21.5.24

Estação

Justice, “Generator”, in https://www.youtube.com/watch?v=MZTg2WMb8Ps

Os relógios estavam enganados. O vento soprava do lado contrário. As pessoas andavam com sapatos descasados. Os gatos vadios não fugiam das pessoas. Nas televisões, as más notícias estavam omissas há umas horas valentes. Os políticos meteram a hipocrisia no congelador (até ver). As pessoas não desconfiavam umas das outras e não eram boçais. Não havia beligerância disfarçada de desporto, a pretexto de inimizades regionais. 

As invejas estavam anestesiadas. Não havia maus modos à mesa (porque as pessoas abdicaram deles). As metáforas já não eram o refúgio de fingimentos avulsos, eram genuínos recursos estilísticos que enriqueciam a linguagem. A ironia tinha deixado de ser ofensiva. Os matadouros humanizaram-se. Já não havia injúrias causadas pelo apuramento da História. Os dogmas foram extintos. Os acontecimentos não pediam autorização. Em vez de julgamentos sumários, falava mais alto o respeito pela liberdade de os outros serem como eram. A lhaneza desta petição de princípio foi reconhecida.

A discriminação positiva foi extinta, enfim reconhecida como discriminação. As artes não precisavam de manual de instruções. As pessoas deixaram de trazer a tiracolo um manual de intenções e um prontuário sobre o esclarecimento da ironia que praticassem. As mentiras aconteciam, como é inato, mas não tinham consequências. Os sacerdotes do apocalipse entenderam que essa é uma bandeira puída. 

Já não havia “cães de guarda” a dormir ao relento e com a liberdade acorrentada. O epicurismo foi acertado. As ideias deixaram de ser treslidas e os outros faziam fé na boa-fé dos procuradores das ideias. Os poetas deixaram de ser indigentes, sem serem curadores da abastança. Os multimilionários fizeram a vontade aos socialistas de diversa cepa, que ficaram angustiados pela exaustão da causa ontológica. Os ociosos deixaram de ser perseguidos pelos bons costumes. Os bons costumes perderam o substantivo e o adjetivo.

Deixou de haver património da humanidade, porque a humanidade é um património inteiro e intemporal. Os sonhos já não eram risíveis. As armas deixaram de ser terçadas. A ciência não era ultrajada. Os indefetíveis nadadores do conservadorismo perderam as boias de salvação. Os apóstolos da sistemática vanguarda não tiveram tempo para rir: depressa caiu a sua máscara e um radicalismo de moeda oposta ficou à mostra. As intenções deixaram de ser intuídas. Os nomes passaram a valer pelos seus titulares. 

Já o mundo continuava repleto de imperfeições, reconhecidas e assumidas como tal, na maior prova da sua perfeita imperfeição.

20.5.24

No calcanhar da justiça

Beth Gibbons, “Lost Changes”, in https://www.youtube.com/watch?v=sXRJWVvSGIs

No cabo dos bacalhoeiros, não ventava como nos outros cabos limítrofes. Dos dois lados do promontório, havia enseadas que cobravam o abrigo que os bacalhoeiros procuravam se o vento se sublevasse, dando às águas uma agitação tempestuosa. Este movimento iracundo do vento, em vésperas de os bacalhoeiros aportarem, era próprio de um agiota que extorque do plácido povo tudo o que tem até às costuras dos bolsos. 

(A quantidade de bacalhau que se podia perder, se não fosse o obséquio do cabo dos bacalhoeiros.)

A contingência trata de ratear a fortuna e o infortúnio. Atrás do bacalhoeiro que foi a tempo de se abrigar da intempérie, outros três da mesma frota ficaram à mercê do desamor dos mares e de Neptuno, o seu tutor. Os marinheiros embarcados nestes barcos tiraram a má rifa no apuramento avulso dos fados por calhar. A possibilidade de naufrágio latejava no sangue em ebulição, lutando arduamente contra os golpes de mar e o timoneiro já a entoar as melhores preces, entregando o leme do bacalhoeiro nas mãos fantasmas de uma divindade que se opunha a Neptuno.

Os minutos nunca mais terminavam. A tempestade embaciou o campo de visão, adulterado pelos solavancos feéricos que cavalgavam nos bacalhoeiros erráticos. Parecia o desterro em pleno mar: os pescadores tinham de ser marinheiros, mas já nem sabiam do tempo para as orações que lhes tinham ensinado na catequese e de que os mestres das embarcações exigiam conhecimento como requisito de admissão na tripulação.

A eternidade foi aliviada pelas tréguas da tempestade. O alvoroço do mar não cessou tão depressa. Mas os corações dos pescadores começaram a abrandar à medida que recuperaram a medida do horizonte. Os mestres recuperaram o domínio dos lemes e encaminharam os bacalhoeiros para o azimute do cabo dos bacalhoeiros, onde sabiam encontrar asilo. A safra estava protegida – os jornais já não poderiam exercer a sua propensão para o sensacionalismo caso os bacalhoeiros tivessem naufragado, mais preocupados com a escassa safra do peixe favorito que ditaria a sua carestia. 

(Como uns quantos cadáveres de um peixe nobre, à espera de serem retalhados depois de tirocínio na salga, valem mais do que duas mãos cheias de pescadores naufragados. Vai mal, ai pois vai, o capitalismo.)

Os bacalhoeiros tresmalhados iam pagando a ousadia do atraso com o naufrágio. Estiveram hipotecados, à mercê da justiça. Salvaram-se por pouco (logo depois, outro golpe de asa da tempestade: este teria sido fatal). Foram todos à boleia do calcanhar da justiça.

17.5.24

A pele do cinismo

Mura Masa & Tirzah, “Today”, in https://www.youtube.com/watch?v=BE0XuCW-vYo

A inteligência pode rimar com maldade. A maldade pode ser um fruto da inteligência. Ou não: o cinismo é uma figura de estilo só ao alcance de quem está munido de um módico de inteligência. 

O cinismo não é um exercício de maldade. Os que são atingidos pelo cinismo podem acreditar que sim. Fazem uma tresleitura do cinismo. Imputam um anátema a quem os atira, através do cinismo, para um lugar desconfortável. Confundem os planos: o cinismo opera a liberdade de expressão sem ofender a dignidade dos que são apanhados na sua rede. É a validação da inteligência que tutela esse equilíbrio precário. De outro modo, confundem cinismo com intolerância para o receber olimpicamente. 

As vítimas de cinismo: esta é uma expressão que devia ser banida do léxico. Ninguém é vítima do que não representa um ato cruel. Os alvos deviam saber que não há regra que impeça usar o cinismo para responder ao cinismo. Ou que, não querendo recorrer a essa arma não beligerante, o exercício do cinismo não materializa um conflito entre duas liberdades de sentido oposto. Estar no lugar do destinatário do cinismo obriga a um ato superior de inteligência (superior ao ato do próprio cinismo): tolerar o exercício de cinismo e receber as balas dardejadas desse cinismo com um bom poder de encaixe. 

A nossa pele é ambivalente. Nela encontramos cicatrizes que são os despojos do cinismo que se verteu sobre nós. É a mesma pele que é adestrada no cinismo, um antídoto contra a feição odiosa do mundo. O cinismo não precisa de ser permanente. Deve ser usado com critério e moderação, para não se transfigurar num lugar-comum analgésico. O cinismo manifesta-se no uso não exaustivo da inteligência, para que inteligência e cinismo não sejam banalizados. 

Vamos à pele tatuada de cinismo encontrar a inspiração para usarmos o cinismo como a escotilha que se abre à luz clara.

16.5.24

O navio tem uma gramática

Expresso Transatlântico, “Porque Nada Tem um Fim”, in https://www.youtube.com/watch?v=GsEjhL6m4PE

O navio engole o mar, adultera o forte e de fraco tomou o mar que o separa do porto distante. Amanhece, não estremunhado, com a coragem para que foi feito no estaleiro sem paradeiro. No seu interior, a tripulação está de barriga cheia depois de uma breve temporada em que os homens estiveram desembarcados. As suas peles reluzem, como se a temporada em terra tivesse sido terapêutica e os homens houvessem frequentado spas para as almas. 

E como é um spa para a alma? No caso de marinheiros que atravessam os mares de fio a pavio, dando o corpo às piores tempestades, é poder ter os pés em terra assente. É o direito ao temporário exílio do mar, o eufemismo do descanso semanal, a evasão do salitre, da humidade tatuada nos ossos, do cabelo hirsuto de tanto sal que o cobre. 

Como é que um spa para a alma melhora a pele? Os marinheiros refugiam-se do mar, tornam-se temporariamente homens de terra, entregam-se às delícias de quem tem uma terra para habitar. Sem terem uma casa que possam dizer sua. Retiram a pele da erosão dos mares; é como se deixassem de ser homens do mar e encarnassem a sua antítese, tornando-se homens de terra (mas não da terra, pois são os maiores nómadas, não pertencem a terra nenhuma. Muito menos à que vem averbada como lugar de nascimento). 

Os marinheiros têm morada fiscal no alto mar. Por isso, estão isentos de impostos – o mar é tão extenso e tão alto se constitui que escapa a qualquer jurisdição terrena. A isenção dos marinheiros é legítima. Compensa o sacrifício de semanas inteiras submetidos ao cerco dos mares. Compensa o antídoto forçado contra os enjoos ditados pelo mar tempestuoso, as refeições desconsoladas, a dormida em beliches exíguos, a paisagem repetida. 

Os marinheiros veteranos, se se dessem aos cálculos criteriosos, chegariam à conclusão que foram mais os dias embarcados, com o mar indiferente por companhia, do que os dias a fazer companhia a terra firme. Pois é nestes termos que a questão deve ser colocada: eles é que acompanham a terra em que fundeiam, não o contrário. São lobos do mar. Desenraizados quando os pés assentam na terra-terra. 

Em todos os portos devia ser levantada uma estátua ao marinheiro. E outra aos seguros navios que são a sua morada.

15.5.24

O Amadeu não era de queixumes

Lisabö, “Gure Hitzak”, in https://www.youtube.com/watch?v=MNH72NIoJx8

Podiam soar os trovões da dor. Podia o sofrimento escavar na pele até se tornar cal em cima da carne. Podiam gritar, inomináveis, as injustiças que assombravam o sono. Podiam açambarcar a fala contra o direito ao queixume. O Amadeu transigia, calado, sofrendo como sempre aceitara o sofrimento, em silêncio. 

Abria uma exceção contra o silêncio como idioma da resignação, quando era testemunha involuntário dos males injustificadamente debitados nos outros. E os outros podiam ser outros para o Amadeu, autênticos forasteiros no seu raio de ação, que logo arbitrava a pendência. Insurgia-se, irascível, metendo pose ameaçadora que dissuadia os feitores das crueldades em curso. Ficou por anotar em livro próprio o inventário das dores que poupou aos outros. O Amadeu era mais amigo dos outros, mesmo quando não eram do seu conhecimento, do que dele mesmo.

Depois entrava em abstenção quando os próceres da iniquidade se abatiam sobre ele. Não queria saber dos infortúnios; não se lamentava, nem no forte apelo da consciência, deixando que o infortúnio fizesse o seu trabalho sujo até ficar um farrapo, estilhaçado pela angústia. Se alguém chamava a titularidade de um vexame, Amadeu condescendia. Era porque aquela pessoa achava que o distrate era preciso; Amadeu, se fosse o caso, ganhava (e de longe) o campeonato da ingenuidade.

Quando Amadeu interpretava os desacontecimentos que o afligiam como um curso do acaso, sabia que o mundo é ilegível. Metia-se dentro de um parêntesis, à espera que a tradução do acaso esgotasse a validade. Fingia. Fingia que o acaso é cruel e patrocinava a indigência como refúgio dos contratempos que vomitavam uma lava doentia sobre os dias consecutivos. Amadeu ficava à margem do tempo, como se fosse um fantasma que escapa à boca faminta dos vultos que povoam o tempo.

O Amadeu podia aproveitar o mesmo livro onde anotaria as proezas edificadas contra a crueldade que se abatia sobre os outros para debruar a ouro as vezes em que fora vítima de crueldades sem recorrer ao queixume. Ao contrário dos jogadores de futebol, que se contorcem num exibicionismo pueril a fingir uma dor que não têm, Amadeu compensava com a abstenção do queixume.

14.5.24

(O perdão dos) Fazedores de conspirações

The Chemical Brothers, “The Test”, in https://www.youtube.com/watch?v=yhS9LnDoo_w

O azedume pela verdade estava dissimulado, escondido das veias determinantes. Uma pletora de dias cercava o oxigénio, cuidando da apoplexia dominante. Eles diziam ser desenraizados, os músculos fora de uma pertença, ou colonizados por um tempo a destempo que os mobilizava contra os lugares-comuns e as convenções. Queriam ser párias, por não se sentirem bem na pele de cidadãos com o estatuto exemplar de uma conduta acrítica.

Começaram a fazer conspirações. Ao início, eram só diletantes. Conspirações de pequena monta, com audiência restrita. A desonra da verdade não os incomodava, nem feria os destinatários: eram pequenas mentiras, coladas com a saliva da rebeldia. Sem intenção malévola (se se descontar a teórica maldade que está sempre presa a qualquer mentira, mesmo as piedosas). 

Não estava em causa mentir – ou o abalo sísmico que a mentira podia causar nos alicerces da consciência. Queriam uma sublevação que tingisse o mundo com a desobediência. Era criterioso, o latejar dissidente que se apurava naqueles rostos desassossegados. Talvez a conspiração desbotasse a letargia das gentes. Não importava que a conspiração rimasse com mentira; a conspiração seria uma mentira benévola, resgatando as pessoas de uma obediência acrítica que não questiona os alicerces, que aceita como dados os pressupostos que se soerguem com a costura do inquestionável, atirando cortinas baças para cima dos olhares. Domesticando-os.

Admitiam que conspiravam; não admitiam em público, o consentimento ficava reservado ao círculo próximo e aos demais que tinham inventado uma confraria com o propósito da conspiração metódica. Para que não houvesse dúvidas das intenções, escondiam-se numa célula de contra-conspiração que atirava cortinas de fumo sobre as conspirações de que eram autores, só para obrigarem as pessoas a serem seres pensantes. 

Para não serem acusados de parcialidade, semeavam conspirações para todos os gostos. Recolhiam o inventário das conspirações e as marés vivas que elas causavam. Mediam o tumulto e comparavam o estado do mundo depois de apurada uma conspiração. Quando a escala de Richter subia ao vermelho, retiravam-se para assistirem ao espetáculo do pensamento à distância.

13.5.24

A casa dos sonhos

Nick Cave & the Bad Seeds, “White Elephant” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EpvGTav6TWU

Entro na casa dos sonhos e fico sem armas para saber de que são feitos os sonhos. É como se os pés andassem sem chão por baixo, ou uma trovoada ecoasse por dentro das veias, escurecendo o sangue. A metamorfose da noite valida as sombras que se demoram num exílio involuntário. Tudo o que acontece no sonho não aconteceu, mas parece que tingiu a pele com cicatrizes indeléveis. 

O que separa um sonho de um pesadelo é um fino fio que torna a fronteira indeterminada. Os sonhos são habitados por pessoas e palavras que conspiram contra a medida habitual do tempo que nos alberga. Por dentro da casa dos sonhos, não sabemos se somos a mesma pessoa, ou se encarnamos noutras personagens que não chegaram a medrar na arcadas visíveis. Os sonhos oferecem alvíssaras que não têm tradução fora do sono.

Se o sono é trespassado por uma tempestade onírica, ele não termina com a exaustão que era o seu estado prévio. Os interstícios do pensamento estão ativos, intensamente ativos, libertando-se da vontade em que temos freio. Mas depois vem um sonho montado no dorso e a vontade em hibernação coloca-nos à mercê da contingência do sonho. Tornamo-nos atores. Seguimos um roteiro, seduzidos pelo papel de marionetas, seguindo as falas que o roteiro nos põe na boca. 

É quando intuímos que os sonhos não são muito diferentes da tutela da vontade. Também somos atores congeminados numa constelação de acontecimentos acima da nossa vontade. Também somos acasos, movidos por uma gasolina exterior, atirados para latitudes que apetecem aos ventos rasantes. Somos figurantes, em vez de personagens. Mesmo quando tutelamos as nossas vidas, no desembaraço dos sonhos, e nos julgamos protagonistas.

Temos medo dos sonhos? Se for pelo risco de se transformarem em pesadelos, tememos os sonhos. Mas não devemos nada a esse medo. Não devemos nada aos pesadelos. Por vezes, o odor da realidade consuma pesadelos que dispensam o sono. O medo não deve ser transferido para o sono legítimo.

10.5.24

Moção de censura

Anohni and the Johnsons, “Why Am I Alive Now?”, in https://www.youtube.com/watch?v=5NLyFXWEN0c

1.

Queriam servir sumo de limão. Por castigo. O azedume cítrico combina com a impressão que a limonada é indigeríveis se não vier somada de açúcar. Ninguém quer saber que adocicar os limões adultere a sua têmpera. As convenções acolhem muitas farsas da mesma igualha.

2.

Era dia de homenagem a uma vida inteira de dedicação à “causa pública”. O servidor dera muito de si à causa e ela fora moldada (e aperfeiçoada) à feição do seu voluntarismo. Talvez a corcunda encarnasse os sacrifícios que fez para que a causa tivesse reconhecimento e fosse acarinhada. O homenageado trazia às costas as cicatrizes dessa entrega. Não havia cura para as cicatrizes. A homenagem era como se fossem as exéquias antes do tempo. O homem terrivelmente envelhecido não esboçou um sorriso. Adivinhou o estertor, que devia acelerar após a homenagem. Não teve coragem de a recusar, tal o empenho dos delfins. Ninguém o desconvencia que a homenagem não era para si. Era para o empenho dos continuadores não perder vigor.

3.

Na fila para a caixa do supermercado, um casal bem apessoado despeja em cima do tapete caixas e mais caixas de vinhos. Não se importunam com os olhares indiscretos dos clientes vizinhos, nem com o esgar de cinismo que espreita pelo canto da boca da “operadora de caixa – Ana Luísa”. Os pergaminhos dispensam justificações. Às malvas, a democracia que é coincidir no supermercado com o demais povaréu.

4.

O pescador retira, através da cana de pesca, um peixe que deve ser enorme, a crer nos esticões que, um ou outro, quase derrubam o pescador. A força do pescador derrotou o peixe. O peixe tem envergadura. E uma cabeça que triplica o perímetro do corpo restante. O pescador acena a cabeça em sinal de desabono, percebeu que o peixe é inútil. Devolve-o ao rio, possivelmente moribundo. Quem disser que isto é pesca de lazer, pergunte ao peixe vítima da falsa generosidade do pescador.

5.

O padre da paróquia despacha os peregrinos que vão partir para a intendência sacrificial com uma reza apressada. Os peregrinos estão convencidos que a fé quadra com o sacrifício e a dor. “Sofre e abstém-te.” O padre está cheio de pressa – o jogo deve estar quase a começar. O jornalista que acompanha os peregrinos dispara uma pergunta provocatória: o padre aconselha que o percurso derradeiro maximize o sofrimento quando os peregrinos se ajoelham, arrastando-se penosamente até ao altar? O padre fingiu surdez. Aos dez minutos de jogo, o adversário já estava a ganhar dois-zero.

6. Era nas cumeadas, quando o silêncio tingia o tempo, que se refugiava das pessoas excessivas e da cidade contundente. O silêncio suspendia o tempo. Cercado pelas serranias à ilharga, sentia que a erosão do chão lhe devolvia a audácia que precisava para mais uma temporada de exílio na cidade. À falta de uma moção de censura, usam-se outros métodos.

9.5.24

A Europa (ainda) é um ensaio

Groove Armada, “But I Feel Good”, in https://www.youtube.com/watch?v=M939hOS6BJs

A União Europeia é uma promessa de paz que se materializou. É um ente político que se avivou com a passagem do tempo, com os desafios e os contratempos que enfrentou. Temos na Europa uma promessa contínua de se tornar algo mais para não ficarmos desorientados e à mercê de infortúnios que enfraquecem a nossa capacidade de reação.

No ano em que se completa meio século de democracia em Portugal, não se levantam as mesmas bandeiras, nem se encenam festividades semelhantes, por a primeira Comunidade Europeia completar 72 anos. A cabalística (72 não é um número redondo e celebrável como 50) não explica tudo. A comparação anterior pretende situar a integração europeia ao mesmo nível da revolução que inaugurou a democracia em Portugal? Ensaio uma interpretação heterodoxa: muito embora em abril de 1974 estivéssemos longe de sonhar com a civilização europeia que despontava, a entrada nas Comunidades Europeias foi uma revolução com horizonte temporal distante que ofereceu os alicerces de que a democracia infante precisava. Sem a adesão às (então) Comunidades Europeias, as dores de crescimento da democracia poderiam ter maiores e mais prolongadas.

Como portugueses, temos legitimidade para instrumentalizar a UE. Que atire a primeira pedra o país que pertence à UE que não o faça. Nem o mais euro-optimista pode negar que o projeto da Europa unida só fez o seu caminho porque os países membros dele recolheram vantagens. Não me interessa estimar os ganhos (e, já agora, as perdas) por Portugal integrar a Europa unida. No dia da comemoração da União Europeia, o que importa é uma tarefa ambivalente: explicar por que a ideia de Europa unida foi uma boa ideia, evitando lugares-comuns e a complexa linguagem dos peritos sobre Estudos Europeus (e que tende a assustar o cidadão, afastando-o da Europa que se assemelha a uma torre de Babel). Proponho um apanhado de ideias sobre o que esta Europa é e o que não é.

A Europa é um lugar de coexistência pacífica. Um legado de paz deixado em memória futura às gerações que, entretanto, vão cultivando algum desconhecimento sobre a História recente do continente. Mergulhar nas raízes desta Europa unida é uma mnemónica para o futuro.

A Europa é uma casa comum que perfilha valores humanistas, uma vanguarda que se estabelece em domínios vários sem o pretensiosismo de um neocolonialismo disfarçado na voz de um “exemplo a seguir”. Mandatar a Europa para ser exemplo pode sitiar a liberdade dos outros. Uma Europa que anime uma liberdade condicionada é uma Europa que nega os seus valores.

A Europa é um lugar onde a defesa da concorrência tem vindo a abater monopólios que aglomeravam a riqueza contra os interesses da maioria dos consumidores. Está é uma medida de democraticidade do bem-estar que costuma escapar ao radar das análises.

Na Europa convergem interesses dos países que a reconheceram como porta-voz com uma dimensão capaz de ser ouvida no plano internacional, evitando a decadência pressentida após o fim da Segunda Guerra Mundial. É um anão político e militar, mas vai fazendo o seu caminho feito de pequenos passos, como sempre aconteceu na construção europeia. 

A Europa é um santuário do Estado social, na confluência de inspirações ideológicas que se complementam num híbrido singular. Em tempos de polarização e afirmação eleitoral de populismos de diferentes linhagens, a Europa situa-se num radicalismo de centro que tem a tolerância e o respeito pelos outros como valores matriciais.

Contra os piores prognósticos, a Europa atravessou várias crises, até algumas que foram entendidas como existenciais, sobrevivendo e saindo reforçada. Há até quem sugira que sem crises a Europa não teria chegado ao patamar de crescimento a que chegou.

Mas a Europa não é um Estado, nem aspira a sê-lo. O medo dos que não desistem de exorcizar o federalismo como devir da UE não é tangível. A Europa não hipotecou a soberania dos países europeus, para sossego dos que avivam a descaracterização da soberania nacional por ação da corrupção ditada pela União. Se a UE não dispõe de soberania, os Estados membros não podem perder soberania a seu favor. 

Para apaziguamento dos cultores dos nacionalismos identitários, não se concebe uma identidade europeia que se sobreponha às identidades nacionais. Para os que ignoram os fundamentos e a História da UE, “unidade na diversidade” sempre foi o lema desta Europa politicamente original. Para sossegar os arcaicos que ainda vivem nos contrafortes de um tempo que teve o seu tempo, termos mais Europa não significa que deixemos de entoar o hino nacional ou que a bandeira seja atirada para um estatuto subalterno. A Europa onde vivemos não é a Europa dantesca que serve os propósitos dos que exaltam a pertença nacional e desdenham os outros, como não serve os desejos daqueles que correm atrás de miragens ideológicas datadas. Ser Europa hoje não é congeminar os Estados Unidos da Europa.

A União Europeia é uma casa comum, a casa europeia onde os países conseguiram coexistir desvalorizando as diferenças. Aceitam que essas diferenças – o seu reconhecimento, a tolerância perante elas e os esforços para encontrar uma síntese que ultrapasse as divergências – é parte do seu património comum. Um português não será um finlandês, mas senta-se à mesa da governação europeia para, em conjunto com os outros Estados membros, dar um contributo para resolver os problemas que a modernidade faz escapar da alçada de cada país. Esta é uma casa comum que defenestrou os fantasmas não tão distantes como se possa pensar, para sermos um lugar comum onde as diferenças são excedidas.

A virtude maior desta Europa é ser um projeto inacabado. Um projeto em contínua construção, aberto às vozes que queiram ser artesãs de uma construção em aberto. Não podemos silenciar essa que é a nossa voz. Não podemos ser europeus ser conhecermos a Europa.

8.5.24

Tração atrás

The Breeders, “Huffer”, in https://www.youtube.com/watch?v=P7F3vWGQsVI

A mania – incorrigível – de espreitar pelo retrovisor pode dar para o torto. Nomeadamente: chocar estrepitosamente na parte de trás de quem segue à frente; ou apenas desviar o tempo que conta por conta da distração com o tempo pretérito.

Às vezes, chamam-lhes velhos do Restelo. Ninguém sabe de que padecimento sofrem os velhos, em especial, do Restelo. O anátema conservador está entranhado. Deles se diga que são as forças que reagem contra os propostos avanços do mundo – que, em linguagem que não se aparte do rigor, são dados adquiridos, não são negociados com a cidadania que os recebe, apática. 

Se falassem de carros, seriam os partidários da tração traseira e da caixa de velocidades imperativamente manual. Como lobrigam em socalcos afins ao marialvismo (que, entretanto, ganhou um novo nome: masculinidade tóxica), não demoravam a entretecer laboriosas analogias entre automóveis empurrados pelas rodas de trás e engrenar manualmente as mudanças que combinam a velocidade com o aproveitamento do motor. O humor não é universal, também se envidraça no consentimento do mau gosto.

Esses arcaicos, sitiados na exaustão do tempo presente, mergulham na nostalgia acerba. “Quando só havia carros movidos a tração traseira”, cospem a saudade fátua. Esquecem que a tração traseira é astuta: nos terrenos escorregadios, é difícil manter a aderência à vida real. Ou partem para a alunagem a um chão desconhecido, ou andam à luta contra o volante para voltarem a ter as rédeas na dinâmica que atraiçoa a mecânica. Era pior: não havia direção assistida, era preciso uma força bruta que não era para qualquer um.

Hoje a tração traseira e as caixas de velocidades manuais entraram em desuso. A favor dos condutores, a direção assistida suavizou o esforço da condução. Os que andam à procura de fantasmas no nevoeiro do passado, só para se investirem de heroísmo combatendo oráculos fabricados à pressa, esqueceram-se do futuro e só se lembram de usar o passado a tiracolo. 

Perderam a bissetriz do tempo. Deles não é o compêndio que encorpa as mudanças. Continuam a derrapar na tração traseira. Não os demove a contínua agonia de quem veste as dores da tração traseira tradicional. Têm medo do futuro, suspeitam que é feito de um buraco negro. Preferem a tração traseira. Contextualizam: andam mais no fio da navalha, conforme é do agrado da adrenalina. Pretextualizando.

7.5.24

Loop (ou, as coisas inacabadas)

Pond, “Man It Feels Like Space Again” (live at Melkweg Amsterdam), in https://www.youtube.com/watch?v=cKpRy6n4ddw

O sumo que escorre da manhã certeira despe o dia dos preconceitos que a noite tinha legado. Diz: “este é o dia em que não vou deixar as empreitadas pela metade”. O dia começa promissor. Ter encaixado a jura interior era a prova.

E o dia continuava a prosseguir na sua radiosa feição. À hora do almoço já cumprira quatro pequenas, mas todavia incisivas, demandas. Algumas estavam pendentes do passado. 

(E como o passado era maldito, ou soava a maldito, quando  resgatava as pendências: era como se não deixasse de ser algo pela metade, ou até menos; olhava em redor, via pessoas, aparentemente felizes, outras meijengras, e tinha a impressão que elas não eram como ele, que deixava quase tudo por fazer para se enredar num mar interminável de distrações.)

Pela tarde, o pensamento começou a olhar para muitas árvores de fruto ao mesmo tempo. Era admirável esta sede de conhecimento, como porfiava para não estreitar os horizontes. Dispersava-se por um número tão grande de coisas que perdia o seu número, incapaz de as inventariar. Incapaz de saber onde tinham ficado as coisas pelo início de um processo e onde tinham ido uns passos adiante, mas nunca muito além do meio do caminho. 

A cabeça era embaixadora da errância. Forasteira constante, dando o braço aos ermos lugares que ardilosamente pediam asilo, catecúmena sem consumar as juras. Era uma cabeça que funcionava como palimpsesto, como se fosse um livro gigante desdobrado em títulos, por sua vez abertos em capítulos, secções, subsecções, itens avulsos. E ele deixava de saber onde estava a rédea dos processos de que era tutor: por exímia que a memória fosse, não era humanamente possível tutelar tanta matéria que queria ser o prisma do pensamento à procura de paradeiro.

Era uma cabeça em loop, uma gruta funda onde tinham morada as múltiplas personalidades em que se dividia. Ao fundo, numa arca gasta pelo tempo de que se distinguiam as dobradiças enferrujadas, alojadas as pendências, ora esquecidas, ora fingidamente negligenciadas no biombo da memória sacrificada. De tantas coisas inacabadas, sentia-se órfão de si mesmo. Em raros momentos de lucidez, tomava em mãos o siso que parecia extinto para se convencer que as coisas são sempre inacabadas, mesmo quando lhes costuram uma finitude à bainha. 

Que mal tinha ser mais um a encorpar o palco onde se terçam as farsas que tudo foram colonizando? 

6.5.24

Se te portares bem, não te levo ao junk food

Fat White Family, “Work”, in https://www.youtube.com/watch?v=jdCchCi6X28

Dantes, metiam-se fantasmas pelo meio para assustar as crianças (e os adolescentes, já não tão convincentemente). Agora, prometem-se guloseimas silenciosamente venenosas que os colocam no abismo da obesidade, corpos disformes antes do tempo. Os conspiracionistas de diversa cepa asseguram, só porque sim, que as multinacionais que fabricam comida-lixo metem ingredientes que industriam a viciação. 

(Não me importo com os conspiracionistas.)

Agora, os pais podem prometer um bodo se convencerem a descendência a não irem ao junk food. Os conspiracionistas aplaudem e as culturas de vermes (a crer na ladainha dos conspiracionistas) agradecem. Os fantasmas de outrora têm um formato diferente. Se queremos punir os petizes, mandemo-los para os estabelecimentos onde se come comida-lixo. Mais tarde, os seus corpos deformados e carregados de celulite frequentarão psiquiatras e nutricionistas antes de voltarem a sucumbir à gula, incapazes de resistir às forças moleculares que desatam a pulsão pela comida-lixo. 

(Afinal, existe uma conspiração entre as grandes multinacionais da comida-lixo, os psiquiatras e os nutricionistas. Dirão os conspiracionistas.)

O enorme perímetro abdominal, as pregas que adejam sobre os lancis das coxas, o queixo que já fareja o triplo patamar, o difícil que é respirar, um coração quase sempre no parapeito do abismo, a vergonha de ir à praia para não se ser cunhado depreciativamente – ou não; se os petizes não se amedrontam com a ameaça (“se te portares mal levo-te ao junk food”), e se houver um efeito de contágio, os corpos serão maioritariamente vultuosos, numa concessão voluntária à obesidade. As gerações futuras serão menos ecológicas, elas vão ocupar mais espaço. E a estética passará a obedecer a novos padrões, para não ofender os corpulentos que dominam o espaço.

Quem vai perder negócio são os grandes chefes que praticam a gastronomia frugal e que reinventa a definição de qualidade e de opíparo. Não têm como combater a pulsão das gerações futuras pela comida que se desqualifica a si mesma. Habituados a saciar o apetite com doses industriais de comida-lixo, não serão clientes do fine dining: as doses homeopáticas e o preço (exorbitante, a seu ver) que se paga afastá-los-ão das experiências gastronómicas quintessenciais. Anteveem-se falências e a miséria para os chefes com estrelas Michelin.

A menos que eles sejam proativos e antecipem os problemas causados pelas gerações futuras. E se quotizem para uma campanha publicitária que apavore os jovens com os malefícios da comida-lixo. Um possível slogan é: “se te portares bem, não te levo ao junk food”.

3.5.24

Recolher obrigatório

Graffiti 6, “Calm the Storm”, in https://www.youtube.com/watch?v=fX9COjWpmX8

Se forem os fantasmas a povoar a noite, o segredo é o recolher obrigatório. As casas acautelam a intrusão dos fantasmas e nem é preciso exorcizá-los. O sangue continua a não ser febril e os sobressaltos são descontinuados na fronteira das  casas. O caos fica retido na bordadura das casas.

Mas os fantasmas não se amedrontam com as portas das casas. Não respeitam a titularidade das casas. Os fantasmas, como diletos demónios, são à prova de convenções. São agentes provocadores, querem meter-se por dentro dos alicerces das pessoas e impedir que elas durmam. Entram pelo mais ínfimo rasgão que descalafeta as casas. Colonizam-nas e, sob tortura, fazem perguntas sobre os moradores e os seus segredos guardados nas paredes caiadas, para depois atirarem sobre os sonhos encaminhados dos residentes. E as pessoas, desguarnecidas, ficam à mercê da impiedade dos fantasmas. 

É inútil o recolher obrigatório. Os fantasmas não respeitam a intimidade dos lares que se acolhem no recolher obrigatório. O alerta destina-se às pessoas, os fantasmas não entendem essa linguagem. São prevaricadores inatos, se lhes disserem “está em vigor o recolher obrigatório” limitam-se a perguntar a quem se destina, anunciando, com voz incendiária e desdém, que o recolher obrigatório não é para eles.

As pessoas descobrem que o recolher obrigatório está condenado a prescrever mal seja decretado. Não lhes interessa estimar os prejuízos na reputação de quem o decretou. Tanto faz saber se a autoridade deixa de ser reconhecida e se os efeitos da insubordinação a tornam ilegítima. As pessoas querem saber das coisas práticas: como se protegem contra a audácia dos fantasmas que atropelam o recolher obrigatório e as assaltam na profundeza das suas inquietações.  

As superstições podem ajudar a proteger dos fantasmas. As pessoas têm de descobrir o amuleto que assusta os fantasmas. Por tentativa e erro, até descobrirem o antídoto contra os fantasmas. Ou até descobrirem os fantasmas que atormentam os fantasmas que já invadiram as casas. O segredo é conhecer de ginjeira os seus próprios fantasmas para jogar contra eles os fantasmas que os amedrontam. As pessoas têm de ser detetives em causa própria. 

Às vezes, um incêndio é combatido através de um contrafogo. 

2.5.24

Passerelle

New Order, “True Faith”, in https://www.youtube.com/watch?v=mfI1S0PKJR8

As trincheiras não servem para nada. Redutos irredutíveis, desaconselham a lucidez, tudo exacerbando. Os lugares-comuns tomam a vez do pensamento articulado. As posições são levadas para longe umas das outras e não há ponte que as consiga aproximar. Muitas vezes, a beligerância responde pelo exacerbado estado das coisas e remata a divergência com uma exibição de indigência indigesta. 

A oposição aos outros pode vir pela trela do antagonismo de ideias. Ou ser fermentada numa antipatia pessoal, que subjetiva as diferenças, tornando-as artificiais. Ou pode dever-se a mal-entendidos que nunca chegaram a ser dirimidos. Por falta de pontes, ou porque quem se situa em diferentes trincheiras não admite a possibilidade de lançar os esteios das pontes que facilitam uma aproximação. 

Confundem-se diferenças com antagonismo. Há quem se refugie no antagonismo pelo temor do pensamento uniforme. As diferenças arbitram o direito a não seguir o pensamento dos outros, porque alguém não se revê nesse pensamento (ou porque a antipatia pessoal se substitui a essa medida objetiva). As pontes levadiças estão à distância de um gesto. Não precisam de ser erguidas pela concórdia de quem discorda. Podem ser um simples ensaio, uns toros de madeira atirados ao caudal só para experimentar a aproximação das dissidências. O primeiro gesto, se for recompensado, pode industriar voos mais altos: uma passerelle que habilite a conversa entre os que estão em lugares diferentes.

As fronteiras físicas tornaram-se porosas e arcaicas e as pessoas cruzam territórios sem darem conta. Agora, as fronteiras acomodam-se na penúria das diferenças que se exacerbam em posições inconciliáveis. É o pensamento que abriga as novas fronteiras. Como dantes, foi preciso erguer pontes para atravessar fronteiras. As passerelles que subornam oposições exacerbadas são passerelles mentais. Não têm menos prestígio.

As passerelles entre diferentes pensamentos não intuem um pensamento homogéneo. Para bem da biodiversidade da espécie, os diferentes pensamentos deviam ser consagrados como património da humanidade. As passerelles animam o conhecimento recíproco, prevenindo a prescrição do diálogo. Atravessamos a passerelle para conhecer o pensamento diferente, para não nos afastarmos dele sem o conhecermos. E mesmo que nos desviemos da outra trincheira, ao atravessar a passerelle tomamos uma vacina contra o pensamento encolerizado que trava o conhecimento do pensamento contrário. 

1.5.24

A coutada dos vilões

Soft Cell, “Tainted Love/Where Did Our Love Go (Extended Version)”, in https://www.youtube.com/watch?v=q84psZX6MbA

A casa das causas: amamentam-se as ideias que fermentam (diz-se) com a espontaneidade de quem não precisa de causas. Os ossos fraturados curam-se. Os espasmos da alma esbarram no cais onde os carris se arrumam na ferrugem acogulada. O tempo empilhou-se e já não se sabe o que fazer com ele. As nuvens fazem lembrar coágulos que transtornam o dia.

A meio da luz, uns vultos açambarcam o dia. Talvez queiram a desfiliação do estrelato, mas a forma sombria deixa as pessoas perplexas, desconfiadas. Quem não está por mal não precisa de se disfarçar. Cercados pelas pessoas temerárias, os vultos arremetem, esbracejando palavras monstruosas que irão emagrecer o sono dos tementes. Falam de apocalipses certos e não transigem na esperança que costuma ser a âncora do futuro. Ameaçam com um lugar medonho se a redenção não for rogada. A vontade das pessoas à volta está amordaçada pelos vultos que adejam em forma de fantasmas. Interrogam-se se não é maldade pura. Se os vultos não são vilões.

As pessoas amedrontadas tentam virar o palco do avesso, querem esposar o esconderijo dos vilões. Um par de chaves gastas insiste na fechadura, que resiste. Desconfia-se que as chaves foram contrafeitas pelos vultos, intencionalmente. Para ninguém trespassar o seu esconderijo – os vilões têm o mesmo direito de levantar um perímetro à prova de forasteiros e de esconjurar as demandas que intuem a prescrição do seu feudo. Os vilões não querem deixar de sê-lo.

A interminável conspiração do mal contra o bem mobiliza gerações, umas depois das outras. Deu o mote a livros inteiros e à filosofia moral. É preciso conspirar contra o mal para o que mal não conspire contra os valores que habitam na bondade. Só que ninguém tem a lucidez de saber, sem vieses, onde está o mal e o bem, o que é o mal e o bem. Não se erradique a hipótese de adulteração de valores: os tutores do bem, os que assim se situam, serem exímios praticantes do mal disfarçado de bem; e – quem sabe? – os consabidos embaixadores do mal serem embaixadores de uma bondade fora do radar.

Toda a causa tem a sua casa. Embaixada com direito de admissão reservado. Como a maldade que se veste com a indumentária da bondade e a bondade que é um refúgio para fingir a maldade. 

Ainda está por saber do paradeiro dos vilões.