamor não menosprezado pelos protagonistas. Gostava que os que olham para o lado e interiorizam que são meros agentes passivos do processo mudassem de comportamento. Que não persistissem na insensibilidade que se vira contra si mesmos. Que se insubordinassem, pela voz que fosse, quando argumentam em silêncio em oposição às decisões que julgam ser contraproducentes. Uma qualquer forma de intervenção cidadã para que os protagonistas percebessem que não estão à margem de um escrutínio mais vasto (pois que o escrutínio a que se submetem é frágil, banalizado nos corredores do atual processo, repleto de mútuos rabos de palha).

Podíamos vociferar, com voz escrita num diadema audível, que não podem contar com a nossa apatia. Podíamos passar por cima dos terríveis mecanismos de censura indireta que vagueiam no espaço vizinho de cada vez que alguém “ousa” (na perspetiva de quem defende os regentes) terçar uma crítica às decisões tomadas ou à passividade escolhida. Esse seria o primeiro passo: não ceder à vulgata dos partidários do reino estabelecido, escandalosamente salazarenta, nem ao estigma do pensamento binário: pois que nem os regentes são à prova de crítica, nem a formulação de uma crítica nos coloca nos quadrantes dos que oficialmente se opõem aos regentes. 

Para não sermos reféns desta apatia, devíamos despertar de um torpor que nos amordaça. Devíamos ser cultores da informação, sem a qual a crítica não pode medrar. Devíamos ser rigorosos no escrutínio de quem nos traz a informação, para separar a informação fidedigna da informação manipulada. E devíamos sussurrar aos ouvidos dos regentes e de seus pajens, mas de forma categórica: “não contem com a nossa apatia”.

15.1.21

Dar a cara, ou a generosidade disfarçada

Mogwai, “Ritchie Sacramento”, in https://www.youtube.com/watch?v=VWjzlJEmmxM

Mote: “Apareço aqui, diante de vós, a dar a cara por estas medidas.” (Um primeiro-ministro de um lugar irremediável, um tanto desorientado a tentar disfarçar a desorientação com uma bravura que fica bem no retrato)

Não será a prosa sobre o dito primeiro-ministro, nem as suas táticas de sobrevivência que parecem sobrepor-se à governação do lugar; nem apanharão o autor da prosa no lodo onde campeia a batalha política, numa lógica binária que parece ser uma contaminação (de comportamentos) dentro da contaminação geral (da peste e do medo adjacente) – pois que aos defensores do primeiro-ministro parece intolerável que haja quem o critique, servindo-se da muleta de um presidente em funções que convoca a “unidade nacional” como imperativo circunstancial, logo interpretada como pretexto para silenciar quem faça soerguer uma crítica voz. Comentário único aos fétidos tempos de peste por dentro da peste: mal anda um lugar assim.

De tal lugar se diz ser habitado por uma gesta de gente brava. A coragem ficou tatuada na audácia das conquistas além do mar demandado e persistiu na memória coletiva, com variações temáticas. Sempre gostámos de ser intrépidos anões a desafiar adamastores inomináveis; foi a compensação pela nossa pequenez. Por exemplo, os bravos que lidam touros, passando por cima da lide desigual, são uma das manifestações modernas (melhor seria dito: atávicas) da valentia que arregimenta hostes. 

Dizer “aqui estou, a dar a cara” costuma acontecer quando quem o diz está refém de uma fragilidade de que se quer desembaraçar. É um truque retórico para virar o jogo do avesso, saindo por cima quando se salda a contenda. Para um mendaz, seria mais fácil continuar acantonado no esconderijo. O corajoso dá a cara. Espera, ao menos, que o louvem pelo ato corajoso. 

E a coragem, para além de ser um disfarce, resolve o quê? Mesmo quando a coragem vem abraçada à humildade da aceitação do erro, não resolve nada. “Dar a cara” é um eufemismo do habitual arrependimento, quando a lucidez serve de caução à admissão do erro. Mas o arrependimento – como o desassombro da coragem de quem “dá a cara” – não remedeia o erro. “Dar a cara” é inútil. Quem aparece bravamente a dar a cara está protegido pela cápsula de um monólogo. Não se expõe às possíveis vítimas do erro cometido, que poderiam querer singrar a vingança em direto e diretamente na cara do arrependido.

Dar a cara desta forma e neste contexto não passa de coragem altiva. Uma apólice de seguro para quem se penitencia, mas um logro que atira os olhares para futuras núpcias, compondo uma imagem para memória futura. Dar a cara nestes termos nem devia ser interpretado como valentia: é um adiamento e uma fuga ao passado. Não passa de bravura marialva de quem lida um touro numa lide desigual. 

14.1.21

Uma medida LSD do tempo resolve alguma coisa?

Max Richter, “Dream 3 (in the midst of my life)”, in https://www.youtube.com/watch?v=AwpWZVG5SsQ

Uma manada (parecia de búfalos) atravessa a estepe, correndo furiosamente.  Parece que as reses fogem de algo. Pisoteiam o que está no caminho. À sua passagem, a peugada da destruição; os bichos são de tonelagem apreciável. A poeira fica a adejar. Parece que o tempo foi suspenso na exata medida da poeira que preveniu o ocaso. A penumbra foi travada pela manada em sua fuga estrepitosa. Umas léguas depois, a alvorada desmente o estado lisérgico.

A chuva copiosa interrompe as festividades. Os nefelibatas estão acostumados à correspondência entre as festividades e a rua. Decidem: enquanto a rua estiver colonizada pela chuva conspirativa, as festividades são adiadas. No tempo que medeia as duas instâncias, os nefelibatas emprestam-se ao ócio. À espera do reatar das festividades, não podem dedicar-se a um estado mental que se lhes opõe. O tempo entrou num túnel etéreo à espera do desembaraço da chuva. O calendário continua a ter o seu consuetudinário avanço.

O prazo para o termo das negociações está quase a chegar. Os negociadores não se entendem e a bravata arrasta-se. As delegações não querem comprometer o propósito da reunião. Mas ninguém quer dar o braço a torcer. (A fraqueza diminui a delegação e o país perde cotação na bolsa de influência das nações – e os súbditos não toleram mandantes fraquejados.) No último minuto, o impasse persiste. Manda-se parar o relógio para permitir a continuação das negociações. O relógio congelou: os ponteiros ficaram emoldurados, como numa fotografia. Mas o tempo não deixou de passar. Os mandantes, de tão poderosos, ordenaram ao tempo que se interrompesse. O procurador do tempo naquela solene sala (o relógio congelado) obedeceu às ordens. Fora da sala, ninguém mandou parar os relógios. 

Diz ele, com nostalgia do futuro: “ah! como gostava que o meu relógio parasse”, dando réplica à mulher ao lado, que, admirada, reparou que o seu relógio tinha parado: “deve ter ficado sem pilhas”. Ela põe-no de prevenção: “o relógio parado não resolve nada. O tempo continua a passar em obediência às suas regras”. A ilusão do tempo suspenso consome-se na verificação do tempo que foi esbanjado. Durante o parêntesis do tempo nada se passa, nada se pode fazer e as palavras ditas não ficam seladas em ata. Ficamos reféns dessa desmedida. 

A ilusão do tempo anestesiado é a sua medida LSD. 

13.1.21

Já ninguém pergunta pelo paradeiro de uma rua

Idles, “Reigns”, in https://www.youtube.com/watch?v=fO11I2v4JOY&pbjreload=101

            (Vamos fazer de conta que inventaram o Google Maps)

Já ninguém pergunta onde é uma determinada rua. Ninguém pergunta, a quem passa, como se chega a essa rua. Somos conhecedores da topografia das cidades e das veias que são as estradas, e em vez de mapas transportamos bússolas embutidas no corpo. Pois à voz não damos o uso dos antepassados, quando o desconhecido era desconhecido e para o tirar da penumbra era preciso dar corda à voz para da voz estranha sabermos desenhar o caminho até ao destino procurado.

Agora, os cicerones passaram a ser letra morta. Foram dispensados do serviço. Dantes, brilhavam com a galhardia com que iluminavam o desconhecido aos forasteiros, tirando-os das trevas do desconhecimento e possibilitando que o desconhecido passasse a ser conhecimento para os forasteiros. Se havia maneira de se gabarem, era quando alguém deles dizia conhecerem o lugar como as palmas das (suas) mãos. Pois convencionou-se que todos conhecemos as palmas das mãos de olhos fechados, o que é uma impostura: quem consegue desenhar, sem para elas olhar, as palmas das próprias mãos?

Agora, que trazemos bússolas embutidas no corpo, as palmas das mãos deixaram de ser o selo da cartografia. As linhas que desenhavam as mãos foram apagadas. Pois hoje ninguém precisa de conhecer os lugares como as palmas das mãos: seria sinal de desconhecimento. Se olharmos para as mãos bem abertas, reparamos que são lisas as palmas. Nem para reterem o suor elas servem, agora que foram desapossadas da cartográfica linhagem.

Uma bússola embutida no corpo: os dispositivos eletrónicos onde se aloja a bússola vivem paredes meias com os corpos, são os seus habitantes-forasteiros número um. E como as pessoais bússolas servem de socorro na hora de obter a informação sobre um destino, deixamos de procurar cicerones e de usar a voz para lhes perguntar sobre o paradeiro de uma rua ou de uma estrada. A máquina despersonaliza-nos, outra vez. Substitui-se aos mecanismos humanos da interação entre iguais. Agora, falamos com uma máquina que se colou aos nossos corpos e já não se desaloja, até, das almas. Deixámos de falar como os nossos pares. Voltamos a ser o nosso próprio dogma.

(Vamos fazer de conta que voltava a não haver Google Maps e GPS ao preço da uva mijona: talvez estivéssemos de regresso à voz e aos nossos pares. Os compêndios mostram que muitas amizades – e uns quantos amores – se habilitaram à custa dos forasteiros desorientados que precisaram do fio de prumo dos nativos.) 

12.1.21

Dos usos da casaca

The Limiñanas (ft. Emmanuelle Seigner), “Shadow People”, in https://www.youtube.com/watch?v=CWdeZ4l6xtI

A casaca tão apessoada, vitrina de elegância, sino da solenidade que uma ocasião exige. É a casaca de grilo, com a sua extremidade afunilada a pender pelas pernas abaixo, entrecortada como se fizesse lembrar a cauda de um grilo. Possivelmente os argonautas da moda, quando conceberam a casaca, fizeram esta associação de ideias: o grilo é um bicho nobre e a casaca para os solenes ensejos deve replicar a solicitude do grilo. Se não foi esta a associação de ideias, fico sem saber o que ditaram as sinapses dos argonautas da moda.

Os diplomatas usam a casaca nas vernissages. Os maestros ostentam a sua sumptuosidade a meias com uma casaca de grilo. Há bailes de gala que obrigam os varões a introduzir o torso numa vistosa casaca. Não se sabe se os cobradores de fraque visitam a amedrontada clientela usando estas casacas; não é provável, a moderna versão do cobrador de fraque não leva a expressão à letra, por ser necessário empregar argumentos persuasivos que se socorrem da razão da força, ambiente incompatível com a solenidade da casaca (a casaca seria um estorvo para a função musculada dos cobradores de fraque). 

Mas a casaca também serve para ser cortada. É passatempo da predileção de muita gente. Não podem ver uma casaca e dão o seu melhor para a esfarrapar de cima a baixo. São meticulosos a cortar na casaca: são penhores de uma destrutividade construtiva (ou será um construtivismo destruidor?). Dir-se-ia serem opositores de um certo escol que se faz passear na linhagem de uma casaca. Serão tenazes defensores da igualdade, cortando a esmo as casacas daqueles que as envergam para os nivelar pelo entristecimento dos que não a conseguem vestir. E ainda há quem abjure os cortadores de casacas.

Ser cortador de casacas é uma empreitada espinhosa. É preciso saber por onde começar; como terçar o corte para a casaca se ir desfazendo sem remédio; no exercício da função, o cortador de casacas deve ser implacável: não pode deixar pedra sobre pedra, desfazendo tudo a pó. Há quem diga que são o pior inimigo que se pode ter. Os cortadores de casacas exercem pela calada. Os que trazem uma casaca vestida, depressa dão conta que ela se esfiapou e, talvez, só sobre a nudez. E a nudez não é coisa de se passear em público.

11.1.21

Pelo mar adentro (short stories #292)

Rita Vian, “Purga”, in https://www.youtube.com/watch?v=hLCobrmB710

          Uma certa lágrima orgânica toma conta do céu: não demora e a chuva abate-se para tingir de leveza as almas exponenciadas pelo telúrico pesar. Não digo que não vá a um lugar. Não digo que enjeito uma certa palavra, que a voragem do vocabulário e a impureza dos sentidos assim o determinam. Desamarro a âncora e ordeno-me ao movimento. Decidi: vou pelo mar adentro. Desfazendo o medo que hibernava a vontade. Juntando-me aos poros das marés, por sua vez em comandita com os ventos dominantes. Não serão as tempestades que me travam. Não serão as ondas temíveis. Conjugo o verbo quimérico na manga de onde me faço trunfo. Não tenho a certeza se preciso de ser trunfo; ao meandrar pelo desconhecido, que sejam precatadas as possibilidades. Sigo pelo mar adentro e já não consigo saber do paradeiro que em terra deixei. Ou de terra alguma. Podem ser dias a fio numa demanda contínua e o olhar desabituar-se de escrutinar terra firme. O mar passará a ser a minha terra. Não me constituo náufrago. Posso estar errante, mas não me constituo náufrago. Prossigo pelo mar adentro, mas mantenho os pés firmes no chão que ele é. Desautorizo conspirações. Cesso a tutela dos ultrajes que, fáceis, se urdem na matéria gorda, indesejada. Ultrapasso as intempéries. As noites sucessivas. O luar, quando o céu se deixa caiar pela sua claridade. Cauciono as manhãs que me dizem terem sido maiêuticos os sonos de véspera. Só preciso das mãos para continuar a cavar um fio no destino do oceano atravessado. Sou eu, a memória exilada, eu que desenho as palavras malditas nos lugares ermos e sem gente. Trago em mim o estirador mental que açambarca a poética. Mar adentro, dedicando estrofes às milhas que ainda não sei. Sou esse sortilégio de mim mesmo, sonho estimado enquanto a manhã não destrona a noite agitada.

8.1.21

As duras penas

Tv on the Radio, “Staring at the Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=oHrTOQ18yzU

São pesadas, as manhãs. Mesmo as que se emancipam do crepúsculo e, translúcidas, se emprestam à vivacidade das almas. Serão as noites desormidas, ou o jugo de pesadelos tentaculares, mas não tem à mão a lucidez que chegue para descrever quão fortunosa é uma manhã.

Se fosse indagado por vigias da integridade das almas, e se não fosse coibido pelo véu que mascara a vergonha (sempre tão hipotecado por ela), diria que são as francas dores de alma que o deixam exangue. Interiorizou as duras penas que se atribuiu em autojulgamento. Soube, em tempos, de um amigo que procurava amenizar as importunações que cerceavam o sono. Esse amigo sossegava-o: há almas transtornadas por padecimentos maiores, dizia. Desconfiava. Aquelas palavras soavam a indulgência sem corpo nem forma, um ardil para o extrair à vertigem pré-comatosa em que se encontrava. Como podia o amigo ter conhecimento de causa dos padecimentos que embaciavam a lucidez geral?

Tamanha amizade era contraproducente. Ensimesmou. Não precisava de comiseração. Talvez fosse melhor procedimento aceitar as duras penas a que se autocondenara. Resolveriam o amplexo de males que tiravam o sono e semeavam vultos iracundos nos pesadelos? Não sabia. Aceitava a punição, sem questionamentos. A punição tinha de ser severa. Para levar a pele, se preciso fosse, deixando a carne à mostra, para onde algozes sorteados entre os proponentes atitariam sal. Tinha de saber o significado (e o sentido) da carne viva.

Às duras penas disse sim. Com o rosto baixo: o lastro que trazia codificara a humildade. Ele não dava conta da linha de fronteira entre humildade e humilhação. Não o sabia, mas submetia-se a uma provação que configurava a humilhação. Em desnorte, refém da sua meação, tomava-o por humildade, enquanto recolhia o olhar na direção dos pés cansados. Disse sim às duras penas. E acreditava que um novo mundo, inteiro, estava à sua disposição. Para que ele costurasse os pontos cardeais. 

Às duras penas dá-se o rosto, o corpo inteiro, os interstícios da alma. Assim julgava. Não se espera que as duras penas ofereçam a redenção. Não se espera nada. Apenas as duras penas pelos extravios imoderadamente aquiescidos. 

7.1.21

& inteligência limitada

Idles, “War”, in https://www.youtube.com/watch?v=BLcM3fq6Quk

(Subsídio para uma contrição)

Não são iguais os alvéolos que tecem a fábrica do pensamento. Não são iguais essas capacidades (e contra esta desigualdade nunca poderão os teólogos da igualdade à força). Para duas pessoas, não são de igual dotação as sinapses que preenchem os espaços vazios entre dois acontecimentos. Não são iguais os capitais de inteligência. Uns prosperam na inteligência. Outros são-lhe eunucos, alguns em larga medida. Alguns disfarçam quão apedeutas são. 

O que deve ser proscrito são os juízos de valor que têm a desinteligência como apuramento. A jactância não é digna de quem se proclama inteligente por oposição ao néscio menoscabado. Motejar a ignorância alheia não é prova de inteligência; aproxima o seu fautor da ignorância que tanta espécie lhe causa. Quem é ínscio por ato volitivo?  

Os que nos achamos contemplados com uma (pelo menos) dose moderada de inteligência devíamos bater no peito pelas (certamente) muitas vezes que escarnecemos dos ignaros. Fizemo-lo para os apoucar. Não logramos saber que caíamos no mesmo plano raso. E não reparávamos que, como em tudo na vida, estamos inseridos numa escala. Há os que são mais inteligentes do que nós. Pela mesma medida que aplicamos aos apedeutas, os sobredotados podem troçar de nós, não nos admitindo no escol dos inteligentes. Se tomamos conhecimento do ultraje, podemos ser tomados pelo desconforto em que colocamos os que desdenhamos por os consideramos néscios. 

Uma vírgula pode fazer a diferença numa oração. Se quisesse criar uma empresa para fazer jus à inteligência dos sócios, podia chamar à sociedade “qualquer coisa & inteligência limitada” (sendo a inteligência o atributo a que os sócios queriam dar relevo no nome da sociedade). Seríamos, sócios da dita sociedade, julgados pela literalidade da denominação social, ou ser-nos-ia dado o desconto próprio de que são credores os distraídos? Sem a vírgula a estabelecer a distância entre “inteligência” e “limitada”, a designação mostraria o contrário do pretendido.

E ainda há quem não acredite que o diabo está nos detalhes. Louve-se-lhes a supina inteligência.

6.1.21

Ministério da ternura

Melody’s Echo Chamber, “Shirim”, in https://www.youtube.com/watch?v=CQ0vpewozRA&pbjreload=101

Decreto presidencial, aos seis de janeiro do ano de dois mil e vinte e um. 

Considerando:

         - o défice de afetos, por contaminação da tendência geral de endurecimento das almas e pela contingência da crise sanitária que obriga ao distanciamento dos corpos;

         - os consabidos efeitos terapêuticos da ternura, possibilitando níveis mais elevados de sanidade mental ao todo nacional;

         - o cognome atribuído ao signatário, que em vésperas de ser reeleito (se perdoado lhe for o topete de se antecipar ao sufrágio) tomou a resolução de oficializar uma política de disseminação da ternura à escala nacional (ilhas incluídas) como seu legado para a posteridade e a História da república.

         Determina-se:

1.    A criação do ministério da ternura, depois de auscultado o governo, em harmonia com as disposições constitucionais aplicáveis.

2.    A perenização do ministério da ternura na orgânica do governo.

3.    O ministério da ternura terá um ministro responsável pela pasta, de propositura presidencial, depois de consultado o governo e organismos (a identificar por decreto regulamentar) envolvidos na promoção e na execução de ternura.

4.    O ministro articula a política da ternura com o presidente da república.

5.    As linhas de orientação da política da ternura devem obedecer aos seguintes parâmetros:

a)    Definição exaustiva do conceito de ternura, enumerando os atos considerados no âmbito da ternura e excluindo, taxativamente, os que não quadram com o conceito (distinguindo, nomeadamente, ternura de promiscuidade).

b)    Ações concretas de promoção da ternura nos mais variados ambientes: agregados familiares (como alvos preferenciais da ternura), locais de trabalho, espaços públicos, confrarias, associações recreativas e afins.

c)    Definição e regulamentação dos incentivos para os casos provados de contágio de ternura, podendo envolver (alternativa ou cumulativamente) benefícios fiscais, acréscimos de subsídios públicos, promoção a listas de elegibilidade para cargos públicos, comendas lavradas em registos oficiais, cartas de recomendação, ou indulgências eclesiásticas.

d)   Atribuição de prémios anuais aos cidadãos que se distingam no contágio de ternura, com condecorações solenemente apostas no dia de Portugal, de Camões e das comunidades.

e)    Inventariação dos cidadãos relapsos à ternura, seja por iniciativa dos serviços de inspeção do ministério da ternura, seja na sequência de denúncias de cidadãos exemplares, e sua adequada reeducação através de ações de sensibilização a criar por decreto regulamentar.

f)     Determinação das punições para os atentados contra a ternura, que acrescem às sanções que eventualmente se apliquem quando os atentados correspondam a crimes previstos e punidos no Código Penal.

6.    O ministério da ternura fica incumbido de definir uma política de correção das assimetrias na receção de ternura, quando seja manifesta a incapacidade para o cidadão ser destinatário do mínimo anual de ternura (a quantificar por decreto regulamentar, na sequência de estudo de comité de sábios sobre a mensuração da ternura e do seu recomendável mínimo anual).

7.    O presente decreto regulamentar entra em vigor no primeiro dia útil após publicação no Diário da República, justificando-se a urgência da sua vigência pelos níveis alarmantes de desternura que adulteram a natureza humana, em geral, e a alma lusitana, em particular.

Lisboa, aos seis de janeiro de ano de dois mil e vinte e um.

O signatário (o presidente dos afetos)