31.5.24

Baixar os braços

Mogwai, “Remurdered” (live Quay Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=UbfoFRRUu2w

Deixa os baldios onde falam alto os espantalhos. Cada alvorada é um trunfo escasso, os olhos deitados no horizonte como se sua fosse a estampa vertical. Há ofensas por toda a parte, já devias ter aprendido os fundamentos da antropologia. Não desmentes os oráculos do passado. Esse é um tempo enquistado e não se presta aos serviços dos cuidadores das almas.

Se o jasmim cresce nas frontarias onde se acolhe o sol, não é por haver um dedo divino. Se as epifanias estivessem no dicionário, não havia sacerdotes a contá-las. Conta com a persuasão do teu sangue, do sangue que se alimenta das luas exangues depois de uma noite. Tu és esse sangue, deitas-te à noite corrompida pela insónia e extrais a seiva que o luar oferece. Juras que não o fazes por vingança.

Não queres ser declarado contumaz na safra dos dias repetidos. Às vezes, redizes as alocuções que afirmaste não repetir: não consegues domar os corredores estreitos do pensamento, são eles que tomam conta do vocabulário que se amontoa numa catalepsia de palavras. Dizem, de ti: és um elefante numa loja de porcelanas. E tu, exasperado pelo efeito sísmico do que dizes e do que fazes, sentes o sangue em ebulição: cada vez menos suportas frases feitas.

Imaginas os braços em baixo. Uma imagem todavia não decadente. Os braços estão grande parte do tempo em baixo. E não significa capitulação, ou deserção das empreitadas que escreveste no caderno de recados para memória futura. Pensas em cidades esquecidas. Em planícies cobertas por arbustos silvestres, como essa é uma imagem do universal equilíbrio que não obedece a nenhuma equação. Pensas nas mentiras que se contam às mentiras. Nos verbetes que podias preencher se fosses enciclopédico. Resistes e tudo isso. Esse não é o teu fadário. 

As romãzeiras desabrocham com o convite da Primavera. O mar frisado pela brisa tardia parece um papel retirado precocemente ao lixo. As pessoas continuam a ser monumentos por sua conta, à conta de um anonimato que se insurge contra as comoções frívolas. E o luar, restabelecido por poderes sortílegos, regressa ao céu para emprestar luz à noite. Já não há lugar a espantalhos. O tempo não se ocupa em ser uma infusão que te deixa sobressaltado à medida que a sua medida se torna exigente.

Os braços podem estar caídos, mas tu sabes que não representam a metáfora da rendição. Que de ti não se exija uma gramática para explicar os sinais deixados em letargia.

30.5.24

Turismo a mais? Entre identidade e cosmopolitismo

Trentemøller, “A Different Light”, in https://www.youtube.com/watch?v=LvFw_6_shUI

Os operadores de turismo exultam: há cada vez mais turistas. Algumas cidades rivalizam com os destinos mais populares na Europa. Quem anda pelas ruas centrais dessas cidades percebe o fenómeno: mais estrangeiros, a quase deserção do idioma pátrio, nas ruas ouve-se uma cacofonia de idiomas vários, a transformação das indústrias associadas ao turismo à medida dos turistas (restauração, lojas várias que servem os turistas, museus). Os operadores de turismo não podem deixar de exultar: este é um país que sempre dependeu (das receitas) do turismo. Quanto mais turistas nos visitarem, maiores os lucros destes operadores.

Quem compare algumas destas metrópoles antes de serem casos de estudo na indústria do turismo lembrar-se-á de como são abismais as diferenças. O centro da cidade quase deserto, perigosamente decadente à noite, viveiro de criminalidades várias, muitos edifícios abandonados, a cidade a morrer por dentro acossada pelo fantasma da decadência. O turismo reavivou o centro da cidade dantes prometido a ser apenas escombros. Os edifícios foram reabilitados, muitos deles convertidos à hotelaria; o número de restaurantes e estabelecimentos similares aumentou espetacularmente; os serviços de apoio ao turismo floresceram, criando muitos empregos; para quem tem sensibilidade cosmopolita, as cidades tornaram-se um viveiro de pessoas diferentes, uma amálgama de idiomas, habilitando a convivência com “o outro” que ajuda ao autoconhecimento.

Todavia, o êxito do turismo pode ser paradoxal. Talvez turismo a mais esteja a adulterar as cidades. Estão a mudar a sua feição à feição do turista. Os nativos deixaram de se rever na cidade, porque a sua identidade caducou. Por efeito da opção deliberada de casar a cidade com o turismo, há um esvaziamento da linhagem autêntica da cidade. Não se diga que as cidades não mudam; mas a transfiguração da cidade à mercê das exigências do turismo absorve a sua autenticidade, reinventando a cidade à revelia dos cidadãos que a habitam.

Em sentido contrário, perfilam-se dois argumentos que contrariam os efeitos adversos do turismo na talha das cidades. Primeiro, este é um movimento que vai ao encontro das exigências do turismo. E quem determina o que deve ser a cidade quando ela responde às exigências do turismo? Não são os turistas, que ninguém lhes pergunta, antes de serem turistas (ou mesmo depois da estadia turística), como deve ser a cidade. A resposta está nos agentes com interesse direto no turismo, com o beneplácito das autoridades (centrais, regionais e locais) que são responsáveis pela configuração da política turística. É uma escolha arbitrária. As “exigências do turismo” são ditadas a partir de dentro, de uma determinada conceção popular de turismo, que garante mais rendimentos e num curto espaço de tempo.

Em segundo lugar, diz-se que a anti-democraticidade da transfiguração da cidade permeável ao turismo é uma falácia. Não são apenas os habitantes que contam para a definição do que deve ser uma cidade que se molda às necessidades do turismo. Ainda que sejam visitantes ocasionais e a sua estadia seja efémera, os turistas também contam para a lógica democrática e participativa do que é a cidade que os acolhe. Não sendo habitantes, assiste aos turistas a mesma legitimidade que aos habitantes? Defender este argumento é uma empreitada onerosa. 

É impossível omitir outra dimensão: a reinvenção da cidade pode extinguir alguns dos traços típicos que compunham a sua idiossincrasia. Ela transforma-se para ser uma coisa diferente do que originalmente atraiu os turistas. É uma cidade virada para o turista, sobretudo para o turista que não tem grandes conhecimentos sobre o tipicismo da cidade e a aceita como ela lhe é apresentada, transfigurada. A cidade foi esculpida para ser diferente e os turistas são vítimas de um logro.

A adulteração da cidade é um produto dos operadores turísticos e das autoridades que consentem nessa adulteração. Os turistas compram, acriticamente, pacotes turísticos, lugares convencionados e uma cidade desambientada das suas raízes. Sem saberem, são cúmplices da re-identificação da cidade que transforma os nativos em forasteiros na sua própria cidade. Sem saberem, os turistas são elevados à condição de soberanos da cidade.

O muito que se perde durante este processo é a genuinidade da cidade prostituída ao turismo. À multidão de turistas não interessa apurar a identidade cultural autêntica da cidade que visitam. Os nativos são tomados por uma sensação de estranheza quando descem ao centro da cidade e o vêm tomado por uma multidão de estrangeiros, quase como se a cidade se tivesse tornado chão forasteiro. Perde-se a traça da cidade que capitulou perante a massificação do turismo e se abeirou de um abismo de difícil reversão. E destroçam-se as vantagens do cosmopolitismo geradas pela convivência com os outros, pois os outros são tão numerosos que já quase não se identificam, nas ruas centrípetas e talhadas para o turismo, os nativos. Com outra agravante: a reprodução destes argumentos tende a ser abusivamente aproveitada por uma já numerosa casta de intolerantes que têm anticorpos aos outros e defendem que os nativos devem merecer a preferência das autoridades.

Um turismo com esta linhagem baseia-se numa cidade que perde o azimute. É um turismo autofágico, que cedeu perante a lógica imediata do lucro, sem cuidar dos aspetos imateriais que deviam fazer a diferença ao cultivar a pertença de uma cidade como destino turístico. A massificação sempre teve a qualidade como adversária. Esta foi a escolha dos operadores de turismo com o consentimento cúmplice das autoridades: um turismo de grandes números, sem cuidar da qualidade – do turismo e da cidade que o acolhe –, um turismo que fez caducar os alicerces culturais da cidade. 

É um turismo que reproduz a “britanização” do turismo: a primeira coisa que o turista tipicamente britânico faz quando chega ao estrangeiro é saber onde se encontra o pub inglês. Porque adora ir de férias e continuar a sentir-se em casa. A cidade turística torna-se a casa que estes turistas procuram quando saem de casa. Para dano da cidade que os acolhe.

29.5.24

Devia ser proibido dizer “a verdade é que”

Radiohead, “Reckoner”, in https://www.youtube.com/watch?v=_uofQD-N6UI

Não há maneira de os imperativos categóricos serem encomendados à prescrição. Não há maneira de ensinar ao cidadão atento que a verdade é que a verdade é muito contingente.

(E, portanto, para não ser refém da incoerência que pretendo desmatar, aquela frase deve ser remendada. Dir-se-á, mais modestamente, que a verdade é contingente, sem imputar ao enunciado a fama de uma verdade para não correr o risco do enunciado ser autodenunciado.)

Acontece muito nos debates de ideias, nas opiniões que se entretecem sobre a atualidade que desata o apetite de analistas de variada cepa, nas conclusões que se atiram para cima do destinatário depois de o autor embarcar numa colonoscopia da verdade. Parece ser fundamentado o receio da superficialidade das análises combinar com a elevada probabilidade de decretar verdades à prova de dolo, porque a análise não se submeteu à exigível anestesia que garante o didático distanciamento do objeto de análise. 

Os peritos são peritos neste método aproximativo: servem-se de potentes microscópios que anatomizam o objeto de análise, o método que julgam infalível. Tão infalível que costumam arrematar, para um público ávido em continuar na sua zona de conforto feita de verdades propugnadas por outros, uma verdade com o selo garantístico de que “a verdade é que”.

Tão minuciosa, tão atomizada é a análise que medra num puzzle milimétrico, que os mentores da verdade à prova de bala não têm lucidez para reconhecer que há outros elementos fora do seu método que podem adulterar a verdade incontingente em que laboram. São os cientistas exatos que aprenderam a nadar dentro de fronteiras e seriam errantes se se aventurassem em domínios que não pertencem ao seu domínio. Aparecem-nos, excitados com um truísmo disfarçado de eminente descoberta com a caução da ciência, como se a ciência não fosse infalível – como se a ciência não fosse o produto do tempo que muda e da ciência que brota dentro dela.

Incapazes de se submeterem a uma exegética anestesia que os traga para o exterior de si mesmos, estes peritos da infalibilidade desperdiçam o potencial heurístico das perguntas. Eles, que tanto procuram respostas, e respostas coroadas com deificadas vestes de uma “verdade que”, ignoram como fazer perguntas. Desconhecem que o proveito de saber fazer perguntas não é a demanda da verdade incontestável. Porque essa pode dizer apenas respeito a quem a formula. E se assim é, o seu agente nunca pode postular que “a verdade é que” seguida da verdade que assim é mercada.

28.5.24

Mangas arregaçadas

 

Justice ft. Tame Impala, “Neverender”, in https://www.youtube.com/watch?v=47YNsf-7Y7c

Mãos à obra: mangas arregaçadas!

Que é de mangas arregaçadas que os braços desimpedidos se atiram à empreitada, sem o embaraço das mangas. As mangas tutelam a preguiça. Se os antebraços não estiverem livres das mangas que os protegem do frio, estão menos dispostos às obras que forem sua incumbência. 

Se assim é, as mangas devem ser arregaçadas mais para trás, deixando todo o braço à mostra. Por maior que seja a extensão do braço sem o agasalho das mangas, maior é a entrega ao labor. Os empregadores que abusam do capitalismo suicidário ainda não se lembraram de estipular nos contratos que devem constar do dress code imperativo braços desimpedidos de mangas. Adivinham-se contendas emaranhadas com os sindicatos, que terão legitimidade para lamentar as más condições de trabalho por não ser aceitável que os braços dos operários fiquem nus durante o inverno. Chamar-lhe-iam, em linguagem bombástica, pornografia laboral.

A concertação social, tão empenhada em infundir equilíbrio nas condições de trabalho, esforçar-se-á por atingir um meio-termo que seja do agrado dos envolvidos. Será a manga arregaçada no sentido tradicional, só deixando o antebraço à mostra, a medida essencial para incentivar o trabalho razoável do operário sem o escravizar com a pornografia laboral. Como complemento, os sindicatos hão de exigir melhor climatização dos postos de trabalho, para que o simples desnudar do antebraço não seja pródigo em propagação de gripes e outros achaques respiratórios. Ficará por resolver uma pendência: como arregaçar as mangas dos que trabalham no exterior? Nos lugares onde o inverno morde com ferocidade, as mangas arregaçadas poderão levar à amputação de membros. Foi para isso que se inventaram as exceções às regras.

As mangas arregaçadas não podem ser um imperativo apenas para a força braçal. Os trabalhadores intelectuais também têm o seu metafórico arregaçar de mangas. Há que o regulamentar, para não privar da exigência uma casta de trabalhadores que não atravessa as asperezas a que estão expostos os trabalhadores braçais. Do imperativo das mangas arregaçadas não se podem dispensar os “altos quadros”, os gestores, os capitalistas que entraram com o capital sem o qual a empresa não existia. 

Por um imperativo de igualdade: uma vez mangas arregaçadas, para sempre e para todos mangas arregaçadas.

27.5.24

Palavra de honra (com e sem ponto de exclamação)

The Jesus and Mary Chain, “Silver Strings”, in https://www.youtube.com/watch?v=RHDP5OdUt3w

Querido diário, o resto da frase convoca o sinal de dois pontos: hoje fiquei em falta contigo. Não te atualizei. Passei o dia (quase todo) a pensar se devemos apensar um ponto de exclamação em certas expressões idiomáticas. Não cheguei a uma conclusão. Diria: cheguei ao avesso de uma conclusão: as convenções gramaticais obedecem a um livro de estilo, mas a liberdade criativa reduz esse livro de estilo a um avo.

Os arrozes que passam para as mesas têm diferentes odores e diferentes texturas. Se te tivesse atualizado de véspera, querido diário, diria que me arrependi de não ter pedido um arroz, ou a sua variante pretensiosa, um risotto. Dissessem antes: devias saber que a especialidade da casa de comer eram os arrozes. Pareces os turistas que viajam sem se terem informado da meteorologia local e depois, acreditando que este é um lugar exótico e nunca faz frio, passeiam-se em chinelos e camisolas de manga curta enquanto lá fora estão nem dez graus centígrados.

À saída do restaurante, fui testemunha de um assalto itinerante: a velhinha foi arrastada uns metros pelos assaltantes (os de certo quadrante político corrigir-me-iam: meliantes, diz-se meliantes) que não chegaram a desmontar da motoreta enquanto arrancavam à força a bolsa pesada das mãos da velhinha. Estive quase a dizer: “agarra que é ladrão”, mas fiquei lívido, sem reação, com medo de usar, sem querer, um ponto de exclamação que podia ser mal interpretado.

Não sei, querido diário, se duvidas das palavras que deixo em tua memória. Às vezes, sinto que me entreolhas com desconfiança; se pedirem interpretação fidedigna, diria que suspeitas que algumas das palavras soam a mentira. Compreendo as objeções. Vives neste lugar que normalizou a mitomania. Asseguro-te, sem precisar de tecer juras imberbes, que não te quero depor. Se vier ao caso, até sou capaz de juntar à frase anterior um “palavra de honra”, que tem efeitos diferentes se levar ponto de exclamação ou não. 

(Só para aprenderes a diferença que a pontuação faz, querido diário: ao dizeres palavra de honra sem a entoação própria de um ponto de exclamação, estás a constatar que uma palavra foi firmada sob a honra de quem a proclamou. Pessimista como és, adivinho-te a fazer um trejeito com a boca em sinal de dúvida metódica: só quem tenciona mentir se esconde atrás de juras do seu contrário. Se deixares uma ênfase convincente no fim da frase, como quem se inclina para a frente em genuflexão à integridade, somas um ponto de exclamação à expressão “palavra de honra”.)

24.5.24

Toupeiras

Spoon, “Can I Sit Next to You”, in https://www.youtube.com/watch?v=6_yJYNF_Qas

Um homem alterado irrompe numa gritaria desembestada. Interrompe um evento sobre violência contra homossexuais. Protesta, com os decibéis que rivalizam com os esteroides que terá tomado para formar tamanha musculatura, contra a perversão dos “bons costumes”, o assalto à “família tradicional”, o dinheiro que o Estado vai buscar aos nossos impostos para financiar ações como a que ele estava a interromper (pois a associação que a promoveu passou a ser financiada pelo Estado). O porte atlético amedronta as pessoas, o que dá palco demorado ao gongórico protestante que, afoito e na presença covardemente silenciosa do juiz dissidente que encabeça o movimento, prosseguiu na ideologização da audiência que haveria de assistir ao incidente através das câmaras da televisão convocadas.

O energúmeno invoca os “bons costumes” e alega a perversão das formas alternativas de vida e de sexualidade e de entendimento do que é uma família. Ergue-se embaixador de um arreigado conservadorismo. Tem direito a ser conservador. Tem direito a discordar dos costumes que vão emergindo e esbarram nos costumes bons de que se diz curador. Tem direito a resistir à sua emergência como costumes, essa é a sua natureza conservadora. E tem direito a pautar a conduta por um código de valores que não se reveja neste código alternativo ao seu. Não lhe assiste o direito a bombardear a liberdade de os outros quererem ser diferentes dele. 

Agora especulemos.

Confirmada a existência de um amplo mercado sexual em que transsexuais e travestis mercadejam favores carnais, ninguém me tira da ideia que estes musculados homens das cavernas sejam a sua clientela preferencial. Ninguém me tira da ideia que estes homenzarrões que transpiram hormonas varonis ficam intimidados pela ideia da nudez diante de uma mulher um milhão de vez mais lúbrica do que eles. Ninguém me tira da ideia que estes conservadores irremediáveis escondem segredos no armário que, se fossem confessáveis, mostrariam algumas das que os seus cânones diriam ser depravações da pior espécie.

Especulemos: porque de há tanto andar por aqui, e de tantas vezes tropeçar em gente que impetra que se dê atenção ao que dizem e escondem o que fazem, com a proteção da reserva que assiste aos bastidores, que ninguém me tira da ideia que estes conservadores empedernidos são o avesso do que exteriorizam, toupeiras que escondem a sua autêntica lavra sob uma máscara subterrânea.

23.5.24

Anfiteatro (short stories #450)

God Is An Astronaut, “Fireflies and Empty Skies” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=FCwBJ-nhZlw

O braço de ferro compunha-se no crepúsculo da História. Os rostos sombrios apoderavam-se das ruas, tiravam dos nomes o ânimo que pudessem conter. Aproximava-se um anoitecer dilatório, o magma a deslaçar-se como se o futuro murmurasse uma convulsão meteórica. Os pássaros e os ocasionais gatos acusavam a perturbação, agitados, em pura desorientação; parecia que tinham perdido a capacidade motriz e vagueavam em coreografias erráticas, à mercê do acaso. Algumas vozes ensurdeciam nos corredores vagos que se escondiam nas águas-furtadas da cidade. Outros, em exílio para lugares ermos, acreditavam que o fim dos tempos só atingiria as metrópoles. Cheirava a um entediante estertor: já ninguém arriscava dizer uma palavra que fosse sobre o futuro. Até nisso a orfandade dos sentidos cobria as pessoas: tirando profecias estéreis, nunca se soube dizer uma palavra que fosse sobre o futuro. Só que agora as pessoas seguiam arqueadas pelo peso do medo, não caíam no logro que as anestesiava. As pessoas sentiam uma invernia a tomar posse do Verão que coincidia com o calendário. Os dias seriam de gelo –  temiam. O sangue haveria de mumificar ao ser assaltado pela inverneira ártica que estava quase a desmentir o apocalipse climático. Nunca houvera tanta desconfiança. Tanta violência desatada gratuitamente, só porque alguém se atravessou no caminho de outrem. As manhãs suavam a cansaço, o sono adulterado fermentava a véspera do sobressalto contínuo: as pessoas viviam acossadas com o horizonte plúmbeo que não se desinstalava do seu lugar centrípeto. Os nomes, desta vez, não contavam. A apatia desinvestia o estatuto de cidadania. As lágrimas secaram. As palavras já não chegavam para poemas, que estavam em vias de extinção. Oxalá as cores diuturnas desmentissem os ares pesados que secavam a respiração. Oxalá fosse apenas um pesadelo. Um apenas todavia tão povoado. Tinha de ser um pesadelo. Apenas.

22.5.24

Tutorial sobre liberdade de expressão (uma proposta modesta)

Beth Gibbons, “Floating on a Moment” (6 Music Live Session), in https://www.youtube.com/watch?v=_-sYa7SeZHQ

A liberdade de expressão é frágil. Talvez uma versão exacerbada contenha riscos para a liberdade que se quer defender. A ausência de limites faz com que a liberdade maximizada de uns invada a liberdade de outros; fica em causa a Liberdade como valor. Noutros casos, a linguagem desaforada de uns poderá autorizar a delimitação de fronteiras que suspendem a liberdade de expressão; a Liberdade pode ficar hipotecada.

Aceitar limites à liberdade de expressão traz um problema: como e onde estabelecer os limites. Aqui começam as divergências, ou não fosse tanta a carga subjetiva quando um conjunto de pessoas reflete sobre a demarcação da liberdade de expressão. A arbitrariedade entra em campo, ferindo as garantias da liberdade de expressão, pois as fronteiras são maleáveis (umas vezes curtas, outras mais alargadas) em função das preferências de quem se coloca na posição de julgador e de quem depõe como réu no anátema da liberdade irrefreada.

Por muito que seja arriscado defender que não há limites à liberdade de expressão, a alternativa encerra consequências piores. Longe de podermos ambicionar soluções perfeitas, quase sempre escolhemos a que implique menos danos. Cotejadas as alternativas, as vantagens em não admitir limites à liberdade de expressão superam as vantagens de impor restrições. Esta hipótese é mais danosa.

O contexto, as circunstâncias e as responsabilidades (políticas e institucionais) dos agentes que maximizam a liberdade de expressão devem ser medidos para apurar se ultrapassaram o admissível. Argumenta-se que a um deputado não deve ser permitida a utilização de palavras e expressões racistas ou xenófobas. Elas são toleradas ao cidadão comum, o contexto em que são ditas é informal. Um deputado tem responsabilidades institucionais. Não consigo entender a discriminação negativa do deputado (e positiva, do cidadão comum), pois não satisfaz o princípio da igualdade. O estatuto das responsabilidades especiais dos deputados não pode legitimar esta desigualdade.

O contexto do episódio que deu origem à polémica em curso também importa. A sensibilidade tem sido seletiva. Não perco tempo com outra (mais uma – o rol será interminável) exibição de boçalidade do líder da direita radical. As palavras ficam por conta de quem as profere. Os partidos das esquerdas esbracejaram furiosamente, queriam que o presidente da Assembleia da República advertisse a insuportável diabrura do líder dos rebeldes. O presidente recusou, invocando a liberdade de expressão. Ato contínuo, passou a ser alvo da ira dos que se opõem às tropelias parlamentares de Ventura. Entrámos no policiamento da linguagem política, que não é compatível com a liberdade de expressão.

Dos que protestaram o episódio parlamentar não se ouviu uma palavra de repreensão ao grupo de jovens que ocupou a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto em protesto contra a beligerância de Israel na Faixa de Gaza. Não está em causa o direito de manifestação dos jovens. Os ativistas recusaram desmobilizar perante queixas de estudantes que sentiram a perturbação das aulas. Isso foi ignorado pelos  embaixadores da liberdade de expressão seletiva. Desta vez estavam distraídos e esqueceram-se de denunciar os jovens ativistas por irem além dos limites da liberdade de expressão e invadirem a legítima liberdade dos estudantes lesados. 

As figuras gradas da seletividade da liberdade de expressão podem graduar as ofensas à liberdade para concluírem que é pior desdenhar dos turcos (são preguiçosos) do que prejudicar o direito de os estudantes da universidade terem aulas com a serenidade desejada. Uma manifestação de racismo e de xenofobia é mais grave do que defender a liberdade de os estudantes terem aulas estando sitiados por ativistas pró-palestinianos. Todavia, já que mantêm a necessidade de limites à liberdade de expressão, o que têm essas figuras a dizer sobre a intolerância dos manifestantes pró-palestinianos na Universidade do Porto? Só se ouviu silêncio.

(E antes que alguém tire conclusões precipitadas, uma declaração de interesses: concordo com o mandado de captura do Tribunal Penal Internacional contra o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel e os três líderes do Hamas. )

É na seletividade das reações perante palavras racistas ou xenófobas dos outros que se industriam os padrões diferentes dos ofendidos. Um deputado pediu desculpa ao embaixador da Turquia (e não esteve mal: impunha-se desmanchar a boçalidade do Ventura), mas, adivinho, já muitos deles devem ter contado anedotas sobre alentejanos em que o fundamento da anedota é a mítica preguiça regional. Uma anedota fora do parlamento não é racismo, é apenas para fermentar a boa disposição. Devíamos começar a prestar atenção a esta xenofobia invertida, para não sermos tutores de (mais uma) discriminação positiva que evita maltratar os outros e não se incomoda com a humilhação dos nossos.

Há um plano pragmático que devia importar na reflexão desta polémica. A experiência recente não terá contado para nada, ou não é reconhecida como tal. Os irredutíveis e os teimosos não admitem que o cerco sanitário à direita radical teve efeitos contraproducentes. A exponenciação dos votos do Chega não se deve apenas ao cerco sanitário, mas deve ter ajudado a reforçar o contingente dos radicais. Manter a marcação homem a homem e cercear a liberdade de expressão dos radicais é o que eles mais querem. O melhor é deixá-los a falar sozinhos, sem que a omissão normalize o discurso boçal, racista, xenófobo, misógino, homofóbico e negacionista. É deixá-los mergulhar na sua própria infâmia. Se for o caso, e a vontade das vítimas diretas do racismo e da xenofobia assim contar, que sejam processados em tribunal à conta dos crimes que puderem ser provados pela via contenciosa. Continuar a dar este palco de confrontação reforça a direita radical. Porque – é bom darmos conta desta lamentável realidade – o racismo e a xenofobia estão mais entranhados na sociedade do que julgávamos. 

Erguer cercas sanitárias que envolvam a peleja corpo a corpo com os radicais não ajuda a resolver este problema estrutural da sociedade. Só o agrava. Os advogados de defesa da imposição de limites à liberdade de expressão querem arcar com esta responsabilidade? Deixamos-lhes a arrogância de determinar o que pode e não pode ser dito? Podemos chamar a isso censura (mal) disfarçada?

21.5.24

Estação

Justice, “Generator”, in https://www.youtube.com/watch?v=MZTg2WMb8Ps

Os relógios estavam enganados. O vento soprava do lado contrário. As pessoas andavam com sapatos descasados. Os gatos vadios não fugiam das pessoas. Nas televisões, as más notícias estavam omissas há umas horas valentes. Os políticos meteram a hipocrisia no congelador (até ver). As pessoas não desconfiavam umas das outras e não eram boçais. Não havia beligerância disfarçada de desporto, a pretexto de inimizades regionais. 

As invejas estavam anestesiadas. Não havia maus modos à mesa (porque as pessoas abdicaram deles). As metáforas já não eram o refúgio de fingimentos avulsos, eram genuínos recursos estilísticos que enriqueciam a linguagem. A ironia tinha deixado de ser ofensiva. Os matadouros humanizaram-se. Já não havia injúrias causadas pelo apuramento da História. Os dogmas foram extintos. Os acontecimentos não pediam autorização. Em vez de julgamentos sumários, falava mais alto o respeito pela liberdade de os outros serem como eram. A lhaneza desta petição de princípio foi reconhecida.

A discriminação positiva foi extinta, enfim reconhecida como discriminação. As artes não precisavam de manual de instruções. As pessoas deixaram de trazer a tiracolo um manual de intenções e um prontuário sobre o esclarecimento da ironia que praticassem. As mentiras aconteciam, como é inato, mas não tinham consequências. Os sacerdotes do apocalipse entenderam que essa é uma bandeira puída. 

Já não havia “cães de guarda” a dormir ao relento e com a liberdade acorrentada. O epicurismo foi acertado. As ideias deixaram de ser treslidas e os outros faziam fé na boa-fé dos procuradores das ideias. Os poetas deixaram de ser indigentes, sem serem curadores da abastança. Os multimilionários fizeram a vontade aos socialistas de diversa cepa, que ficaram angustiados pela exaustão da causa ontológica. Os ociosos deixaram de ser perseguidos pelos bons costumes. Os bons costumes perderam o substantivo e o adjetivo.

Deixou de haver património da humanidade, porque a humanidade é um património inteiro e intemporal. Os sonhos já não eram risíveis. As armas deixaram de ser terçadas. A ciência não era ultrajada. Os indefetíveis nadadores do conservadorismo perderam as boias de salvação. Os apóstolos da sistemática vanguarda não tiveram tempo para rir: depressa caiu a sua máscara e um radicalismo de moeda oposta ficou à mostra. As intenções deixaram de ser intuídas. Os nomes passaram a valer pelos seus titulares. 

Já o mundo continuava repleto de imperfeições, reconhecidas e assumidas como tal, na maior prova da sua perfeita imperfeição.

20.5.24

No calcanhar da justiça

Beth Gibbons, “Lost Changes”, in https://www.youtube.com/watch?v=sXRJWVvSGIs

No cabo dos bacalhoeiros, não ventava como nos outros cabos limítrofes. Dos dois lados do promontório, havia enseadas que cobravam o abrigo que os bacalhoeiros procuravam se o vento se sublevasse, dando às águas uma agitação tempestuosa. Este movimento iracundo do vento, em vésperas de os bacalhoeiros aportarem, era próprio de um agiota que extorque do plácido povo tudo o que tem até às costuras dos bolsos. 

(A quantidade de bacalhau que se podia perder, se não fosse o obséquio do cabo dos bacalhoeiros.)

A contingência trata de ratear a fortuna e o infortúnio. Atrás do bacalhoeiro que foi a tempo de se abrigar da intempérie, outros três da mesma frota ficaram à mercê do desamor dos mares e de Neptuno, o seu tutor. Os marinheiros embarcados nestes barcos tiraram a má rifa no apuramento avulso dos fados por calhar. A possibilidade de naufrágio latejava no sangue em ebulição, lutando arduamente contra os golpes de mar e o timoneiro já a entoar as melhores preces, entregando o leme do bacalhoeiro nas mãos fantasmas de uma divindade que se opunha a Neptuno.

Os minutos nunca mais terminavam. A tempestade embaciou o campo de visão, adulterado pelos solavancos feéricos que cavalgavam nos bacalhoeiros erráticos. Parecia o desterro em pleno mar: os pescadores tinham de ser marinheiros, mas já nem sabiam do tempo para as orações que lhes tinham ensinado na catequese e de que os mestres das embarcações exigiam conhecimento como requisito de admissão na tripulação.

A eternidade foi aliviada pelas tréguas da tempestade. O alvoroço do mar não cessou tão depressa. Mas os corações dos pescadores começaram a abrandar à medida que recuperaram a medida do horizonte. Os mestres recuperaram o domínio dos lemes e encaminharam os bacalhoeiros para o azimute do cabo dos bacalhoeiros, onde sabiam encontrar asilo. A safra estava protegida – os jornais já não poderiam exercer a sua propensão para o sensacionalismo caso os bacalhoeiros tivessem naufragado, mais preocupados com a escassa safra do peixe favorito que ditaria a sua carestia. 

(Como uns quantos cadáveres de um peixe nobre, à espera de serem retalhados depois de tirocínio na salga, valem mais do que duas mãos cheias de pescadores naufragados. Vai mal, ai pois vai, o capitalismo.)

Os bacalhoeiros tresmalhados iam pagando a ousadia do atraso com o naufrágio. Estiveram hipotecados, à mercê da justiça. Salvaram-se por pouco (logo depois, outro golpe de asa da tempestade: este teria sido fatal). Foram todos à boleia do calcanhar da justiça.

17.5.24

A pele do cinismo

Mura Masa & Tirzah, “Today”, in https://www.youtube.com/watch?v=BE0XuCW-vYo

A inteligência pode rimar com maldade. A maldade pode ser um fruto da inteligência. Ou não: o cinismo é uma figura de estilo só ao alcance de quem está munido de um módico de inteligência. 

O cinismo não é um exercício de maldade. Os que são atingidos pelo cinismo podem acreditar que sim. Fazem uma tresleitura do cinismo. Imputam um anátema a quem os atira, através do cinismo, para um lugar desconfortável. Confundem os planos: o cinismo opera a liberdade de expressão sem ofender a dignidade dos que são apanhados na sua rede. É a validação da inteligência que tutela esse equilíbrio precário. De outro modo, confundem cinismo com intolerância para o receber olimpicamente. 

As vítimas de cinismo: esta é uma expressão que devia ser banida do léxico. Ninguém é vítima do que não representa um ato cruel. Os alvos deviam saber que não há regra que impeça usar o cinismo para responder ao cinismo. Ou que, não querendo recorrer a essa arma não beligerante, o exercício do cinismo não materializa um conflito entre duas liberdades de sentido oposto. Estar no lugar do destinatário do cinismo obriga a um ato superior de inteligência (superior ao ato do próprio cinismo): tolerar o exercício de cinismo e receber as balas dardejadas desse cinismo com um bom poder de encaixe. 

A nossa pele é ambivalente. Nela encontramos cicatrizes que são os despojos do cinismo que se verteu sobre nós. É a mesma pele que é adestrada no cinismo, um antídoto contra a feição odiosa do mundo. O cinismo não precisa de ser permanente. Deve ser usado com critério e moderação, para não se transfigurar num lugar-comum analgésico. O cinismo manifesta-se no uso não exaustivo da inteligência, para que inteligência e cinismo não sejam banalizados. 

Vamos à pele tatuada de cinismo encontrar a inspiração para usarmos o cinismo como a escotilha que se abre à luz clara.

16.5.24

O navio tem uma gramática

Expresso Transatlântico, “Porque Nada Tem um Fim”, in https://www.youtube.com/watch?v=GsEjhL6m4PE

O navio engole o mar, adultera o forte e de fraco tomou o mar que o separa do porto distante. Amanhece, não estremunhado, com a coragem para que foi feito no estaleiro sem paradeiro. No seu interior, a tripulação está de barriga cheia depois de uma breve temporada em que os homens estiveram desembarcados. As suas peles reluzem, como se a temporada em terra tivesse sido terapêutica e os homens houvessem frequentado spas para as almas. 

E como é um spa para a alma? No caso de marinheiros que atravessam os mares de fio a pavio, dando o corpo às piores tempestades, é poder ter os pés em terra assente. É o direito ao temporário exílio do mar, o eufemismo do descanso semanal, a evasão do salitre, da humidade tatuada nos ossos, do cabelo hirsuto de tanto sal que o cobre. 

Como é que um spa para a alma melhora a pele? Os marinheiros refugiam-se do mar, tornam-se temporariamente homens de terra, entregam-se às delícias de quem tem uma terra para habitar. Sem terem uma casa que possam dizer sua. Retiram a pele da erosão dos mares; é como se deixassem de ser homens do mar e encarnassem a sua antítese, tornando-se homens de terra (mas não da terra, pois são os maiores nómadas, não pertencem a terra nenhuma. Muito menos à que vem averbada como lugar de nascimento). 

Os marinheiros têm morada fiscal no alto mar. Por isso, estão isentos de impostos – o mar é tão extenso e tão alto se constitui que escapa a qualquer jurisdição terrena. A isenção dos marinheiros é legítima. Compensa o sacrifício de semanas inteiras submetidos ao cerco dos mares. Compensa o antídoto forçado contra os enjoos ditados pelo mar tempestuoso, as refeições desconsoladas, a dormida em beliches exíguos, a paisagem repetida. 

Os marinheiros veteranos, se se dessem aos cálculos criteriosos, chegariam à conclusão que foram mais os dias embarcados, com o mar indiferente por companhia, do que os dias a fazer companhia a terra firme. Pois é nestes termos que a questão deve ser colocada: eles é que acompanham a terra em que fundeiam, não o contrário. São lobos do mar. Desenraizados quando os pés assentam na terra-terra. 

Em todos os portos devia ser levantada uma estátua ao marinheiro. E outra aos seguros navios que são a sua morada.

15.5.24

O Amadeu não era de queixumes

Lisabö, “Gure Hitzak”, in https://www.youtube.com/watch?v=MNH72NIoJx8

Podiam soar os trovões da dor. Podia o sofrimento escavar na pele até se tornar cal em cima da carne. Podiam gritar, inomináveis, as injustiças que assombravam o sono. Podiam açambarcar a fala contra o direito ao queixume. O Amadeu transigia, calado, sofrendo como sempre aceitara o sofrimento, em silêncio. 

Abria uma exceção contra o silêncio como idioma da resignação, quando era testemunha involuntário dos males injustificadamente debitados nos outros. E os outros podiam ser outros para o Amadeu, autênticos forasteiros no seu raio de ação, que logo arbitrava a pendência. Insurgia-se, irascível, metendo pose ameaçadora que dissuadia os feitores das crueldades em curso. Ficou por anotar em livro próprio o inventário das dores que poupou aos outros. O Amadeu era mais amigo dos outros, mesmo quando não eram do seu conhecimento, do que dele mesmo.

Depois entrava em abstenção quando os próceres da iniquidade se abatiam sobre ele. Não queria saber dos infortúnios; não se lamentava, nem no forte apelo da consciência, deixando que o infortúnio fizesse o seu trabalho sujo até ficar um farrapo, estilhaçado pela angústia. Se alguém chamava a titularidade de um vexame, Amadeu condescendia. Era porque aquela pessoa achava que o distrate era preciso; Amadeu, se fosse o caso, ganhava (e de longe) o campeonato da ingenuidade.

Quando Amadeu interpretava os desacontecimentos que o afligiam como um curso do acaso, sabia que o mundo é ilegível. Metia-se dentro de um parêntesis, à espera que a tradução do acaso esgotasse a validade. Fingia. Fingia que o acaso é cruel e patrocinava a indigência como refúgio dos contratempos que vomitavam uma lava doentia sobre os dias consecutivos. Amadeu ficava à margem do tempo, como se fosse um fantasma que escapa à boca faminta dos vultos que povoam o tempo.

O Amadeu podia aproveitar o mesmo livro onde anotaria as proezas edificadas contra a crueldade que se abatia sobre os outros para debruar a ouro as vezes em que fora vítima de crueldades sem recorrer ao queixume. Ao contrário dos jogadores de futebol, que se contorcem num exibicionismo pueril a fingir uma dor que não têm, Amadeu compensava com a abstenção do queixume.

14.5.24

(O perdão dos) Fazedores de conspirações

The Chemical Brothers, “The Test”, in https://www.youtube.com/watch?v=yhS9LnDoo_w

O azedume pela verdade estava dissimulado, escondido das veias determinantes. Uma pletora de dias cercava o oxigénio, cuidando da apoplexia dominante. Eles diziam ser desenraizados, os músculos fora de uma pertença, ou colonizados por um tempo a destempo que os mobilizava contra os lugares-comuns e as convenções. Queriam ser párias, por não se sentirem bem na pele de cidadãos com o estatuto exemplar de uma conduta acrítica.

Começaram a fazer conspirações. Ao início, eram só diletantes. Conspirações de pequena monta, com audiência restrita. A desonra da verdade não os incomodava, nem feria os destinatários: eram pequenas mentiras, coladas com a saliva da rebeldia. Sem intenção malévola (se se descontar a teórica maldade que está sempre presa a qualquer mentira, mesmo as piedosas). 

Não estava em causa mentir – ou o abalo sísmico que a mentira podia causar nos alicerces da consciência. Queriam uma sublevação que tingisse o mundo com a desobediência. Era criterioso, o latejar dissidente que se apurava naqueles rostos desassossegados. Talvez a conspiração desbotasse a letargia das gentes. Não importava que a conspiração rimasse com mentira; a conspiração seria uma mentira benévola, resgatando as pessoas de uma obediência acrítica que não questiona os alicerces, que aceita como dados os pressupostos que se soerguem com a costura do inquestionável, atirando cortinas baças para cima dos olhares. Domesticando-os.

Admitiam que conspiravam; não admitiam em público, o consentimento ficava reservado ao círculo próximo e aos demais que tinham inventado uma confraria com o propósito da conspiração metódica. Para que não houvesse dúvidas das intenções, escondiam-se numa célula de contra-conspiração que atirava cortinas de fumo sobre as conspirações de que eram autores, só para obrigarem as pessoas a serem seres pensantes. 

Para não serem acusados de parcialidade, semeavam conspirações para todos os gostos. Recolhiam o inventário das conspirações e as marés vivas que elas causavam. Mediam o tumulto e comparavam o estado do mundo depois de apurada uma conspiração. Quando a escala de Richter subia ao vermelho, retiravam-se para assistirem ao espetáculo do pensamento à distância.

13.5.24

A casa dos sonhos

Nick Cave & the Bad Seeds, “White Elephant” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EpvGTav6TWU

Entro na casa dos sonhos e fico sem armas para saber de que são feitos os sonhos. É como se os pés andassem sem chão por baixo, ou uma trovoada ecoasse por dentro das veias, escurecendo o sangue. A metamorfose da noite valida as sombras que se demoram num exílio involuntário. Tudo o que acontece no sonho não aconteceu, mas parece que tingiu a pele com cicatrizes indeléveis. 

O que separa um sonho de um pesadelo é um fino fio que torna a fronteira indeterminada. Os sonhos são habitados por pessoas e palavras que conspiram contra a medida habitual do tempo que nos alberga. Por dentro da casa dos sonhos, não sabemos se somos a mesma pessoa, ou se encarnamos noutras personagens que não chegaram a medrar na arcadas visíveis. Os sonhos oferecem alvíssaras que não têm tradução fora do sono.

Se o sono é trespassado por uma tempestade onírica, ele não termina com a exaustão que era o seu estado prévio. Os interstícios do pensamento estão ativos, intensamente ativos, libertando-se da vontade em que temos freio. Mas depois vem um sonho montado no dorso e a vontade em hibernação coloca-nos à mercê da contingência do sonho. Tornamo-nos atores. Seguimos um roteiro, seduzidos pelo papel de marionetas, seguindo as falas que o roteiro nos põe na boca. 

É quando intuímos que os sonhos não são muito diferentes da tutela da vontade. Também somos atores congeminados numa constelação de acontecimentos acima da nossa vontade. Também somos acasos, movidos por uma gasolina exterior, atirados para latitudes que apetecem aos ventos rasantes. Somos figurantes, em vez de personagens. Mesmo quando tutelamos as nossas vidas, no desembaraço dos sonhos, e nos julgamos protagonistas.

Temos medo dos sonhos? Se for pelo risco de se transformarem em pesadelos, tememos os sonhos. Mas não devemos nada a esse medo. Não devemos nada aos pesadelos. Por vezes, o odor da realidade consuma pesadelos que dispensam o sono. O medo não deve ser transferido para o sono legítimo.

10.5.24

Moção de censura

Anohni and the Johnsons, “Why Am I Alive Now?”, in https://www.youtube.com/watch?v=5NLyFXWEN0c

1.

Queriam servir sumo de limão. Por castigo. O azedume cítrico combina com a impressão que a limonada é indigeríveis se não vier somada de açúcar. Ninguém quer saber que adocicar os limões adultere a sua têmpera. As convenções acolhem muitas farsas da mesma igualha.

2.

Era dia de homenagem a uma vida inteira de dedicação à “causa pública”. O servidor dera muito de si à causa e ela fora moldada (e aperfeiçoada) à feição do seu voluntarismo. Talvez a corcunda encarnasse os sacrifícios que fez para que a causa tivesse reconhecimento e fosse acarinhada. O homenageado trazia às costas as cicatrizes dessa entrega. Não havia cura para as cicatrizes. A homenagem era como se fossem as exéquias antes do tempo. O homem terrivelmente envelhecido não esboçou um sorriso. Adivinhou o estertor, que devia acelerar após a homenagem. Não teve coragem de a recusar, tal o empenho dos delfins. Ninguém o desconvencia que a homenagem não era para si. Era para o empenho dos continuadores não perder vigor.

3.

Na fila para a caixa do supermercado, um casal bem apessoado despeja em cima do tapete caixas e mais caixas de vinhos. Não se importunam com os olhares indiscretos dos clientes vizinhos, nem com o esgar de cinismo que espreita pelo canto da boca da “operadora de caixa – Ana Luísa”. Os pergaminhos dispensam justificações. Às malvas, a democracia que é coincidir no supermercado com o demais povaréu.

4.

O pescador retira, através da cana de pesca, um peixe que deve ser enorme, a crer nos esticões que, um ou outro, quase derrubam o pescador. A força do pescador derrotou o peixe. O peixe tem envergadura. E uma cabeça que triplica o perímetro do corpo restante. O pescador acena a cabeça em sinal de desabono, percebeu que o peixe é inútil. Devolve-o ao rio, possivelmente moribundo. Quem disser que isto é pesca de lazer, pergunte ao peixe vítima da falsa generosidade do pescador.

5.

O padre da paróquia despacha os peregrinos que vão partir para a intendência sacrificial com uma reza apressada. Os peregrinos estão convencidos que a fé quadra com o sacrifício e a dor. “Sofre e abstém-te.” O padre está cheio de pressa – o jogo deve estar quase a começar. O jornalista que acompanha os peregrinos dispara uma pergunta provocatória: o padre aconselha que o percurso derradeiro maximize o sofrimento quando os peregrinos se ajoelham, arrastando-se penosamente até ao altar? O padre fingiu surdez. Aos dez minutos de jogo, o adversário já estava a ganhar dois-zero.

6. Era nas cumeadas, quando o silêncio tingia o tempo, que se refugiava das pessoas excessivas e da cidade contundente. O silêncio suspendia o tempo. Cercado pelas serranias à ilharga, sentia que a erosão do chão lhe devolvia a audácia que precisava para mais uma temporada de exílio na cidade. À falta de uma moção de censura, usam-se outros métodos.

9.5.24

A Europa (ainda) é um ensaio

Groove Armada, “But I Feel Good”, in https://www.youtube.com/watch?v=M939hOS6BJs

A União Europeia é uma promessa de paz que se materializou. É um ente político que se avivou com a passagem do tempo, com os desafios e os contratempos que enfrentou. Temos na Europa uma promessa contínua de se tornar algo mais para não ficarmos desorientados e à mercê de infortúnios que enfraquecem a nossa capacidade de reação.

No ano em que se completa meio século de democracia em Portugal, não se levantam as mesmas bandeiras, nem se encenam festividades semelhantes, por a primeira Comunidade Europeia completar 72 anos. A cabalística (72 não é um número redondo e celebrável como 50) não explica tudo. A comparação anterior pretende situar a integração europeia ao mesmo nível da revolução que inaugurou a democracia em Portugal? Ensaio uma interpretação heterodoxa: muito embora em abril de 1974 estivéssemos longe de sonhar com a civilização europeia que despontava, a entrada nas Comunidades Europeias foi uma revolução com horizonte temporal distante que ofereceu os alicerces de que a democracia infante precisava. Sem a adesão às (então) Comunidades Europeias, as dores de crescimento da democracia poderiam ter maiores e mais prolongadas.

Como portugueses, temos legitimidade para instrumentalizar a UE. Que atire a primeira pedra o país que pertence à UE que não o faça. Nem o mais euro-optimista pode negar que o projeto da Europa unida só fez o seu caminho porque os países membros dele recolheram vantagens. Não me interessa estimar os ganhos (e, já agora, as perdas) por Portugal integrar a Europa unida. No dia da comemoração da União Europeia, o que importa é uma tarefa ambivalente: explicar por que a ideia de Europa unida foi uma boa ideia, evitando lugares-comuns e a complexa linguagem dos peritos sobre Estudos Europeus (e que tende a assustar o cidadão, afastando-o da Europa que se assemelha a uma torre de Babel). Proponho um apanhado de ideias sobre o que esta Europa é e o que não é.

A Europa é um lugar de coexistência pacífica. Um legado de paz deixado em memória futura às gerações que, entretanto, vão cultivando algum desconhecimento sobre a História recente do continente. Mergulhar nas raízes desta Europa unida é uma mnemónica para o futuro.

A Europa é uma casa comum que perfilha valores humanistas, uma vanguarda que se estabelece em domínios vários sem o pretensiosismo de um neocolonialismo disfarçado na voz de um “exemplo a seguir”. Mandatar a Europa para ser exemplo pode sitiar a liberdade dos outros. Uma Europa que anime uma liberdade condicionada é uma Europa que nega os seus valores.

A Europa é um lugar onde a defesa da concorrência tem vindo a abater monopólios que aglomeravam a riqueza contra os interesses da maioria dos consumidores. Está é uma medida de democraticidade do bem-estar que costuma escapar ao radar das análises.

Na Europa convergem interesses dos países que a reconheceram como porta-voz com uma dimensão capaz de ser ouvida no plano internacional, evitando a decadência pressentida após o fim da Segunda Guerra Mundial. É um anão político e militar, mas vai fazendo o seu caminho feito de pequenos passos, como sempre aconteceu na construção europeia. 

A Europa é um santuário do Estado social, na confluência de inspirações ideológicas que se complementam num híbrido singular. Em tempos de polarização e afirmação eleitoral de populismos de diferentes linhagens, a Europa situa-se num radicalismo de centro que tem a tolerância e o respeito pelos outros como valores matriciais.

Contra os piores prognósticos, a Europa atravessou várias crises, até algumas que foram entendidas como existenciais, sobrevivendo e saindo reforçada. Há até quem sugira que sem crises a Europa não teria chegado ao patamar de crescimento a que chegou.

Mas a Europa não é um Estado, nem aspira a sê-lo. O medo dos que não desistem de exorcizar o federalismo como devir da UE não é tangível. A Europa não hipotecou a soberania dos países europeus, para sossego dos que avivam a descaracterização da soberania nacional por ação da corrupção ditada pela União. Se a UE não dispõe de soberania, os Estados membros não podem perder soberania a seu favor. 

Para apaziguamento dos cultores dos nacionalismos identitários, não se concebe uma identidade europeia que se sobreponha às identidades nacionais. Para os que ignoram os fundamentos e a História da UE, “unidade na diversidade” sempre foi o lema desta Europa politicamente original. Para sossegar os arcaicos que ainda vivem nos contrafortes de um tempo que teve o seu tempo, termos mais Europa não significa que deixemos de entoar o hino nacional ou que a bandeira seja atirada para um estatuto subalterno. A Europa onde vivemos não é a Europa dantesca que serve os propósitos dos que exaltam a pertença nacional e desdenham os outros, como não serve os desejos daqueles que correm atrás de miragens ideológicas datadas. Ser Europa hoje não é congeminar os Estados Unidos da Europa.

A União Europeia é uma casa comum, a casa europeia onde os países conseguiram coexistir desvalorizando as diferenças. Aceitam que essas diferenças – o seu reconhecimento, a tolerância perante elas e os esforços para encontrar uma síntese que ultrapasse as divergências – é parte do seu património comum. Um português não será um finlandês, mas senta-se à mesa da governação europeia para, em conjunto com os outros Estados membros, dar um contributo para resolver os problemas que a modernidade faz escapar da alçada de cada país. Esta é uma casa comum que defenestrou os fantasmas não tão distantes como se possa pensar, para sermos um lugar comum onde as diferenças são excedidas.

A virtude maior desta Europa é ser um projeto inacabado. Um projeto em contínua construção, aberto às vozes que queiram ser artesãs de uma construção em aberto. Não podemos silenciar essa que é a nossa voz. Não podemos ser europeus ser conhecermos a Europa.

8.5.24

Tração atrás

The Breeders, “Huffer”, in https://www.youtube.com/watch?v=P7F3vWGQsVI

A mania – incorrigível – de espreitar pelo retrovisor pode dar para o torto. Nomeadamente: chocar estrepitosamente na parte de trás de quem segue à frente; ou apenas desviar o tempo que conta por conta da distração com o tempo pretérito.

Às vezes, chamam-lhes velhos do Restelo. Ninguém sabe de que padecimento sofrem os velhos, em especial, do Restelo. O anátema conservador está entranhado. Deles se diga que são as forças que reagem contra os propostos avanços do mundo – que, em linguagem que não se aparte do rigor, são dados adquiridos, não são negociados com a cidadania que os recebe, apática. 

Se falassem de carros, seriam os partidários da tração traseira e da caixa de velocidades imperativamente manual. Como lobrigam em socalcos afins ao marialvismo (que, entretanto, ganhou um novo nome: masculinidade tóxica), não demoravam a entretecer laboriosas analogias entre automóveis empurrados pelas rodas de trás e engrenar manualmente as mudanças que combinam a velocidade com o aproveitamento do motor. O humor não é universal, também se envidraça no consentimento do mau gosto.

Esses arcaicos, sitiados na exaustão do tempo presente, mergulham na nostalgia acerba. “Quando só havia carros movidos a tração traseira”, cospem a saudade fátua. Esquecem que a tração traseira é astuta: nos terrenos escorregadios, é difícil manter a aderência à vida real. Ou partem para a alunagem a um chão desconhecido, ou andam à luta contra o volante para voltarem a ter as rédeas na dinâmica que atraiçoa a mecânica. Era pior: não havia direção assistida, era preciso uma força bruta que não era para qualquer um.

Hoje a tração traseira e as caixas de velocidades manuais entraram em desuso. A favor dos condutores, a direção assistida suavizou o esforço da condução. Os que andam à procura de fantasmas no nevoeiro do passado, só para se investirem de heroísmo combatendo oráculos fabricados à pressa, esqueceram-se do futuro e só se lembram de usar o passado a tiracolo. 

Perderam a bissetriz do tempo. Deles não é o compêndio que encorpa as mudanças. Continuam a derrapar na tração traseira. Não os demove a contínua agonia de quem veste as dores da tração traseira tradicional. Têm medo do futuro, suspeitam que é feito de um buraco negro. Preferem a tração traseira. Contextualizam: andam mais no fio da navalha, conforme é do agrado da adrenalina. Pretextualizando.

7.5.24

Loop (ou, as coisas inacabadas)

Pond, “Man It Feels Like Space Again” (live at Melkweg Amsterdam), in https://www.youtube.com/watch?v=cKpRy6n4ddw

O sumo que escorre da manhã certeira despe o dia dos preconceitos que a noite tinha legado. Diz: “este é o dia em que não vou deixar as empreitadas pela metade”. O dia começa promissor. Ter encaixado a jura interior era a prova.

E o dia continuava a prosseguir na sua radiosa feição. À hora do almoço já cumprira quatro pequenas, mas todavia incisivas, demandas. Algumas estavam pendentes do passado. 

(E como o passado era maldito, ou soava a maldito, quando  resgatava as pendências: era como se não deixasse de ser algo pela metade, ou até menos; olhava em redor, via pessoas, aparentemente felizes, outras meijengras, e tinha a impressão que elas não eram como ele, que deixava quase tudo por fazer para se enredar num mar interminável de distrações.)

Pela tarde, o pensamento começou a olhar para muitas árvores de fruto ao mesmo tempo. Era admirável esta sede de conhecimento, como porfiava para não estreitar os horizontes. Dispersava-se por um número tão grande de coisas que perdia o seu número, incapaz de as inventariar. Incapaz de saber onde tinham ficado as coisas pelo início de um processo e onde tinham ido uns passos adiante, mas nunca muito além do meio do caminho. 

A cabeça era embaixadora da errância. Forasteira constante, dando o braço aos ermos lugares que ardilosamente pediam asilo, catecúmena sem consumar as juras. Era uma cabeça que funcionava como palimpsesto, como se fosse um livro gigante desdobrado em títulos, por sua vez abertos em capítulos, secções, subsecções, itens avulsos. E ele deixava de saber onde estava a rédea dos processos de que era tutor: por exímia que a memória fosse, não era humanamente possível tutelar tanta matéria que queria ser o prisma do pensamento à procura de paradeiro.

Era uma cabeça em loop, uma gruta funda onde tinham morada as múltiplas personalidades em que se dividia. Ao fundo, numa arca gasta pelo tempo de que se distinguiam as dobradiças enferrujadas, alojadas as pendências, ora esquecidas, ora fingidamente negligenciadas no biombo da memória sacrificada. De tantas coisas inacabadas, sentia-se órfão de si mesmo. Em raros momentos de lucidez, tomava em mãos o siso que parecia extinto para se convencer que as coisas são sempre inacabadas, mesmo quando lhes costuram uma finitude à bainha. 

Que mal tinha ser mais um a encorpar o palco onde se terçam as farsas que tudo foram colonizando? 

6.5.24

Se te portares bem, não te levo ao junk food

Fat White Family, “Work”, in https://www.youtube.com/watch?v=jdCchCi6X28

Dantes, metiam-se fantasmas pelo meio para assustar as crianças (e os adolescentes, já não tão convincentemente). Agora, prometem-se guloseimas silenciosamente venenosas que os colocam no abismo da obesidade, corpos disformes antes do tempo. Os conspiracionistas de diversa cepa asseguram, só porque sim, que as multinacionais que fabricam comida-lixo metem ingredientes que industriam a viciação. 

(Não me importo com os conspiracionistas.)

Agora, os pais podem prometer um bodo se convencerem a descendência a não irem ao junk food. Os conspiracionistas aplaudem e as culturas de vermes (a crer na ladainha dos conspiracionistas) agradecem. Os fantasmas de outrora têm um formato diferente. Se queremos punir os petizes, mandemo-los para os estabelecimentos onde se come comida-lixo. Mais tarde, os seus corpos deformados e carregados de celulite frequentarão psiquiatras e nutricionistas antes de voltarem a sucumbir à gula, incapazes de resistir às forças moleculares que desatam a pulsão pela comida-lixo. 

(Afinal, existe uma conspiração entre as grandes multinacionais da comida-lixo, os psiquiatras e os nutricionistas. Dirão os conspiracionistas.)

O enorme perímetro abdominal, as pregas que adejam sobre os lancis das coxas, o queixo que já fareja o triplo patamar, o difícil que é respirar, um coração quase sempre no parapeito do abismo, a vergonha de ir à praia para não se ser cunhado depreciativamente – ou não; se os petizes não se amedrontam com a ameaça (“se te portares mal levo-te ao junk food”), e se houver um efeito de contágio, os corpos serão maioritariamente vultuosos, numa concessão voluntária à obesidade. As gerações futuras serão menos ecológicas, elas vão ocupar mais espaço. E a estética passará a obedecer a novos padrões, para não ofender os corpulentos que dominam o espaço.

Quem vai perder negócio são os grandes chefes que praticam a gastronomia frugal e que reinventa a definição de qualidade e de opíparo. Não têm como combater a pulsão das gerações futuras pela comida que se desqualifica a si mesma. Habituados a saciar o apetite com doses industriais de comida-lixo, não serão clientes do fine dining: as doses homeopáticas e o preço (exorbitante, a seu ver) que se paga afastá-los-ão das experiências gastronómicas quintessenciais. Anteveem-se falências e a miséria para os chefes com estrelas Michelin.

A menos que eles sejam proativos e antecipem os problemas causados pelas gerações futuras. E se quotizem para uma campanha publicitária que apavore os jovens com os malefícios da comida-lixo. Um possível slogan é: “se te portares bem, não te levo ao junk food”.

3.5.24

Recolher obrigatório

Graffiti 6, “Calm the Storm”, in https://www.youtube.com/watch?v=fX9COjWpmX8

Se forem os fantasmas a povoar a noite, o segredo é o recolher obrigatório. As casas acautelam a intrusão dos fantasmas e nem é preciso exorcizá-los. O sangue continua a não ser febril e os sobressaltos são descontinuados na fronteira das  casas. O caos fica retido na bordadura das casas.

Mas os fantasmas não se amedrontam com as portas das casas. Não respeitam a titularidade das casas. Os fantasmas, como diletos demónios, são à prova de convenções. São agentes provocadores, querem meter-se por dentro dos alicerces das pessoas e impedir que elas durmam. Entram pelo mais ínfimo rasgão que descalafeta as casas. Colonizam-nas e, sob tortura, fazem perguntas sobre os moradores e os seus segredos guardados nas paredes caiadas, para depois atirarem sobre os sonhos encaminhados dos residentes. E as pessoas, desguarnecidas, ficam à mercê da impiedade dos fantasmas. 

É inútil o recolher obrigatório. Os fantasmas não respeitam a intimidade dos lares que se acolhem no recolher obrigatório. O alerta destina-se às pessoas, os fantasmas não entendem essa linguagem. São prevaricadores inatos, se lhes disserem “está em vigor o recolher obrigatório” limitam-se a perguntar a quem se destina, anunciando, com voz incendiária e desdém, que o recolher obrigatório não é para eles.

As pessoas descobrem que o recolher obrigatório está condenado a prescrever mal seja decretado. Não lhes interessa estimar os prejuízos na reputação de quem o decretou. Tanto faz saber se a autoridade deixa de ser reconhecida e se os efeitos da insubordinação a tornam ilegítima. As pessoas querem saber das coisas práticas: como se protegem contra a audácia dos fantasmas que atropelam o recolher obrigatório e as assaltam na profundeza das suas inquietações.  

As superstições podem ajudar a proteger dos fantasmas. As pessoas têm de descobrir o amuleto que assusta os fantasmas. Por tentativa e erro, até descobrirem o antídoto contra os fantasmas. Ou até descobrirem os fantasmas que atormentam os fantasmas que já invadiram as casas. O segredo é conhecer de ginjeira os seus próprios fantasmas para jogar contra eles os fantasmas que os amedrontam. As pessoas têm de ser detetives em causa própria. 

Às vezes, um incêndio é combatido através de um contrafogo.