30.4.14

Quando as baias prendem o olhar

Cocteau Twins, "Those Eyes, That Mounth", in https://www.youtube.com/watch?v=iD0STDHNM8A
- Para que serve o olhar?
- Assim dito – como dizer? – estou sem resposta.
- Insisto: diz-me para que serve um olhar?
- Mas queres que responda sobre o meu olhar, ou sobre o olhar que assiste a qualquer um?
- O que quiseres.
- O olhar: esquadrinha, analisa, mede temperaturas, fareja os odores, decanta os pulsares que interessam, recusa o inestético, caso a estética tenha serventia. É bastante, a resposta?
- Talvez. Não te incomoda que haja olhares embaciados? E que esse embaciamento seja uma acomodação de quem adestra os olhares às suas baias redutoras?
- Não devemos julgar os olhares dos outros. Se há quem queira confinar-se à estreiteza do olhar, quem somos nós para menosprezar o arbítrio de quem a toma?
- Capitulas tão depressa? Não temos um dever de denunciar as camisas-de-forças que amputam olhares?
- Mesmo quando essas baias são voluntárias?
- Isso não pode acontecer. O livre arbítrio não quadra com as baias volitivas. Não há pessoa que consiga viver aprisionada num espartilho, mesmo que a ele se entregue no exercício da sua vontade.
- Podes julgar os outros com tanta certeza?
- Posso, se...
- ...não podes. É uma intrusão que não admitirias que ninguém viesse sobre ti cometer.
- Admitia: se conseguisse entender a vontade manietada e que do esconjurar da minha liberdade sobreviessem danos importantes.
- E terias lucidez para perceber que a vontade não está livremente sufragada? A alucinação toma conta da lucidez, não nos deixa ver, amputa o olhar. Não nos deixa ter um olhar se não restringido pelas baias de que não somos tutores.
- Afinal concordas comigo: o olhar deve ser descomprometido, sem restrições que aplaquem a lonjura que o olhar alcança.
- Se me pedires para responder ao que faço com o meu olhar, concordo. Não quero peias a obscurecer o espaço que medeia entre o horizonte e o meus olhos. Outro tanto não afirmo para o olhar dos outros.
- E não temes ser amordaçado por uma contradição insanável?
- Não. Repara: tu não podes impor aos outros a liberdade que ajuízas salutar para ti. Essa é uma liberdade condicional. Todavia, ao ser condicional deixa de ser liberdade. Tens de ensimesmar; fugir da tentação de aos outros impores o que para ti julgas curativo. Deixa cada olhar respirar pelos poros que o resguardam.

29.4.14

Baralho descarnado


Volstad, "É um jogo", in https://ragingplanet.bandcamp.com/track/volstad-um-jogo
Andava meio mundo em estouvada azáfama. Queriam amealhar muitas cartas, pois de entre elas trunfos haveriam de vir à superfície. E são os trunfos que têm valimento. Os trunfos que fazem a diferença. Destrunfada existência acomete-se de padecimentos plurais, descarnada perante as intempéries fortuitas. Valia tudo. Na demanda por trunfos, não havia regras nem códigos de conduta ou ética que tivessem sobrevivido. Dizia-se que só valia a lei da selva. E que na selva todos vão à vida por si, não contam com mais ninguém. Era um vê-que-te-avias, a desconfiança a gritar aos ouvidos de todos num complexo crescente, amplificando-se na ambivalência dos habitantes. As traições eram diárias. Havia quem só passasse o tempo a congeminar traições, nem percebendo que já eram vítimas de emboscadas enquanto os seus vendilhões passavam pelo mesmo mal.
Nada disso importava. A inteligência do mundo e a estética irrepreensível das coisas sensoriais ensinava a maior das lições. Açambarcar só para possuir mais do que os rivais, era estultícia. Um engodo em que acabavam, atraiçoados, os seus próprios fautores. Havia quem dispusesse abastados baralhos. Tamanha abundância apascentava férteis trunfos – acreditavam. Ah! Como se inebriavam os algozes de cada vez que encontravam um trunfo. Lambuzavam os dedos enquanto os olhos irradiavam um brilho judeu e esbofeteavam o trunfo em cima da mesa, preparados para recolher um troféu. O troféu era a dignidade de um adversário de ocasião, apanhado em contramão pela desdita do jogo.
Os famintos da abundância não contavam com a destreza dos poucos que não apostavam no jugo das quantidades. A estes, ocorria-lhes sussurrar entredentes – podia ser que os magnatas avarentos conseguissem ouvir: “quantidade não é qualidade. Quantidade não é qualidade. Quantidade não é qualidade.” Empenhados na ganância, exultavam quando um (julgavam) néscio era apanhado no jogo. Diziam com os seus botões: “são favas contadas.” Mais um cordeiro sacrificado na selva do jogo. Mais a mais, vinham a jogo descarnados, poucas cartas na mão e nenhuma na manga, que os braços vinham em sua nua forma por míngua de fazenda.
Repetidamente, os abastados perdiam o jogo. Tropeçavam na sua soberba. Só então percebiam o lembrete que ecoava, nas palavras ditas pelos outros, num recanto da memória: “quantidade não é qualidade.

28.4.14

Queria ser: músico de intervenção

In https://www.youtube.com/watch?v=_Adp77ivpT8
(Advertência parental: texto de elevado teor “reacionário”)
Gostava tanto de ser músico de intervenção! Mas o que faz falta é:
1. Saber compor música. De preferência, trovas embebidas em vinagre folclórico de vanguarda.
2. Viver num sítio onde o governo fosse de extrema-esquerda esclarecida e muito científica, sobretudo para os dogmas que abraça; ou, em alternativa mais suave, de uma esquerda moderna e trauliteira, que não esconde pez de intolerância detrás dos autoproclamados pergaminhos de fautora maior da tolerância (desde que com ela se concorde).
3. Viver num sítio onde não pudesse ter a opinião que quisesse, sobretudo se ela viesse em contramão com o dogmatismo padronizado, sem que não corresse o risco de ir dormir num calabouço antes de ser degredado para um insalubre campo de reeducação (eufemismo para campo de concentração).
4. Viver num sítio onde todos os dias fossem angústia da clandestinidade, sem saber onde pernoitar em cada noite, sempre foragido dos funcionários do partido que, envergando fatiota operária (ou, na versão mais suave, roupa de marca a quadrar com a citadina burguesia), andam de atalaia para saber quem comete o supremo crime da dissidência.
5. Viver num sítio onde não houvesse propriedade privada, e toda a população fosse obrigada a viver nos cânones da felicidade decretados pelo governo, submissa e ordeira. Ou, na versão mais suave de proto-ditadura, viver num sítio onde houvesse pouca propriedade privada e a mesma fosse detida por uns oligarcas gananciosos que sustentam o aparelho do poder.
6. Viver, em suma, num sítio onde as liberdades individuais não fossem vãs promessas, mas atropeladas sem remição.
Como não vivo num lugar destes e como não sei compor música, há uma impossibilidade de ser músico de intervenção. E se acaso fosse possível sair da impossibilidade através de uma janela de escassa possibilidade só para ser, por um dia, músico de intervenção, seria para dedicar as seguintes estrofes a todos os músicos de intervenção que são sacramentados de cada vez que a revolução de abril chama gente para a rua em sua eucaristia:
O abril que celebro
não é o abril dos militares
noutro abril repouso meu ombro
para fugir aos raivosos ditadores
que queriam da liberdade um escombro
e de nós, em servidão, submissos cultores.

25.4.14

O efémero lápis azul

In http://4.bp.blogspot.com/-QPrJTWzi3FY/TekE1BxADII/AAAAAAAACE4/c4QfrIAKAak/s320/lapis%2Bazul.jpg
O jovem bacharel em letras chegou ao novo local de trabalho. A primeira tarefa foi assentar a agenda em cima da secretária, abrindo-a no dia correspondente: vinte e quatro de abril de mil novecentos e setenta e quatro.
Que incumbência lhe tinha arranjado o padrinho da mãe, senhor de negócios abastados no ultramar e de muitos conhecimentos no governo e na administração do Estado? Censor. Seria censor. Quando foi informado, suplicou à mãe que intercedesse junto do seu padrinho para lhe arranjar função – como dizê-lo sem ofender a linhagem do homem? – menos enfadonha. Podia a mãe invocar os seus precoces problemas de visão, que a exigente função de censor não se compadecia com horas a fio de leitura meticulosa, que podia deixar passar excertos de perigosa propaganda dos adversários do regime à custa da sua cansada vista. A mãe não cedeu, nem sequer aceitou dar duas palavras ao padrinho. Seria como ficou decidido. Ou preferia ser colocado numa escola nas lonjuras de Trás-os-Montes, onde os rigores do inverno e a gastronomia rural seriam piores fados para a sua franzina saúde?
Depois de abrir a agenda na folha do vigésimo quarto dia do mês de abril do ano de mil novecentos e setenta e quatro, o chefe despejou em cima da secretária uma resma de papeis. “Esta é a “correspondência” do dia. Tem aqui o senhor doutor o equipamento de que precisa, com os cumprimentos de sua excelência, o presidente do Conselho”, enquanto entregava em mão um estojo repleto de lápis azuis. Havia notícias de jornais nacionais, da atualidade internacional ao desporto e às notícias mais mundanas, da vida social. O chefe explicara que um novato não podia rasurar, em ato censório, a atualidade política nacional, que esse departamento era um reduto dos censores “mais trutas”. O chefe tratou de o acolher com hospitalidade (olhando à sensibilidade da função, e sabendo que sobre os mais jovens censores já pesavam suspeitas de terem ideais insurretos): a análise de notícias de jornais de circulação nacional era sinal de que não começava pela base da pirâmide dos censores.
Passou o dia inteiro numa azáfama. Leu, com a máxima atenção, o montão de notícias que se empilhara na secretária. Usou do lápis azul com critério e rigor, sabendo das exigências doutrinárias que o regime impunha. Nisso tivera boa escola: o pai e os avós maternos eram seguidores acríticos do regime. No fim do dia, não sabia se estava orgulhoso. Aquele fora o primeiro dia de trabalho depois de se licenciar, o que puxava lustro ao orgulho. Mas tinha as suas interiores convicções. Incomodava-o saber-se censor, reprimir uma liberdade primacial como a liberdade de expressão. Já deitado, não parava de se recordar como devolveu ao estojo o lápis azul que tanta liberdade de expressão rasurara nesse dia. Como queria tê-lo deitado pela janela, àquele e a todos os lápis que estavam no estojo à espera de serem gastos. Mal sabia que não os voltaria a usar. No dia seguinte, ao chegar à portaria do lúgubre edifício onde ia para o segundo dia de trabalho, o contínuo disse-lhe para ir para casa, que havia confusões na baixa, constava-se que havia uma tentativa de golpe de Estado.
Quarenta anos depois, após tantas voltas na vida, de tantas paragens demandadas e de tantas e diferentes ideias professadas, relê as palavras de uns autoproclamados vigilantes da democracia. Uns senadores atávicos, uns militares na reforma que não se cansam que lhes agradeçam por terem feito a revolução de abril e uns opinadores de curta memória protestam contra os danos na democracia. Advertem que voltámos a ter censura, como dantes. E ele revolta-se. Como se revoltou contra a sua consciência por ter sido censor por um dia apenas, mas por um longo dia; e revolta-se contra os senadores que se entronizam num altar de onde se julgam donos da democracia e de onde ostentam um conforto insultuoso, contra os militares jactantes e de retórica castrense e contra estes fazedores de opinião por embaciarem a probidade intelectual. Pois de cada vez que comparam o hoje que deploram com o ontem que foi de censura, pondo-os ao mesmo nível, nem percebem como ofendem a memória de todos os que foram vítimas do lápis azul da censura.

24.4.14

Não sei

In http://cudjoepoems.com/wp-content/uploads/2013/12/no-why.jpg
Miguel Esteves Cardoso disse, em entrevista na televisão, que o irrita não haver quem diga “não sei”. Quase todos sabem algo sobre alguma coisa, do conhecimento técnico e específico ao conhecimento geral e às banalidades dos que se acham sabedores de tudo e mais alguma coisa. A maior parte não gosta de dar o braço a torcer quando tropeça em perguntas de cuja resposta se acha desconhecedora; ato contínuo, amanham um raciocínio armadilhado, cheio de confluências e de desvios argumentativos, baço e hermético, para muito falarem sem nada terem a dizer (além do desconhecimento de que devia a humildade – que não têm na argamassa – dar conta).
Faz falta dizermos que não sabemos. E partir em demanda do conhecimento. Do conhecimento que seja refrigério ao conhecimento que vem de lastro, ou ao conhecimento ordenado que apenas serviu para selar ausentes conclusões, ou ao conhecimento que dantes era desconhecido. Pois é mais importante perguntar do que responder. As categóricas certezas que nem admitem a insubordinação das certezas esbarram na incerteza que vem do conhecimento subjetivo. É quando triunfam os apedeutas que se ignoram como tal (dupla ignorância) e se ungem com conhecimentos que não são seus para ditarem sentenças lavradas com lacre catedrático. Muitas vezes, dizer “eu sei” como imperativo categórico é ocultação da ignorância. E, às vezes também, o topete desta sobranceria absorve um módico de credibilidade, por quem a destila o fazer com uma seriedade que atraiçoa a audiência.
A pior agnosia é não admitir que não se sabe. É a que se embebe na ausente humildade para transfigurar os apedeutas em enciclopédias itinerantes. Dizer “não sei” é a humildade que escasseia. É a maior dose de sabedoria humana. “Não sei” é a porta aberta ao saber que não se tem. É ter abertura para assimilar conhecimento que permita suavizar o “não sei” de agora, sem que se transforme num categórico “eu é que sei”. No máximo, devia ser permitido aos cultores dos conhecimentos que se acham ungidos por dotes comunicacionais dizer “eu sei alguma coisa”. Que é como quem diz: “admito que isto não seja o conhecimento absoluto”.
Voltamos à casa da partida: o que mais importa são as perguntas que se fazem, não as respostas que se dão – e muito menos, as respostas cerzidas com a reduzida dioptria dos categóricos imperativos. Ele há tanta falsa erudição que nem nos escombros teria valimento.

23.4.14

Rodeados de servidão por todos os lados (e sermos convidados a perpetuar o gosto)

In http://material.jornal-fundamental.com///noticias/FOTOS_ALENQUER/ALENQUER%202012/finaçasCOR.jpg
Descontando a alusão sexual, a idiossincrasia nossa é a relação entre um sádico e os demais, que ao seu poder se submetem e que são educados, desde a terna idade e nos bancos da escola, para serem masoquistas. Isto talvez explique um dos mitos urbanos acerca da têmpera deste povo: que somos mansos, desligados de convulsões que impliquem o uso da força bruta, os tais brandos costumes a que vulgarmente se faz alusão. Somos assim porque somos abúlicos, ou porque somos instruídos a ser apaticamente bovinos, amestrados perante as criaturas que se apoderam da roda do poder e que fazem garbo dessa condição escondendo-se em mansas falas? À medida que o tempo passa, e enquanto vão desfilando exemplos sem conta, que vêm de todos os quadrantes políticos com visibilidade pública, inclino-me para a segunda opção.
Hoje esbarrei noutra prova. No meio do escarcéu com alto decibéis, porque a troika aterrou para a última avaliação periódica, fez-se saber que o governo vai fechar metade das repartições de finanças. Já que tanta gente vocifera contra os "cortes", e que o povaréu, acolitado por gente ilustre que é porta-voz de correntes críticas, protesta contra a sangria nos serviços públicos, vou às palavras sentidas do porta-voz dos autarcas, que tem linhagem socialista. O senhor Machado, autarca de Coimbra, depois de adjetivar com estrépito a decisão de encerrar metade das repartições de finanças (“repugnante”, assim lavrou), verteu lágrima de crocodilo com o propósito de requisitar a emoção do público mais desatento. E sentenciou que as repartições de finanças são um símbolo da ligação entre a república e o cidadão. Ato contínuo, reprovou a intenção de encerrar tantas repartições de finanças, pois a população desses lugares iria perder uma bússola – quase como se ficasse órfã.
Faltou completar o raciocínio, sem omissão de palavras relevantes para o mesmo: de facto, as repartições de finanças são um símbolo da república junto dos cidadãos. Mas não da ligação entre ambos, porque essa teria de ser fundada na vontade de ambas as partes, o que não parece ser líquida conclusão. Será, para muitos cidadãos, para o efeito involuntariamente transformados em contribuintes, um símbolo da opressão da república sobre o cidadão, na forma do esbulho fiscal que não tem travão.
O senhor Machado é o sádico de serviço que usa falinhas mansas e recorre à retórica retorcida para nos amansar e assim sermos involuntariamente levados à condição de masoquistas. Pois se o que nos pedem é que protestemos contra a extinção dos lugares onde sobre nós se abate o esbulho do suor do trabalho, e que sejamos peões nesta estratégia, é porque nos pedem para levarmos no lombo e dizermos, ao mesmo tempo, que estamos a adorar.
A servidão que estas “lições de cidadania” nos serve é um veneno. Ele sim, “repugnante”.

22.4.14

Com as armas que temos

In https://c1.staticflickr.com/9/8054/8103858007_3dba06d939_z.jpg
Tomamos conhecimento das pedras que magoam os pés ao passar. Pois que a todos elas acometem. Há-as irrisórias; declinam-se na irrelevância de que carecem. Há as outras, pontiagudas, que povoam sobressaltos, a menos que também sejam atiradas para o labéu da vanidade. O que talvez não saibamos é que o desmerecimento das contrariedades é um arma que temos em nossas mãos. Uma arma que não damos conta de estar no arsenal. Uma arma de irrelevância maciça.
Às mãos, as armas poderosas que são o virar do rosto para o lado contrário das tempestades. Às mãos, pois, a purificação das missões de extinção das vilanias que se semeiam em nossa peugada. Essas são as armas, e poderosas, com que terçamos. Pois a incandescência dos dias luminosos não aceita que outras sejam as armas quando as apoquentações se insinuam por todos os lados. Com as armas que temos, de pacíficos pergaminhos, a bem da sanidade por onde acamam as veias.
É o que acontece quando alisamos as areias que a maré tumultuosa descompôs. Deixamos o areal numa ordenação próxima da perfeição. Ainda vemos os estorninhos que parecem seduzidos pela perfeição do areal. Depois de o contemplarem num voo desenhado, aterram com a ligeireza das suas finas patas. Dedilham os pequenos seixos arredondados que são a argamassa da areia grossa. Não esboçamos protesto pela desordem que os estorninhos vieram instalar. Afinal de contas, tamanha harmonia não pode ser julgada desordem alguma.
Enquanto deixamos os estorninhos em sua coreografia salgada, metemo-nos a caminho, o mar nas nossas costas todavia deixando o perfume da maresia matinal embeber-se em todos os poros. Os olhos estão virados a nascente, de onde se levanta o sol, ainda tímido. A claridade singular irradia à medida que os minutos fogem. Quando o dia se anuncia soalheiro em toda a sua pujança, o sol perde parte do seu encanto (a crer no diapasão que ajuizou o encantamento da luz alvorada). Não chega para adulterar os olhos bem abertos, ávidos de passarem a vista pelo enlevo que o existir deixa em legado. Podia, até, a manhã ser brumosa, embaciada pela trémula luz que a cortina de nevoeiro deixa passar, que os olhos continuavam repletos de feitiço.
Pois a arma mais destemida que podemos terçar é a que derrota a pulsão opressora das importunações.

21.4.14

“Prego a fundo”

In http://misteriosdomundo.com/wp-content/uploads/2013/09/O-tempo-para-na-velocidade-da-luz.jpg
Na vertigem, e por dentro da vertigem, consuma-se a velocidade estonteante (a que a vida passa). Não é desprezível a medida do tempo por que passam os olhos ávidos de experiência. Não é algoz, esse tempo; só se o desmazelo fosse fautor de uma existência lateral, estéril, cínica com a própria existência, que desagua numa praia árida quando os olhos se viram para trás.
Sabemos que o tempo em que assentamos é eterno, se assim quisermos – e se por lei nossa viermos a decretar uma nova definição de eternidade. Para lá chegarmos, sem que o sangue que nos alimentou ou o suor que vertemos não sejam em vão, somos rivais do latejar dos relógios. Queremos, às tantas, andar mais depressa que os relógios. Acometidos por uma vertigem indomável, sentimos que a medida do tempo se recolhe nas nossas mãos quando elas se entrelaçam. É um cavalo com crina sedosa o que cavalgamos. De onde vemos, nas latitudes álgidas, o mundo inteiro, como se sobre ele adejássemos com o freio domando o cavalo.
Éramos capazes de dar a volta ao mundo num punhado de minutos. E, todavia, conseguíamos emoldurar na memória as paisagens multiformes, as línguas diferentes, as cidades com linhagem, os museus edificantes, as culturas sortidas – tudo o que, num esboço, nos fizesse senhores do mundo. Do mundo que passa em velocidade vertiginosa na tela que são os nossos olhos. Até que o sono viesse num chamamento e o tempo encontrasse maneira de se imaterializar. A grandiloquência em nossas veias perfumando os sonhos com paisagens idílicas, as estrofes de poemas épicos entoadas pelas vozes quentes e as mãos outra vez entrelaçadas na síntese da combustão dos corpos.
Os relógios, então, em compasso sob a nossa batuta, ora ligeiros (as mais das vezes), ora na esboçada lentidão quando o contraponto da velocidade estonteante tivesse serventia. Mas sempre, sempre, com o pé bem fundo no acelerador da existência. Sem receio que as vertigens encasteladas embotem a travessia.

18.4.14

Vertigem

In http://vertigemetontura.com.br/vertigem%202.jpg
Um pé alto contra o precipício. A coragem toda embainhada num golpe. A duração do tempo não pode nada contra os esteios da fragilidade. Que se fortalecem nas faldas da própria fragilidade. A qualquer momento, é como se o chão pudesse sumir-se debaixo dos pés.
Esta angústia é insuportável. E, todavia, é esta insuportável angústia que torna suportável a existência. Pois se vertigens não houvesse, e se os pés se achassem numa hibernação sem fim, só tínhamos monotonia por todos os lados, tudo igual e sem chama, como se todas as iguarias viessem embalsamadas por insípidos cozinheiros. As vertigens são uma prova de vida. São elas que, ao mesmo tempo, trazem o coração ao pé da boca e conferem o sal da existência. Há atalhos que evitam os promontórios onde os pés se aventuram contra as algemas do tempo envidraçado. Atalhos que previnem as vertigens que podem roubar o equilíbrio, o corpo depois entregue ao vazio do precipício. Mas esse atalhos são a confissão das facilidades. Um espírito exigente não empresta as chaves às facilidades. Denuncia-as. Cristaliza-as num emparedado de onde não se possam soltar. Pois o vício das vertigens é uma droga dura, irremediável, refrigerante.
Por isso é que os olhos não têm olhos senão para os alcantilados de onde sopram os ventos tempestuosos, onde a chuva amacia o espírito, onde as pedras pontiagudas adestram os pés até que, na fina embocadura da serrania, com o precipício a bordejar as duas veredas, avancem destemidos e se embriaguem com o ar fresco com que as divindades escondidas nas montanhas agraciam quem por lá for à aventura. Até que o corpo seja mestre no equilíbrio precário e os desfiladeiros não sejam paragens temidas. As vertigens não hão de deixar de ser vertigens. Quando o corpo regressar às planícies, então imperador dos promontórios recusados pelo comum dos mortais, já não se intimida com o bulício das grandes cidades.
O tirocínio teve seu espartilho no rarefeito ar das serranias. Onde os olhos, para afastar os corvos negros que não paravam de adejar como cangalheiros da eterna desdita, se debruçam, temerários, sobre os precipícios medonhos. Como arte do necessário tirocínio para o que de mau houver de chegar.

17.4.14

A Assunção pediu perdão

In http://www.radionova.fm/thumb/index/noticias/imagem/55ffdb00cb6262df7d43a2b34d0167de.jpg
Estávamos em polvorosa. A Assunção que preside ao parlamento ofendera (diz-se) os putativos donos do vinte e cinco de abril (e, de caminho – por que não? – da democracia) quando respondeu, no seu desbragado jeito, “é um problema deles”. Foi depois de um plumitivo lhe ter lembrado que os do reumático queriam usar da palavra quando o parlamento comemorasse o quadragésimo aniversário da revolução. Foi um pé-de-vento. Os capitães que fizeram o vinte e cinco de abril são gente sensível, merecem respeito por todo o sempre e nunca devem ser contrariados sob pena de se não respeitar a democracia que nos entregaram.
A retratação da Assunção não demorou. Mandou dizer, através dos jornais e das televisões, que decidiu, num ato de humildade democrática, ir à sede onde se reúnem os capitães de abril (que entretanto subiram na hierarquia da tropa). E mandou dizer mais: que ia ser um “encontro de afetos”. Nós, os que temos as mentes depravadas, logo congeminamos um alucinante ménage à tróis, pois os afetos amiúde um introito para manobras mais carnais. Mas duas das três personagens do encontro de afetos estão na senescência e o reumático não ajuda. As ditas personagens não estavam capacitadas para a função, o que de imediato desmanchou os pensamentos pecaminosos que os das mentes depravadas iam ensaiando.
À saída do encontro de afetos estavam os jornalistas empunhando microfones, gravadores, máquinas fotográficas e câmaras de imagem. A Assunção não vinha afogueada, conformando-se que a andropausa de duas das três personagens impedira que o encontro de afetos atingisse proporções lúbricas. Ato contínuo, a Assunção começou a disparar o habitual discurso gongórico, entremeado por uma simpatia encavalitada em tamancos circenses. A Assunção confirmou, para sossego da nação, que os equívocos estão sanados. Aquela é – sossegou-nos a Assunção – uma relação “inquebrantável”. Os afetos foram trocados e as desculpas aos proprietários do vinte e cinco de abril foram aceites. A humildade é bonita de se ver. Ter uma presidente do parlamento tão risível também.
(Juro que não é fascismo social, para não me acusarem de fazer chacota do sotaque transmontano da senhora – pois tenho uma costela transmontana e orgulho-me dela!)

16.4.14

Um homem bom

In http://1.bp.blogspot.com/-po-MenBQi8Y/TzTN0I2-QyI/AAAAAAAABpY/5zSTlqTpkCY/s1600/bnd.jpg
Juras imensas. Juras que, de serem tão repetidas, já eram perenes. Não perdia a peugada de uma promessa se ela viesse ungi-lo com mudança. Fartara-se de ser vilão. Ou cansara-se de achar que os outros nele viam um vilão. Mas esta vilanagem não era maldade pura. Era um enlevo pela provocação, um esteio das horas madraças em que as teimas tomavam conta do tempo.
Deste tempo açambarcado, em que se penhorara como réu de um punhado de sentimentos de que não sobrava orgulho, carecia de distância. Sabia-se fautor de um viajar sobressaltado pelo tempo. Nem sequer havia tempo para admitir a escassez do tempo e de como eram inúteis as demandas da ignobilidade. Queria que os fidalgos sentimentos arrimassem. Que fossem o equinócio de onde dimanavam equilíbrios outrora ausentes. Queria – queria tanto – ser um homem bom. Sentir o que era ser um homem bom. Não era recolher o aplauso alheio, que essa não era empreitada que o movesse entre as pingas da chuva. Apenas queria saber o que era ser-se homem bom.
Andou dias a eito a interrogar-se como fazer para se tornar um homem bom. Leu literatura a preceito – daquela literatura que tudo simplifica, como se até as coisas complexas viessem despidas dessa complexidade. Congelou irritações que o apoquentavam. Esqueceu-se das personagens que o fariam habitar nos antípodas, caso houvesse precisão. Aconselhou-se com um par de entes queridos. Voltou ao pretérito para entender as malfeitorias que havia feito (ou as de que vinha acusado, só para perceber se vinham cobertas de fundamento). Isolou-se, longe de casa, longe de todos antes que deixasse de ser tempo da peregrinação pelo interior em sobressalto. Muitas perguntas continuaram sem ter deslinde. Quando aportou ao cais que era o seu e olhou de frente nas pessoas de sempre, estava inseguro de que mudara a sua têmpera. Queria – queria muito – ser um homem bom. Não estava seguro da transfiguração. Podia ser que no doravante as águas fossem bonançosas e não houvesse senão carestia no desassossego angariado pela vilania.
Sentia, contudo, o aligeirar do peso sorumbático: ao menos sabia que fora, em tempos idos, feitor de crueldades. Admiti-lo era, em sua pura esperança, a confirmação de que era um homem bom. A lucidez dos tempos era prevenção de tais malfeitorias.

15.4.14

Mãozinhas gordas

In http://2.bp.blogspot.com/-FMscMXhKKJc/UH1-QEX-_dI/AAAAAAAAA3Q/OPzEWjiQ9xg/s1600/DSCN0160.JPG
Era por todos troçada. Não era pela feiura, que os traços finos do rosto e a pele que parecia de veludo eram lenha para a inveja de muitos. Não era pela voz, que tinha linhagem radiofónica. Ou pelos olhos, que tinham um desenho perfeito, encaixados na cavidade ocular e repuxados por um discreto esgar oriental. Em contraste, as mãos anafadas eram caução do alvoroço.
Anafadas, suadas, unhas descompostas, dedos desproporcionais, largos e pequenos, as rugas nas dobras dos dedos tão acentuadas que nelas se podia alojar uma legião de parasitas. Que, todavia, era nas imediações da sua pessoa que se alojavam. De cada vez que entoavam escárnio e a deixavam mergulhada num silêncio envergonhado, acabrunhada porque julgava que os outros, os que não tiveram a desdita da opulência corporal e não se entregaram aos tormentos das hormonas disfuncionais, eram de casta superior. Vinha habituada da escola, onde aprendera a ser a mal amada. E se até professores segredavam à sua passagem a estranha silhueta, ela não podia divergir. Ensimesmou: ela era a aberração da escola, a aberração da universidade, a aberração de todos os empregos que tivera. Assim foi durante todo o tempo: apoucada pelos mesquinhos que não podia denunciar. Se o fizesse, seriam mais emboscadas. Bebeu, então, o cálice da resignação. Toda a adolescência e parte já importante da adulta idade tinham sido o isco de uma repressão interior fermentada pela vozearia maldizente dos outros.
Um dia, o chefe novo empunhou a revolta por ela. Um dos colegas que mais a escarnecia, sequioso das boas graça do novo chefe, comentou em tom jocoso os predicados que agilizavam o motejo. O chefe, senhor bem apessoado e, constava-se, cultor de uma beleza admirada, perdeu a compostura. O sarcástico personagem nunca mais seria ninguém na empresa. Não lhe foi perdoada a tarimba discriminatória. Fez-se constar o episódio por todos os departamentos. Até fora da empresa. Ela nunca mais foi incomodada. O chefe chamou-a. Disse-lhe estar ao corrente dos impropérios que sobre ela se abatiam. Encorajou-a a não ter vergonha de si mesma.
O chefe, homem solteiro e muito requisitado, saiu para jantar com ela. Foi assim todas as quintas-feiras doravante. Enfeitiçado com os dedos gordos que, a certa altura, passaram a ser sua certidão de afagos.

14.4.14

Os santos ofícios da pia batismal estão mestiçados

In http://olhares.uol.com.br/client/files/foto/big/148/1485839.jpg
Os tempos de agora já não são como dantes. É que dantes o batismo ungia as criancinhas com os sacramentos beatos e a doutrina ensinava que era o tirocínio para sermos bons cordeiros dentro do ordeiro rebanho. As águas da pia batismal aspergiam a boa têmpera divina na moleirinha das crianças de colo. Haveria um milagre nunca explicado pela ciência: a fonte batismal irradiava uma luminosidade que se acamava no mais profundo das criancinhas oferecidas ao sacramento, como se a sua genética ficasse lacrada para serem boas almas.
O pior era o depois. O crescimento das criancinhas e quando elas deixavam de o ser. Talvez os santos ofícios da pia batismal tenham prazo de validade. Ou o embeber dos cristãos e nobres sentimentos perca vivacidade à medida que se transfiguram os petizes, passando à idade adulta. A maldade ganha um palco. Os meninos marotos adestram-se no hedonismo, saltam as peias da sacristia, alvoroçam-se com as hormonas em ebulição, espreitam a nudez das meninas (ou dos meninos quando lhes apetece assim ser), às vezes têm apetites animais. Há meninas que parecem demónios, tresloucadas pela luxúria, seduzidas pelo homem alheio, depostas numa lhaneza não ensinada pelos pergaminhos da pia batismal, com apetites vis.
Ou, porventura, são as águas macias da pia batismal que têm diferente composição. Perderam atributos. Já não se embebem na perenidade. Não têm o préstimo que tinham dantes, quando o batismo caucionava o acolhimento dos infantes no reino divino. Alguém devia investigar onde são fabricadas as águas batismais. Ou se a bênção que se lhes ordena está encomendada pelos bons ofícios divinos. Às duas por três, o mal está nos sacerdotes que abençoam as águas batismais. Faz-se constar que há membros do clero que escorregam para os pecados que se diz não quadrarem com os bons ofícios da pia batismal. Por contágio da águas contaminadas por clérigos tresmalhados, os meninos assim entregues ao batismo estão condenados à devassidão.
Talvez alguém devesse inquirir se o mal está no agente que se desvia do conceito ou no próprio conceito. Se o pecado fosse banido do léxico, não havia peias e juízes que dispensam precioso tempo a fazer julgamentos de atos que não são seus. Nessa altura, a pia batismal seria uma piscina como outra qualquer.

11.4.14

Deixai o reumático orar

In http://sol.sapo.pt/storage/Sol/2012/big/ng1225641_435x190.jpg?type=big
(Com respeito pela memória dos retratados que já não figuram entre os vivos)
Os políticos que mandam não percebem o ridículo em que se enredam por temerem que a brigada do reumático vá ao parlamento dizer coisas feias sobre o que andam a fazer (ou a desfazer). Eu digo que esta classe política vive assombrada por fantasmas de estimação. Mas se os “capitães de abril” sobreviventes são os fantasmas, mais valia aos políticos mandantes sacar o revólver do coldre e disparar em cheio em ambos os pés.
Qual é o mal que vem ao mundo se a brigada do reumático quiser botar faladura no parlamento quando forem as celebrações do quadragésimo aniversário da revolução de que se dizem, os capitães de abril, penhores exclusivos? Não se lhes conhece obra, nem pergaminhos intelectuais que assustem um adversário. Porventura teme-se que os militares entreteçam palavras ásperas para o atual estado das coisas. E que venham protestar contra os danos que governos sucessivos fizeram às “conquistas de abril” e ao “espírito” respetivo, fazendo recair a sua ira no governo do momento (por ser do momento; e por ser considerado o maior culpado na traição a abril). Na senda, aliás, de um numeroso escol de intelectuais ou não tanto, com o Pacheco como inevitável farol inspirador, que já não insinuam, dizem-no às claras: o medo que por aí grassa não é diferente da censura que a ditadura zelosamente praticava. Saia, pois, um módico de tino no pensamento, para não ofenderem quem foi vítima da censura de outrora e não enganarem os incautos do tempo presente.
Eu gostava que os “capitães de abril” perorassem no parlamento. Admito que seria uma galhofa, entre pontapés na gramática e zoeiras argumentativas. Por uma vez (ou outra vez mais, depende da forma de ver), o parlamento seria um circo na verdadeira aceção da palavra. E se estamos deprimidos: ele é a crise que nunca mais vai embora, ele é a democracia que sofre entorses todos os dias, ele é a tristeza de ver os mais jovens demandarem a emigração, ele é uma “elite” (propositadamente grafada) que se entronizou nata dos atores políticos do momento. Isto é tudo tão indigente que a melancolia e a desesperança tomaram conta do horizonte. Precisamos de rir, um riso aberto que faça parecer que a boca vai de um canto ao outro do rosto. Precisamos de gargalhadas, sonoras e demoradas.
Deixai, pois, a brigada do reumático subir à tribuna e fazer uso da oratória.

10.4.14

O homem sem amigos

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Andava à cata de lágrimas perdidas no chão. Demandava os cicerones da lucidez se a razão não tinha embotado no nevoeiro que teimava. Olhava para o mar desarranjado e sondava as sereias escondidas se não se tinha perdido a meio do caminho.
Por onde passava só existia o trinado da solidão. Não tinha amigos. Não estava perto da família. Ou não tinha família por perto. No trabalho só pesava a indiferença e o anonimato da existência (mal sabiam o nome dele). E, contudo, não se lembrava de uma mágoa que fosse. Não tinha recordação de verter lágrimas ou de lhe doer a solidão. Afastara-se, por sua vontade. Quisera rumar a um lugar desconhecido e remoto. Respondeu à erupção de uma demanda sem freio que o encomendara a um exílio interior, demorado. Não sentia falta do que deixara. Parecia desejar a solidão que noutros deixaria um sabor a melancolia.
Neste tempo de exílio voluntário, aprendeu a conviver com a solidão. Havia dias seguidos imerso no silêncio – e, às vezes, era o silêncio que doía. Temia que as palavras ditas se enferrujassem com o destreino, ou que a voz ficasse amarrada na falta de uso das cordas vocais. Era quando dava consigo a fazer como os dementes que se julgam prisioneiros de múltiplas personalidades e desatam a falar alto sem terem ninguém por perto. Havia noites de insónia. Não eram por causa da solitária condição a que se entregou. (Ou disso se quis convencer.) Nos despojos da insónia errava pelas ruas da cidade, multiplicando a sua solidão pela solidão noturna que tomava conta da cidade. Paradoxalmente, era quando reavia as forças que a certa altura julgava exíguas.
As fartas rochas que tombavam sobre as margens do rio eram a embocadura dos pensamentos. Nem o cheiro pútrido, fazendo adivinhar que naquele canto muitos se aliviavam de águas excessivas, apoquentava os pensamentos. Ficara tudo tão longe que do que ao longe ficara já não lembrava rostos, palavras, gestos. O que era temporário começou a ter sua demora. Não era um novo começo. Nem era uma continuação de nada que viesse de trás. Era apenas uma diferença alinhavada no canto minimalista das andorinhas a caminho do exílio. Porque há exílios necessários. O respeito por si mesmo o impõe.

9.4.14

Se o sangue não me engana

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Se o sangue não me engana, os promontórios hão de ser meus. Tratarei de ascender as veredas mais íngremes, alimentar-me do sol diante dos olhos, sarar as feridas com o sal do mar, enxugar as lágrimas que quiserem marejar os olhos. De tão alto parecer, conseguirei deitar o olhar sobre o mundo inteiro.
Se o sangue não me engana, perder-me-ei na vastidão das planícies. Onde as cores douradas tomam conta da paisagem e as mãos se amaciam nos arbustos aveludados. Caminharei as milhas que forem precisas sem que os pés me doam, até encontrar um azimute que franqueia a janela por onde entram todas as cores. E então, reconciliado e em jeito de triunfalismo, beberei três cálices de vinho de ouro para o corpo remoçar.
Se o sangue não me engana, andarei nos antípodas de curandeiros vários. Que as enfermidades sejam matéria distante, mercê da sinfonia entoada enquanto escuto os cantos dos pássaros em redor. Não serei de tomas de medicinas ou refém de doenças que não passam de efémeros sintomas. Não serei de me entregar ao leito quando o corpo madraço se simula em moléstias. Pois o tempo todo será escasso para embeber o tanto que o mundo consagra.
Se o sangue não me engana, serei olhos que através de si outros veem. Serei as mãos que se adelgaçam na forma de cais onde outras aportam. Serei uma voz sem agitações, um pensamento fecundo, o feitor das interrogações, o viajante destemido, um mar ora fácil de manter, ora iracundo mercê da perturbada tempestade que o desinquieta. Serei um corpo resistente. Um corpo coreografado no cinzel das palavras feitas poemas. Um sangue fervente quando a fervura tem serventia, ou um sangue sagaz quando a lucidez se antolha. Serei um manto requentado que adormece os rigores invernais, um refrigério quando o estio sopra os alísios africanos. Metade geea﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ra metade.rorecisas, deitar o olhar sobre o mundo inteiro.itogo em hipoteca da segurança dos haveres. se émea de outra metade.
E, se o sangue não me engana, serei uma ebulição vivaz, a combustão de dois corpos em sua fusão, o laço que adorna os dois corpos. Sem os repelões que desassossegam, ou os vitrais opacos que não deixam ver cá para fora, ou as tochas desconjuntadas de que procede uma arritmia de fogo hipotecando a segurança dos haveres. Se o sangue não me engana: todo o sangue vertido em mim, e o mar inteiro meu repositório. À condição de o sangue me não enganar.

8.4.14

Sabe-tudo

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Um espécime intrigante, os sabe-tudo. Categóricas afirmações, não se besuntam com pessoais dúvidas. ou, acaso as tenham, escondem-nas para não darem parte de fraco – não vá a humildade ser um flanco aberto, o que não cabe na imensa sabedoria.
Discorrem sobre tudo com a mesma catedrática pose. Ele é cada naco de conhecimento que os que os ouvem ficam esmagados com tanta sabedoria acumulada. Ou acontece ficarem estarrecidos, quando a prosápia se enfeita de números à sorte cuspidos ao ar, como quem repousa em estatísticas que são destiladas com o conhecimento de causa de quem sobre elas assentou sem vagar. Os sabe-tudo lidam mal com as ideias que são diferentes. Não é de somenos estranhar: os categóricos imperativos estão bem entranhados, não há lugar ao ar espairecido de diferentes ideias das suas. Praticam com peritagem o saber do desdizer quando desse desdizer depende o enraizar da sua consabida sabedoria. Se preciso for, apoucam quem lhes aparecer pela frente a destruir as categóricas ideias. À falta de melhor, deitam mão à diminuição da pessoa que se atreve a praticar a dissidência das suas perfeitas teorias. Não vão lá com argumentos; fulanizam o adversário, como se as (nas suas pequeninas cosmovisões) desconsiderações pessoais chegassem para empurrar o adversário às cordas.
Os outros deixam-nos destilar a sabedoria que os sabe-tudo julgam enciclopédica. É um ato caridoso. Ou assobiam para o ar, pois dá-se o caso de as coincidências verterem a tinta do desmentido em saberes de que os sabe-tudo não são tão peritos como quem os ouve. É um risco: há audiência por contado, audiência que se conhece e a quem a anedota do conhecimento enciclopédico é isso mesmo, uma anedota que roça a indulgência; mas há quem não trave tamanho conhecimento com os sabe-tudo a soldo do conhecimento de caserna e desfaça em nada uma exibição pomposa de árida erudição. Mesmo assim, à noite, os sabe-tudo ostentam o narcisismo e contemplam-se junto ao largo espelho em vésperas de sono, capacitados de que são nobre matéria para o conhecimento da espécie. Só se for da subespécie em que vegetam, pois outros sabe-tudo aclamam, com tácito deferimento, o nulo interesse conhecimento dos sabe-tudo.
Que haja muita indulgência perante sabedoria que encapota indigência e embófia. E que haja, por muito e muito tempo, a humildade de tudo questionar e de as certezas duvidar.

7.4.14

Partir pedra

In http://www.efecade.com.br/wp-content/uploads/2013/01/PEDRA.jpg
Ao primeiro olhar, uma dureza que intimida. Os blocos inertes, mastodônticos, impenetráveis. E nós temos apenas as mãos e umas artes rudimentares. A empreitada parece impossível. Mas ao deitar, quando na véspera do sono repousam as apoquentações sobrantes, celebramos a impossibilidade dos impossíveis.
A alvorada faz-se radiosa. Os pés metem-se ao caminho, sem demora. Os planos amontoam-se na revoada da tempestade cerebral. Não será a empreitada vultuosa que desestima os esforços. As mãos vão às artes e começam a partir pedra. Centímetro a centímetro. Vendo, com o passar das horas, um pequeno espaço nascer onde antes fora império da pétrea rocha acinzentada. E nem as mãos ensanguentadas de tanto as esforçarmos atemorizou a empreitada. O tempo foi passando, com diversos tempos que se faziam, ora solarengos, ora tempestuosos, sem que as mãos se não entregassem às gastas artes que continuavam perfeitas na sua função.
A pedra partida caía pela encosta, dando outra feição à paisagem. As mãos continuavam a partir toda a pedra que continuava a nascer das entranhas. Os planos mentais não recuavam nas intenções. Era preciso arrotear a encosta. Era preciso derrotar o terreno agreste, pois sabíamos que ali havia terra fértil se a pedra que era sua dura epiderme fosse devastada. Os braços não se doíam, mesmo que cada jornada de trabalho fosse da igualha de forçados trabalhos. E nem a pele crestada pelo sol a pino, quando o estio causticava o lugar que já parecia bastardo, ou o corpo enregelado ao cabo de um dia de tempestade, frígido pelo vento e pela chuva severa – nada nos demoveu de cinzelarmos com as nossas mãos uma nova feição ao promontório. Partimos a pedra que foi preciso para sermos arquitetos da paisagem. Domámos a paisagem e então fomos feitores da sua fertilidade.
Demos vida a uma paisagem inerte, agreste, espontânea mas adormecida. Foram os nossos braços que tomaram a paisagem num estirador. E as mãos foram fazedoras de um milagre sem intercessões sobrenaturais.

4.4.14

No desafogo da maré

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Pode acontecer: uma ira em combustão. A raiva que incendeia as veias e sobressalta a respiração, que magoa. Pode haver um rosário inteiro a fermentar essa ira. Descompõe-se o pensamento, fecha-se o rosto, encavalita-se a impaciência, jogam-se palavras injustas contra quem não tem culpa.
Mas essa ira não tem préstimo. Aplacá-la é imperativo. Para refrear o coração alvoroçado, para domar os gestos iracundos que fogem das pedras frias onde repousam os sedimentos da racionalidade. Ferver em água fervente não é irremediável. Podemos ser as (nossas) pedras de gelo que amputam a matéria fervente. É quando o olhar se dirige algures. Desde que algures esteja nos antípodas da ebulição que nutre a ira. Fora dessa consumição está o que importa.
O olhar mete âncora numa praia de maré baixa. Demora-se na areia molhada de onde o mar foi enxuto. Demora-se mais longe, detendo-se nas águas mansas que domesticam o sol que cresta. Buscam na areia molhada os nutrientes da quietude. Uns búzios pequenos, uns seixos erodidos, uma estrela do mar que espera pelo regresso da maré, um naco de madeira que veio por um rio abaixo até se perder na imensidão do mar, as pegadas dos albatrozes que dedilham o areal em busca de alimento. Os olhos cerram-se enquanto a cabeça se ergue ao céu. O silêncio é entrecortado pela maresia. Pelo sussurrar dos albatrozes que se refugiaram nas árvores por medo do sol que está a doer. Os olhos reabrem-se e deparam com a mesma paisagem que, todavia, parece outra diferente. As mãos estão molhadas. As calças também: a maré começou a regressar e o êxtase não deixou tomar conta das águas que vieram beijar o corpo sentado na areia.
Não importa. A maré deixou os sedimentos da moderação. As mãos molhadas contaminaram-se, num salutar contágio, com os sedimentos depositados pela maré que entretanto regressara. Tudo agora tem folga. E tudo regressa aos azimutes que interessam. A página foi virada.