28.2.18

Ao chegar ao xeque-mate


Protomartyr, “I’ll Take That Applause” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=ZjeFUHRf2zc    
Estava na hora. Não se podia adiar, o juízo marcou seu lugar na agenda. Era um pouco como estar acossado. Tinha a certeza que seria acantonado, os dedos inquisitórios erguer-se-iam em sua direção, escutaria o libelo acusatório e, em jeito de adenda significativa, as notas de rodapé como julgamento de carácter. Era como arcar o peso do xeque-mate. O peso do xeque-mate seria a infâmia a abater-se sobre o seu dorso, sem direito a usar da palavra como antinomia das contundentes acusações.
Por uma vez que fosse, haveria de ir buscar coragem ao fundo mais fundo que conseguisse arregimentar. Ele há casos de jogos virados do avesso, um golpe de asa a virar o tabuleiro do jogo. Ele há casos em que a presa se transforma em caçador. Saberia fazer do xeque-mate seu trunfo, devolvendo-o à procedência. Daria a impressão de fragilidade, para os acusadores se repimparem na sobranceria, assertivos quanto à insídia decretada sobre o acusado, seguros de não haver contestação ao libelo acusatório. Seria o seu trunfo: deixar os verdugos verter a arrogância dos irredutíveis, deixá-los ecoar a certeza de que não deixavam pontas soltas e do cerco não havia como fugir.
E ele fingiria. O tempo todo. Fingiria a aceitação da humilhação, prostrado, com a cabeça inclinada sobre os punhos em pose de decadente subserviência perante os verdugos, perante toda a casta, como se a pose fosse a imagem viva da aceitação da infâmia decretada antes de o julgamento encontrar sua sentença. Fingiria arrependimento, sem sequer poder invocar a comiseração dos julgadores. Então, num golpe inesperado, começaria a discorrer em sua defesa:
Sei do que me acusam. Noutros tempos, quando alinhava pelo vosso diapasão, recolheria o rosto no sepulcro da minha infâmia e aceitaria o não direito de arrependimento. Aceitaria a gravidade do que me é imputado. Hoje, nada disso me é dado a fazer. Limito-me a comunicar que passámos, eu e os senhores que me acusam com toda esta solenidade, com esta ausência de direitos básicos de defesa, a habitar lugares diferentes. Já não há nada que tenha em comunhão com os que me acusam, que os sei representantes da casta. Não vos reconheço autoridade punitiva. A não ser para aquilo que me interessa: a expulsão com agravo, a menção desonrosa em meu desfavor. Não me interessa o opróbrio que sobre mim façam abater. É irrelevante. Deixou de ser contrariedade a destronar o sono. Hoje, nem sequer é contrafação. Por isso, não suplico nada. Não redijo nótulas de arrependimento. Não contesto a vossa autoridade, nem a abjuro; pois dela almejo o desiderato final: a expulsão. E, ato contínuo, o esquecimento de mim. Essa seja a sentença. E que a justiça seja célere. Implacável. Para o acusado rejubilar com a sentença que o condena.

27.2.18

Os custos da dissidência


Tindersticks, “Let’s Pretend” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=S0N_XYAjXPk    
Se pudesse, se estivesse fosse afoito, chegava junto aos da casta e berrava-lhes ao ouvido, um a um, devidamente perfilados para ouvirem a sua proclamação solene: “detesto pensar da mesma maneira que tu – detesto pensar da mesma maneira que tu – detesto pensar da mesma maneira que tu – e assim sucessivamente.”
Vaticinava, porém, um tremor paralisando os movimentos, paralisando a voz. Ou então, caso conseguisse sobrepor-se à anestesia da vontade, pressagiava uma reação desabrida dos da casta. Seria acusado de traição. A heresia não ficaria impune, com iracundas promessas de represálias, porventura com custos para a sua integridade física (pois conhecia de ginjeira os da casta: alguns prometiam violência gratuita como forma de sopesar a razão que julgavam estar do seu lado). Temia que passasse de palavra em palavra o topete da dissidência e, no acerto de contas prometido, acabasse sozinho, sem ter alguém com quem falar.
Não estava seguro se queria ser pária; ou se, para o não ser, tinha de ir fazer vida para outro, remoto, lugar, onde ninguém soubesse da desavença. Nunca fora de atos que exigissem coragem. Nem de coragem física (talvez por causa da franzina constituição corporal) nem, ainda menos, de coragem intelectual. Lembrava-se de pelejas de ideias em que retrocedia no tabuleiro de jogo quando o adversário crescia com argumentos a que não conseguia oferecer imediata contestação. Entrava em pânico: à falta de contra-argumento na ponta da língua, sentia o flanco exposto; era como um dique a abrir brechas por todos os lados e a água a inundar o terreiro das ideias. Se houvesse coragem para a demissão, a apoplexia cuidaria de retirar palavras da bagagem, a gramática seria um pesadelo e a retórica uma profusão de palavras amontoadas, sem fio c0ndutor. Ficaria à mercê dos da casta, que usariam toda a implacabilidade para o reduzirem a nada.
Andou tempo a eito a pensar no palco montado, a ensaiar discurso metodicamente preparado, a mentalizar-se que não podia ser atraiçoado por um coração impulsivo. Reviu, vezes e vezes, a estratégia e as consequências prováveis. Tudo desaguava num palco onde ele era abandonado à desgraça, à irremediável desgraça. (Contrapondo, aos que sugerissem que outros o podiam acolher, que não estava interessado. A orfandade não se compensa. E não estava interessado em fingir outras ideias. Aliás, sentia-se órfão de ideias.)
Imerso numa desta demoradas revisões, descobriu a chave para o nó cego que o amordaçava: tinha a certeza que a dissidência, depois de comunicada, faria os mais radicais reduzi-lo a nada. Era justamente o que queria. Que o seu nome fosse riscado das atas, dos monumentos, das fotografias – do escol. Riscado daquela pertença. Pois “pensar da mesma maneira que eles” era uma violência interior que deixara de suportar.

26.2.18

A culpa e a responsabilidade (ou a culpa é da responsabilidade)


Throwing Muses, “Not Too Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=RZI-FTcFtn8    
Um pouco diletante, os tiques eruditos a preceito para passar a imagem de intelectualidade não bolorenta, era capaz de ser a síntese entre o burguês (embora disfarçado) e o homem que mantinha as referências todas das revoluções – das justas revoluções, as que se amotinavam contra a opressão dos ricos. Por isso, burguês disfarçado: não podia dar o braço a torcer, os meios que frequentava continuavam tributários do marxismo e da luta de classes. Também por isso, os burgueses hábitos (maldito hedonismo que entrava em choque frontal com os dogmas) eram frequentados em segredo.
As contradições internas atropelavam a desarmonia em que decaía a coerência (no fundo, a incoerência). Ele via a coerência sumir-se num fino fio que se perdia à medida que os prazeres interiores, inconfessáveis perante os da mesma casta, transgredia a ortodoxia. Não se considerava um pós-moderno. Preferia estar um passo atrás, na maré da modernidade. Já chegavam outras consumições. Não precisava da tirania do pensamento encavalitado em sucessivos poréns, em calafrios que o torturavam de cada vez que a teoria esbarrava na prática (e de como os fúteis prazeres burgueses tinham um apelo irrefreável).
Talvez por isso, moderara a sede de protagonismo. Moderara as intervenções em público, remetendo-se a um perfil também modesto. A páginas tantas, nem sabia se a hibernação se devia à miríade de hábitos burgueses que não conseguia recusar, ou se era por ter ficado para trás, não trepando a árvore do pós-modernismo. Talvez fosse isto tudo, por junto. O atávico modernismo era propositado. Assim como assim, fora suplantado pelos peritos que sufragavam novas correntes, o pós-modernismo; a esses, o palco. Ele ficava para segundas núpcias no mercado dos eruditos que marcavam a agenda dos progressistas. Era fácil decair nos incorrigível mundano burguês sem que alguém fosse pedir contas, sem que se prestasse a um julgamento sumário, acusado de um desvio sinónimo de traição.
O que podia fazer? Os instintos ecoavam, telúricos, nas veias abertas à perfídia dos frívolos prazeres alojados num universo que sempre detestara. Era mais fácil torcer o braço e aceitar os prazeres burgueses, sem alguma vez o confessar a ninguém (ninguém!), do que sentir-se pária entre os seus. Se imaginava a culpa que seria imputada ao serem descobertos os prazeres secretos, não imaginava suportar a responsabilidade.
A culpa não era sua. Era do insuportável peso da responsabilidade. Ele, como mero adereço, talvez podre pela heresia não assumida, peça insignificante na imensa roda dentada do mundo, não conseguia assumir a infâmia.