31.5.05

A terra onde compensa ser medíocre

Fernando Gomes na administração da Galp; Nuno Cardoso como administrador das Águas de Portugal. As notícias são dadas com toda a naturalidade. Alguns políticos da oposição manifestam a sua indignação. Cospem para o ar, sabendo que o que salivaram sobre eles tomba quando inverter a trajectória. Não são os políticos que devem lamentar semelhantes nomeações. Porque os partidos estão irmanados numa lamentável cumplicidade quando toca a distribuir as generosas alcavalas em empresas onde o Estado participa. Todos bebem na fonte inquinada. Todos ficam manchados pela vergonha da dança dos gestores públicos (nem todos: os comunistas e os bloquistas ainda não chegaram lá).

Esta é a terra em que há servidores da causa pública que ficam na prateleira das sinecuras políticas. Elas não chegam para todos. Entre a turba que se coloca em bicos de pés à espera de abarbatar a regalia que se segue, alguns ficam chamuscados e perdem terreno. São os pobres marginalizados, depois do estrelato dos tempos idos. A incúria, a inépcia, a incompetência, a soberba – algumas destas coisas, ou todas elas juntas, encomendam as personagens ao antro do esquecimento público. Como recompensa “pelos serviços prestados”, está-lhes destinada uma prateleira de ouro. Em vez de ocuparem um cargo político são relegados para a gestão de empresas públicas, com salários principescos, superiores aos de qualquer cargo político. E eis como a classe política encontrou meio de premiar com reforma dourada os medíocres que fizeram tanta mossa na vida política.

O critério não é o mérito. Vale a militância partidária, os sacrifícios que esta gente fez em favor do partido. Importa premiar os derrotados políticos, que num país que fosse democraticamente maduro já estariam votados ao esquecimento. Politicamente mortos, restar-lhes-ia fazer pela vida. Lutar em condições de igualdade com tantos outros que, vindos do anonimato, se desunham para mostrar valor. Aqui é diferente. Na dúvida entre uma pessoa com curriculum profissional mas virgem de experiência política e um incompetente que passeou a sua incúria pelos meandros da política, os detentores do poder não hesitam em escolher o segundo.

Os resultados são conhecidos. Gestão danosa das empresas públicas, buracos financeiros atrás de buracos financeiros. Fermenta uma casta de “gestores públicos” (condição malsã…) que pula de empresa pública em empresa pública, desbaratando o erário do Estado numa gestão ausente de racionalidade económica. É fácil gerir empresas que “são de todos nós”: há prémios de produtividade pelos eventuais lucros, mas não há penalizações se a empresa tem prejuízos. É um sossego ser “gestor público”. Sabem que não interessa avaliar o seu desempenho; o salário avultado, esse está garantido ao fim do mês. Se a coisa correr mal e mais um buraco financeiro for cavado, o dinheiro de todos nós há-de ser desviado para a compensação devida.

Como se não bastasse o elogio da mediocridade na escolha de “gestores públicos”, outro aspecto intrigante: se são demitidos antes do tempo, está-lhes reservada choruda indemnização. É verdade que a indemnização é devida porque o proprietário Estado não respeita a sua parte do contrato. Mas se o “gestor público” for demitido porque não existe contentamento com o seu desempenho, não se entra no domínio da justa causa? E, havendo justa causa, porque fazer a transferência bancária que coloca na conta do felizardo a suculenta indemnização?

Chegamos a um ponto em que os “gestores públicos” tudo fazem para serem destituídos antes do tempo. Porque sabem que recolhem a indemnização generosa (falava-se de uma compensação de 500.000 € para cada administrador da Galp que vai ser afastado…). Ou seja: compensa ser incompetente, sabendo, como sabem, que a incompetência – não o mérito – dá direito à indemnização astronómica quando são afastados antes de cumprida a totalidade do contrato.

Faz-me lembrar os treinadores de futebol demitidos sem acordo para a rescisão do contrato. O clube tem de pagar o correspondente ao contrato que ficou por cumprir, mesmo que o treinador tenha frustrado as expectativas e os resultados tenham sido decepcionantes. Como os treinadores que andam na ribalta arranjam emprego com uma certa facilidade, ser inábil dá os seus frutos: num ano podem receber remunerações que correspondem a mais do que um ano de contrato; basta serem demitidos, receberem a indemnização a que têm direito, e depois encontrarem outra equipa para treinar.

O nivelamento por baixo no seu expoente máximo!

30.5.05

O pecado do consumo

Este governo decidiu aumentar o IVA de 19 para 21%. É uma das medidas para sanear as descontroladas finanças públicas, depois do frete que o governador do Banco de Portugal fez ao revelar, no termo de uma encenação prolongada, que tínhamos um défice orçamental de 6,83%. Não vale a pena insistir na tecla que nunca é martelada pela classe política quando toca a corrigir derrapagens orçamentais: que a correcção se faça pelas despesas e não sobretudo pelo lado das receitas. Não vale a pena gastar tempo com um discurso de pregação no deserto. Para políticos atreitos ao populismo (em doses variáveis), as medidas fáceis agigantam-se sobre as medidas eficazes e racionais. Daí mais uma revoada de impostos para penalizar as nossas bolsas.

Era de esperar o aumento do IVA. Alguns economistas hesitam: dizem que o IVA é um imposto cego. Argumentam que este imposto penaliza o consumo, e como toda a gente tem que consumir um pacote mínimo de bens, o IVA não é justo. O imposto tem a mesma taxa independentemente do rendimento dos consumidores, o que representa (em termos relativos) um fardo mais pesado para as pessoas de menores rendimentos. Se este argumento estivesse correcto, o governo socialista daria uma estocada fatal na sua imagem de benfeitor das causas sociais, uma peça determinante da sua retórica bafienta.

Aquele raciocínio não está correcto. Porque o consumo é função do rendimento. Numa sociedade inquinada pelos “males do consumismo” (em semântica do agrado da extrema-esquerda que está na moda), quanto mais dinheiro se ganha mais se consome. Tomara os pobres e remediados chegarem ao final do ano e se gabarem que tinham pago muito mais IVA do que no ano anterior. Seria sinal da afluência material a bater à porta. Como são os mais endinheirados que mais consomem, são eles que mais contribuem para a fatia do IVA que o Estado arrecada. Eis o socialismo no seu esplendor: os ricos que paguem a crise! Imperativo de solidariedade irreprimível: mergulhado o país na crise, e sendo urgente inverter a tendência, a todos um sacrifício. Os que nadam em dinheiro que assumam uma quota-parte mais elevada.

A lógica do argumento é tentadora. Mas falaciosa. Do consumo de muitos depende o sucesso do negócio de muitos outros: dos que produzem, dos que intermedeiam os negócios entre produtores e comerciantes, dos próprios comerciantes. E, há que não esquecer, todos eles empregam muita gente. Se o consumo diminui em consequência do aumento do IVA, um efeito em cadeia põe-se em funcionamento. Atingindo, no final, os trabalhadores dos sectores afectados pela crise de consumo que se instalar. Menos lucros proporcionam menos rendimentos aos que trabalham, para não falar na possibilidade de se abrirem as portas a despedimentos.

Sei que os economistas trabalham com sofisticados cenários econométricos que antecipam os efeitos das medidas adoptadas. Imagino que os economistas que quantificaram a subida do IVA para 21% concluíram que o efeito na diminuição do consumo seria marginal. Logo, não afectaria a receita de IVA para os cofres públicos. O problema é a falibilidade das previsões dos economistas (como o demonstra uma escola de economistas – escola austríaca – que desconfia da exactidão científica da matemática ao serviço da economia). Raramente acertam, tantas são as variáveis que não conseguem dominar. Não tenho base empírica para a conclusão que se segue, mas vou apostar nela: feitas as contas, um IVA a 21% vai gerar menos receita do que um IVA a 19%. Não só porque a capacidade de rendimento dos portugueses está espremida, o que vai motivar uma diminuição do consumo. Mas também pelo incentivo à fuga que se instala com uma taxa de IVA mais elevada.

Quando comprarmos algo, sabemos que somos penalizados em mais de um quinto do valor com o imposto devido. Estranha forma de viver em sociedade. Parece que o consumo é a versão contemporânea das mensagens bíblicas. Então era a gula que tinha a cominação do pecado. Agora a gula assume uma nova roupagem: é o consumo em geral. Para apaziguar o pecado que nos consome a consciência, o benfazejo IVA iliba-nos da culpa. E o Estado enriquece a expensas dos nossos pecados, como abutre que debica nas nossas consciências tão atormentadas…

Para tudo funcionar na perfeição, não poderia haver fuga ao IVA. Daí que sejamos educados para exigir o recibo ou a factura em todas as transacções. Um imperativo de socialização, dizem-nos. Para que os espertos não trepem às costas dos cumpridores. Nem que para isso se organize uma lotaria que premeie o recibo exigido por um comprador consciente. A sugestão partiu de Miguel Beleza, antigo ministro das finanças, um dos muitos cobradores de fraque que estão sempre prontos a puxar da imaginação para resolver esse “problema grave” que é a evasão dos impostos.

27.5.05

Quatro razões para não ser benfiquista (entoar como no hino do clube: “ser beeeeen-fiii-quis-taaaa”)

Juro que não é azia pela vitória alheia, nem inveja pelas comemorações que tingiram as ruas de vermelho (perdão, “encarnado” – pois que quando se fala do Benfica, vá-se lá saber porquê, emerge o encarnado, não o vermelho). A comiseração pelo próximo cultiva a solidariedade por quem andava faminto de êxitos desportivos há tantos anos. Pelo meio há algum azedume: pela arrogância, pela pesporrência de quem parece ter alcançado um feito homérico. O arrebatamento vaidoso só rivaliza com o mau perder da corja de “super dragões” (assim mesmo, com minúscula) que decidiram que os inimigos não podem comemorar os sucessos dentro da sua coutada.

No meio da algazarra, fui compulsando as razões que me impedem de ser benfiquista. Primeiro, porque eles são muitos. Fazem gala de mostrar estatísticas (sabe-se com que rigor científico) para provar que têm mais adeptos que os clubes rivais. São uma diáspora, com casas do Benfica espalhadas pelas quatro partidas do mundo. Onde há um lusitano há um benfiquista. Ora como sempre olhei de soslaio para as maiorias que se pavoneiam nas certezas de que se acham possuídas pela grandeza dos números que as investem em maiorias de qualquer coisa, razão bastante para não ser benfiquista. Pela gosto de ser minoria.

Segundo, a arrogância, uma verborreia pastosa, feita de clichés ocos. Ele é a “nação benfiquista”, o adágio que atesta que um bom pai de família tem que ser benfiquista, o “glorioso”, a “instituição”. São muitas bandeiras que pintam a glória que distingue um clube maior que todos os outros juntos, na crença dos apaniguados que vestem de “encarnado”. São figuras gradas da sociedade portuguesa (ou que assim nos são apresentadas pela imprensa; ou elas mesmas que se auto-investem nesta qualidade) que invocam a “nação benfiquista”. Não há linguagem metafórica que valha em defesa dos que enchem a boca com esta expressão. Não, não é em sentido figurado. Acreditam mesmo na “nação benfiquista” – um país dentro do país, na orgulhosa maioria que são. Como se, por maioria serem, bastasse para ajuizar da grandeza do clube. Esquecendo-se que, como em tantas coisas na vida, quantidade não é qualidade.

Esta da “nação benfiquista” é de rir até levar às lágrimas. Um estudo de caso para os especialistas de ciência política. Pois se estamos na presença de uma “nação”, há que hastear a bandeira do Benfica em frente da sede das Nações Unidas. E reservar assento na assembleia-geral da ONU para um representante da “nação benfiquista”. O que até faz sentido. É a diáspora, é Eusébio empossado na condição de “embaixador do Benfica”. Só os países têm embaixadores. Somando todas as peças do puzzle, sugiro aos benfiquistas espalhados pelo mundo que se manifestem ruidosamente, unidos na reivindicação de que o seu Benfica seja reconhecido como um país verdadeiro. Exerçam o vosso direito de auto-determinação, porra! Seria o púlpito das ambições benfiquistas: Benfica e país num só, a garantia de que jamais as vitórias escapariam à “instituição”, por ausência de rivais…

Terceiro, a fábula dos bons pais de família serem benfiquistas. Lamento sabê-lo: que não poderei ambicionar a esta condição, com prejuízos para a minha família. Saberá a cara-metade, logo quando me conheceu, que a ausência de benfiquismo é o prenúncio de uma atribulada vida a dois. Adivinha-se: quando há casos de violência familiar, os hediondos maridos serão adeptos de qualquer clube menos do Benfica; quando os filhos são mal tratados, decerto os pais não são benfiquistas. O processo “apito dourado” pôs-se a jeito para mostrar que quem tem cumplicidades com a vida nocturna e as alternadeiras são os simpatizantes do clube de azul e branco. A sorte está fadada. Os que têm a sorte da filiação benfiquista são os pais e os maridos exemplares. O benfiquismo dota-os do antivírus que cauciona a deserção dos maus fígados, das tentações carnais que desviam os pais de família de uma conduta exemplar.

Quarto, ser benfiquista é um fenómeno que tem muito de metafísico. A grandeza do Benfica não se explica: vê-se, sente-se, acredita-se. O Benfica é o maior “porque sim”. Com a elevada racionalidade da causa, apetece ser anti-benfiquista da mesma forma que sabe bem cultivar um odiozinho de estimação pelos dragões cá de cima, quando se percebe que o que os move é o desejo de “ver Lisboa a arder”, um ódio sepulcral por tudo o que significa Lisboa, mais do que um gosto incondicional pelo clube do seu coração.

É verdade que os clubismos nada têm de racional. São um fenómeno de adesão espontânea, sem cuidar de encontrar explicações que estão na ordem das coisas racionais. Reconheço-o na minha simpatia pelo Sporting. Herança familiar, nada de motivações que se filiam no universo da racionalidade. Felizmente há quem se consiga desprender do hipnotismo colectivo que traz a turba num transe a uma só voz. De repente recordo-me de dois grandes amigos que cresceram como benfiquistas. Quando atingiram a idade da razão e começaram a pensar pela sua cabeça, acharam que ser benfiquista não fazia sentido. Mudaram-se para outras cores, desidentificados com a causa gloriosa.

26.5.05

Carta a um pai sofrido

Pela enésima vez, uma cirurgia. Pela enésima vez, a angústia da entrada num bloco operatório, um sono profundo que vale como um hiato na tua vida, como se ela ficasse suspensa por delicados fios de cordel manobrados pelos cirurgiões. Uma vez mais, a dor insuportável da convalescença. Tudo com a coragem inigualável que de ti emerge, mais a força que ainda consegues descobrir no mais recôndito de ti para animares os que sofrem pelo teu sofrimento.

Há dias, quando soubeste que ias ser operado, brincava contigo: “é mais uma para abrilhantar o teu vasto curriculum clínico”. Foi o que se soltou, na espontaneidade de quem quer fazer humor com algo que se presta a tudo menos ao humor. Agora que estás na cama do hospital, ainda sem sequer haver a sensibilidade para suportares as dores das entranhas feridas por bisturis, tens tempo para repousar, por uns breves instantes que seja, da longa estrada penosa que te calhou em sorte. Os olhos cerrados escondem a tranquilidade que a medicina te reservou nas horas seguintes à cirurgia terminada. Repousas, no descanso de um guerreiro que tem sabido lutar com as armas que tem e com as que descobre na força indómita de viver.

Olho para trás, para a sucessão de percalços que se apossaram da tua saúde. Deixo-me invadir por uma sensação de revolta. Sem ter a mesma coragem que tu tens para dobrar as tormentas indesejadas, fico possuído por um sentimento exasperado de injustiça. Sem perceber a distribuição do sofrimento humano: como alguns são causticados sem dó, uma e outra vez mais, e outros passam incólumes pela dor. Sei que a tua fé é o alento que encontras para ver nas agruras da dor o lado positivo de algo que tem que ser derrotado. Nisso, és a maior lição de vida. Do teu optimismo contagiante perpassa a imagem que a vida é o bem mais belo que podemos ter, e que vale a pena lutar com todas as forças para dobrar as sórdidas esquinas que atraiçoam a linearidade da vida.

Há dias diziam-me que és um exemplo de vida, pela coragem com que encaras o infortúnio, a tua força irreprimível para vencer as nuvens negras que ocasionalmente se agigantam diante dos teus olhos. É verdade: és um lutador indómito, uma lição para retirarmos da vida tudo o que ela oferece, até ao tutano. Quando paro para pensar, em ocasiões sofridas como esta, e me deixo acometer pelo inevitável egoísmo de quem se consome por te ver sofrer, é o arrependimento que se apodera de mim. Não será a maior homenagem que mereces, essa de penar pelos cantos, lágrima furtiva ao canto do olho, dilacerado pelo sofrimento que te consome. De nada vale este padecimento pessoal, fracção insignificante da dor que te assalta, da dor que, lancinante, te deixa à beira do desespero.

Perdoa-me se não consigo descobrir a mesma força interior. Não há como encontrar antídoto para os caminhos tortuosos que têm minado a tua vida. Nem quero franquear os umbrais da metafísica, ou pisar os domínios do ininteligível que explicam as distracções do destino. A dor é-te reservada, porque diz a natureza que nestas coisas não há como dividir o sofrimento físico pelos que te rodeiam. Sabes que o sofrimento mental também nos toca de perto, como extensão da dor que te invade, na impaciência de ver terminado o rol infindável de desencontros com os hospitais. E sei que o que vou dizer não te traz conforto, nem diminui a dor que sentes nestas horas sofridas. Cada um se apazigua com as suas mágoas. A minha é sentir uma terrível injustiça ao trazer as memórias do teu curriculum clínico, esse rol alongado que tanto gostarias de apagar do teu passado.

Da cama do hospital, a certeza que continuas a lutar. Como sempre o fizeste, na mestria que é conhecida. Estou certo que quando despertares da anestesia provocada serás o mesmo de antes, a mesma força bruta que exibe com sofreguidão a vontade de viver pela derrota das adversidades semeadas no percurso. E nisso sabes que estou, incondicional, ao teu lado!

25.5.05

Um grande motivo de orgulho…

Guterres levou a palma. Será o próximo comissário para os refugiados. O país, depois da exultação da vitória do Benfica, há tantos anos prometida, continua numa lua-de-mel consigo mesmo. Nada melhor para compensar a crise orçamental em que estamos mergulhados, que nos há-de levar o coiro e o cabelo. Antes imersos numa simulação do real, a festejar as pequenas coisas que não trazem o bem-estar que anda demorado. Há dias o Benfica; agora a taluda que saiu a Guterres. Tudo serve para engraxar o brio nacional. Como se o brio nacional alimentasse barrigas esfaimadas, inventasse empregos, ou trouxesse o que mais falta faz – o brio profissional.

As figuras gradas do regime já se apressaram a sentenciar: grande contentamento pela escolha de Guterres para um cargo internacional de tanta importância. Já veio ao de cima a verdade oficial a que todos temos direito: “os portugueses” não cabem em si de felicidade. “Os portugueses”. Todos? Não haverá lugar a vozes discordantes? Por serem dissonantes, serão menos portugueses? Há-de dar lugar a outro texto, esta mania dos políticos eleitos se arrogarem ao papel de porta-voz do reino, como se falassem em nome de todos nós. Pobre entendimento da democracia. Por terem sido levados ao altar do poder, logo se vêm investidos na iluminada prerrogativa de falarem em nome de todos. Como se todos se revissem na verdade oficial que se solta das suas palavras mecânicas.

antes escrevi sobre a possibilidade de Guterres ganhar a corrida para a sinecura. Agora que há a confirmação, e que Portugal passa lustro ao ego patriótico, umas palavras sobre o feito. Confesso que me encontro dividido nos sentimentos. Não o escondo: é uma excelente notícia. Não por ser “um dos nossos” que se gruda a cargo tão importante, como se o engenheiro levasse para Genebra um cadinho de cada português que estava, no seu íntimo, a puxar por ele. É boa nova porque exportamos o engenheiro daqui para fora. Melhor maneira para nos livrarmos dele não havia. Agora vai pregar a sua incompetência para outra freguesia. Sem que se perceba que a personagem conseguiu fugir outra vez, agora do desígnio que os seus companheiros de lides lhe tinham traçado – a candidatura à presidência da república. Fugiu, mais uma vez. Terá fugido da derrota certa.

Se o aplauso se faz ouvir porque a pessoa deixará de nos apoquentar, entristece-me a nomeação. Agora quem vai sentir o peso da sua incompetência são pessoas no limiar da sobrevivência humana, carentes de auxílio humanitário de urgência. Os refugiados terão que esperar pela boa conduta do comissário Guterres. É aqui que o horizonte se escurece. Habituado a fazer do diálogo o método de eleição, Guterres será ainda mais nódoa enquanto comissário para os refugiados. Enquanto os terríveis problemas humanos que atingem refugiados em massa se agravam, o engenheiro andará entretido a dialogar aqui, dialogar acolá, a levar o diálogo a um expoente máximo. Fazendo escola para o futuro: tanto diálogo terá expressão na morte dos desgraçados dos refugiados que estiverem à espera que Guterres os acudisse. (A menos que Guterres nada decida, e que as verdadeiras decisões sejam tomadas pelos funcionários da ACNUR).

Último pormenor que tem escapado a comentadores com as palmas das mãos gastas de tanto aplaudir: na semana em que se soube que o défice orçamental está num descalabro, nada melhor do que servir tão importante cargo ao primeiro responsável pelo descarrilamento das contas públicas. Vivemos num mundo em que compensa ser medíocre. Talvez por serem medíocres os que se assenhoreiam do poder, e que não resistem à tentação de escolher outros medíocres para ocupar todo o terreno das decisões.

24.5.05

Golpe na auto-estima

Não, não tem a ver com o sentimento de pânico (será?) que assaltou o governo do Eng. Sócrates, ao saber que tem entre mãos um défice gigantesco de 6,83% do PIB. Não me refiro ao golpe nas promessas feitas durante a campanha eleitoral, destinadas ao banho-maria dada a crise orçamental que deve ser combatida. Vendo bem, este é um défice virtuoso: impedirá que muitas das promessas imbecis dos socialistas sejam concretizadas.

Não, não é o golpe na auto-estima nos comunistas e na esquerda caviar: um défice tão elevado, num contexto em que vingam as “hediondas” teses do “neo-liberalismo”, é um rude golpe na sua forma de ver a política. O camarada Jerónimo já exibiu a azia, ao acusar o governador do Banco de Portugal de se querer fazer passar pelo salvador da pátria – quando não passa de um simples lacaio do “neo-liberalismo” que vota os trabalhadores a uma opressão sem precedentes.

O golpe na auto-estima sentiu-o o escriba destas palavras. Num episódio que faz a ponte com a militância comunista de alguns que estão no seu direito de acreditar que o comunismo, na ortodoxia defendida pelos camaradas lusos, é o projecto perfeito para uma sociedade justa. Ontem, à entrada da universidade, estavam três jovens a distribuir panfletos. Quando entrei não dei atenção aos papéis. Pensei que fosse publicidade a uma das inumeráveis festas que os estudantes organizam em discotecas. Uns metros à frente dei conta que me tinha esquecido de algo no carro. Meia volta e saí da universidade, voltando a cruzar-me com os três jovens que prosseguiam a sua tarefa. Ao chegar ao carro percebi o conteúdo da papelada distribuída, ao reparar num panfleto que jazia no chão: propaganda da Juventude Comunista Portuguesa, aliciando os estudantes a ingressarem na estrutura. No regresso do carro, a derradeira vez que me cruzei com os jovens camaradas que não se cansavam de entregar a propaganda partidária. E de todas as vezes – três – que passei por eles, em nenhuma ocasião esboçaram a entrega do material à minha pessoa.

Estava exultante de contentamento por saber que não aparento ser cliente de eleição dos camaradas comunistas. Pensava com os meus botões: três vezes me cruzei com os abnegados jovens camaradas, três vezes vim de mãos a abanar. Feliz da vida, soube que eles olham para mim e não vêm um potencial comunista.

Na aula reparei que uma das alunas letãs, ao remexer nos seus papéis, deixou cair o panfleto da JCP. Como se desse o caso de ela não saber português, esclareci-a acerca do papel que lhe tinha sido entregue. Sabia que as três alunas da Letónia não simpatizam com a ideologia comunista. Têm razões de sobra, ou não tivesse a Letónia sido ocupada pelos invasores soviéticos durante mais de setenta anos, não tivessem elas escutado histórias tenebrosas dos tempos em que o comunismo era a ideologia reinante. Foi então que lhes contei, com orgulho, a experiência por que tinha passado minutos antes. Querendo passar a mensagem de que os jovens camaradas se tinham recusado a entregar-me um exemplar da propaganda. Rematando com a conclusão a que queria chegar: definitivamente, não tenho aspecto de comunista. Ao que uma das alunas letãs me disse, com uma sinceridade desarmante:

- Or probably you don’t look young…

Foi o golpe fatal na minha história gloriosa. Uma devastação moral. A aluna lembrou-me que os jovens camaradas estavam a angariar potenciais militantes para uma estrutura que é participada por jovens. Admite-o: não foste agraciado com a propaganda não por não teres ar de comunista, antes por não te enquadrares na faixa etária dos que podem fazer parte da JCP.

Regressa à terra. Lembra-te que estás mais próximo dos quarenta do que dos vinte palmilhados pelos teus alunos. Lembra-te que por mais que estejas agarrado à juventude que ficou para trás, por mais que te sintas jovem de espírito e de corpo, a idade não engana. Ilusões, leva-as o tempo. E por mais que te recuses a admitir que o tempo também passa por ti, os cabelos brancos que começam a aparecer, os anos que se dobram no calendário, a vertigem do ano de nascimento vertido no bilhete de identidade – tudo se encarrega de te recordar que a juventude pós-adolescente foi tempo que ficou para trás.

Amanha-te com uma compensadora imagem: a de que estarás a viver a segunda juventude (a que vem depois da juventude pós-adolescente)...

23.5.05

O glamour de Cannes

Durante mais de uma semana tive um pequeno-almoço acompanhado de imagens do festival de cinema de Cannes. A Euronews preencheu a afamada rubrica “no comments” (imagens que desfilam num silêncio cortante que diz mais que mil palavras) com o desfile de personagens cinematográficas que passaram por Cannes.

É interessante que a rivalidade entre as indústrias cinematográficas de Hollywood e da Europa se esbata num ténue fio quando as circunstâncias apelam à solenidade, à homenagem aos actores e realizadores que protagonizam a arte. Em rigor, não faz sentido falar de “indústria europeia”. Ela não é capaz de rivalizar com a produção milionária e abundante que chega do outro lado do Atlântico. E na Europa há várias correntes, fenómeno que afasta as pretensões de unidade cinematográfica europeia.

Tirando os casos de actores e realizadores que se deixam seduzir pelos holofotes hollywoodescos, a rivalidade entre europeus e norte-americanos é visível. Os tiques de deslumbramento da indústria de Hollywood são, em regra, renegados pelos europeus. É costume ver nestes realizadores, e nos actores que os servem, o manifesto do anti-americanismo na sua vertente cinematográfica. Desdenham da espectacularidade do cinema importado dos Estados Unidos, duvidam da sua qualificação como arte. No império dos efeitos especiais – arte sublimada em Hollywood – insurgem-se contra a instrumentalização do cinema, que perde atributos argumentativos e se enleia nas teias dos efeitos balsâmicos que a informática deixa pôr na tela. O modo de viver é rejeitado pelos europeus: não gostam do voyeurismo que encadeia os famosos de Hollywood; acusam-nos de se pavonearem na dependência dos tiques de luxo que exalam, como se cavassem mais ainda o fosso que os separa dos comuns mortais.

E no entanto, quando é chegado o momento de ver o público massajar os seus egos de artistas, os europeus do cinema não ficam atrás no gosto pelo glamour. É a mesma passadeira vermelha que se estende diante dos seus pés. Os mesmos instantes que se demoram à frente das objectivas de fotógrafos papparazzi, com aquele ar de frete que esconde o frémito pelas fotografias que hão-de encher páginas e páginas da imprensa de todos os calibres. Fica para trás das costas a retórica que condena a atracção das figuras hollywoodescas pelo esplendor do luxo, pelas luzes da ribalta, pelos gritos histéricos dos admiradores que esperam horas a fio para captarem uma breve imagem ao vivo dos seus heróis.

O formalismo das vestes, outra crítica sacrossanta, vira-se contra eles. Muitos recusam-se a trajar o “obrigatório” smoking. Mas aperaltam-se à sua maneira – roupas negras, ar negligé, a impressão que são descuidados com a imagem e que não é preciso cultivar o respeito pela pompa da cerimónia. Fazem o seu próprio ritual de solenidade, no que não se conseguem desprender do formalismo que criticam nos que perpetuam os sinais e valores que dominam a indústria.

Gostam de prémios. Adivinho-os a sedimentar expectativas sobre a eleição do júri. A sonharem com o momento mágico em que o seu nome ecoa pela sala do auditório, na expressão do júri competente que os agraciou com a distinção. São, eles também, o nutriente de uma indústria que alimenta uma competição acérrima, desvirtuando a essência da arte em que o cinema se quis converter. Na arte – em todas as suas expressões – deviam ser rejeitados certames que confluem na escolha do primus inter pares. Porque a competição desafina a essência da arte; porque a arte é o terreno de eleição da subjectividade, e é arriscado que a arte seja condicionada para o futuro pelo juízo (também subjectivo, e quantas vezes interessado) de um júri que decide prémios.

Que me recorde, não há casos de cineastas e de actores que tenham recusado um prémio num destes festivais. Compreende-se: estes prémios embelezam o curriculum; são o alfobre onde germinam novas oportunidades; adensam os números das contas bancárias; emproam a honra e o reconhecimento público dos vencedores. São o esteio da ambição de cada um. Pena que não haja pedradas no charco como Herberto Hélder, o poeta que anunciou, a quem o quis ouvir, que não aceitará nenhum prémio que lhe decidam dar.

20.5.05

Cunhas do nacional-porreirismo

Tem dado que falar o despacho de três ministros do anterior governo que possibilitou o abate de sobreiros numa herdade ribatejana, favorecendo um projecto turístico de uma empresa ligada ao Banco Espírito Santo. Pouco me interessa discutir o acerto de contas político que a história sugere. Parece vingança de uma justiça instrumentalizada pelo poder político: no consulado do anterior governo, foram socialistas que estiveram com a justiça à perna; agora que a casaca política mudou, a justiça virou a bússola para personagens do CDS e do PSD. Se isto não é justiça instrumentalizada, é pelo menos uma notável coincidência.

Não é isso que me interessa. Antes, sublinhar como somos corroídos pelo estigma da mediocridade que nos leva a confundir interesses pessoais com interesses que devemos prosseguir enquanto titulares de cargos públicos. Mais um motivo para a recusa em contribuir para o peditório em curso: o grande bloco central (que em nós manda desde que a democracia formal por cá se instalou) está cheio de pecados. E quando vejo laranjas a criticarem os rosinhas, e vice-versa, apenas consigo esboçar um sorriso de desdém: nessas críticas, o roto queixa-se do nu.

As conveniências pessoais contam muito, há que o admitir. Faz sentido que os indivíduos tenham interesses próprios, e que seja difícil desligar-se dessas motivações subjectivas quando tomam decisões. Mas os decisores podiam ser menos explícitos no atropelo dos interesses comuns que se julgava serem guardiães. Em vez disso, sucumbem às pressões de clientelas que lhe abanam com benfeitorias de variada espécie. Depois paira no ar a nódoa da corrupção – da pequena e da grande corrupção. Não há credibilidade que lhes valha, quando campeia a cumplicidade de interesses entre quem toma decisões na esfera pública e quem, no sector privado, delas beneficia. Até porque a confusão de papéis alimenta a perplexidade: quantos ontem foram ministros para hoje serem administradores de empresas que dependem de negócios com o Estado, para amanhã voltarem a deter o poder político?

Por entre a balbúrdia, instala-se o espírito do expediente, na tentativa de alcançar a todo o custo os fins. Nem que para isso seja necessário traficar influências, dar a palavra mágica que desbloqueia decisões, sabe-se lá a que preço. Desde as grandes negociatas até às mundanas situações que só envolvem a arraia-miúda, as palmadinhas nas costas, o “veja lá o que se pode fazer” enquanto se acena com a cenoura certa que faz mover o burro que tem a faca e o queijo nas mãos. Os que têm sorte, ou os conhecimentos no lugar certo, chegam à meta procurada. Os restantes têm que penar pelos corredores da burocracia, aturar funcionários desinteressados, que apenas se motivam quando os utentes engraxam a autoridade detida e sugerem compensações que gratificam os favores concedidos.

É o império do “factor C”. As cunhas certas no momento certo, e as decisões que nos são favoráveis surgem num ápice. Dando lugar a um sistema medíocre, em que a meritocracia está ausente. Premeia-se quem patrocina o tráfico de influências, emproando a autoridade daqueles que se prestam à duvidosa convivência de interesses. Não bastava o reino de expedientes em que tropeçamos a toda a hora, em todos os lugares. Estamos habituados a conviver com o pequeno tráfico de influências na administração pública. Para quem acredita nas virtudes da iniciativa privada – é o meu caso – ainda é mais lamentável que muitas empresas privadas sustentem as relações perversas do tráfico de influências. Elas são factores de resistência à mudança de mentalidades. Funcionam como uma roda dentada que dá alento a toda a viciosa engrenagem.

O rescaldo: o prémio da mediocridade anda de braço dado com as oportunidades que se vedam a quem tem mais valor – ou a necessidade dos valorosos se deixarem corromper pelos tortuosos caminhos do sistema, dançando ao sabor da música insidiosa dos compositores do tráfico de influências. A espinha dorsal é o derradeiro factor de resistência às tentações das cunhas do nacional-porreirismo. Enquanto se mantiver firme, o sossego de nos olharmos no espelho, pela manhã, e não ter vergonha da cara que vemos diante dos olhos.

19.5.05

“Polacos já se podem limpar a papel higiénico com a cara de políticos”

Terão os polacos o exclusivo? Desconheço se a patente ficou registada. E mesmo que tenha havido registo, adivinho que a empresa polaca vai fazer fortunas a rodos, com a catadupa de pedidos de autorização para replicar a ideia, vindos de outros países. Porque os políticos têm uma tarimba que os expõe ao ridículo. Elevado preço a pagar pela ânsia de exposição pública, pela sede de poder, pela utilização do poder em proveito próprio.

Se a inovação chegasse cá, aposto que teria um sucesso retumbante. Mesmo que os “barómetros” de opinião publicados com regularidade pela imprensa se esforcem por mostrar resultados mais animadores – parece que com a ascensão de Sócrates ao poder passámos a ter uma opinião mais simpática em relação a todos os líderes partidários – mantenho a aposta: o papel higiénico que trouxesse estampadas as fuças dos nossos políticos seria o mais vendido. Quem garantisse o exclusivo nacional arrasava a concorrência.

A crer na abstenção endémica que mergulha o sistema político numa crise que poucos querem reconhecer, e dando de barato que muitos votantes seriam tentados à experiência de utilizarem as caras dos afamados políticos nacionais para limparem os rabos acabados de defecar, o sucesso seria garantido. Gostava de ter mais detalhes do produto para saber como seria disseminado o sucesso. Porque a notícia não deu pormenores: há papel higiénico com diferentes cromos estampados – um rolo por político – ou os rolos apresentam um surtido variado dos lídimos representantes da classe política – do género estampado aleatório, uma folha-um político?

A segunda hipótese seria mais simpática (relativizando…) para os visados. Porque os rolos de papel higiénico seriam uma composição harmoniosa de políticos, uma amostra representativa do escol de políticos que nos entra vida dentro. Seria uma forma de vingar a impertinência, usando as suas caras para limpar os vestígios do que é rejeitado pelo corpo humano, depois de digeridos os alimentos. Mais interessante – e menos simpática para a classe política – seria a primeira hipótese. E se as prateleiras dos supermercados estivessem repletas de papel higiénico, como direi, “personalizado”? Adivinho a mutação das estantes: os rolos ordenados por ordem alfabética das personagens estampadas, como se fossem estantes que armazenam discos ou livros. Para facilitar a escolha dos clientes: bastava seguir a pista deixada pela letra inicial e escolher a vítima cuja cara está impressa no papel aveludado que nos higieniza depois da função.

Os hábitos sociais passavam a acolher mais uma novidade em que os tempos modernos são férteis: um top de preferências, ordenado pelas compras de papel higiénico. Não havia barómetro de opinião pública que resistisse ao rigor do painel de vendas do papel higiénico. Os políticos menos populares, os mais visados pelas compras dos consumidores. Que percorriam as prateleiras dos supermercados numa busca ávida dos rolos de papel higiénico que trouxessem a imagem do fácies do político que representa aquele odiozinho de estimação. Adivinhavam-se, então, tempos difíceis para a classe política: ou faziam um enorme esforço mental para conseguirem ser o que são incapazes de ser (competentes, credíveis, respeitáveis); ou se prestavam ainda mais ao ridículo; ou veríamos muitas personagens do meio a meterem os papéis da reforma antecipada, imersos numa profunda depressão por saberem que as suas caras estavam a ter tal utilização escatológica…

Os mais compreensivos com os políticos gabam-lhes a coragem. Dizem: é preciso ter coragem para dar a cara como políticos. Na Polónia, nunca como antes a expressão “dar a cara” teve um significado tão literal e profundo. Imagino o cenário neste Portugal de brandos costumes. Pela parte que me toca, não me estou a imaginar a ser consumidor indefectível do produto: por me recusar a conspurcar o dito cujo com o papel pouco higiénico pelas caras de políticos sem competência e credibilidade que nele aparecem desenhadas. Por mais atractiva que seja a ideia, há limites para tudo. A recusa não seria uma deferência aos políticos humilhados pelo novo produto: antes a necessidade de não contaminar a higiene íntima.

18.5.05

A saga num hospital público

É angustiante quando um filho, com poucos meses de idade, fica doente. Aflitivo, porque os pais são assaltados pela impotência de nada poderem fazer. E revoltante, ao mesmo tempo, porque nos interrogamos do paradeiro da proclamada justiça divina que se ausenta para paragens incertas quando uma criança indefesa se expõe às inclemências da doença.

Como se não bastasse a dor de alma de ver um filho a padecer o sofrimento da doença, tudo piora quando é necessário dar entrada na urgência pediátrica de um hospital público. Ao que consta, os hospitais privados não têm serviço de urgência 24 horas por dia. O que encaminha os condoídos pais para os labirínticos corredores de um hospital público, num teste a essa aberração chamada “serviço nacional de saúde”.

A experiência pessoal com hospitais públicos, apesar de escassa, não deixou saudades. Guardo comigo a imagem de que os hospitais do Estado são coisa para evitar, sempre que for possível. Até porque o contacto com unidades de saúde privadas oferece o contraste da qualidade. Paga-se, e bem, mas o serviço tem outra qualidade, as instalações não são comparáveis, a atenção de que o utente é merecedor recomenda-se. Nos hospitais públicos, é tudo ao contrário.

Quando ontem tentei entrar na urgência de pediatria, poucas horas depois da minha filha ter tido alta pela incompetência de uma médica que confiou em excesso nas suas enviesadas capacidades de diagnóstico, a vigilante de serviço disparou, seca, que a criança só podia ser acompanhada por um dos pais. De certeza que se limita a cumprir ordens de um empedernido burocrata que gere o hospital. Mas não faria mal, a estes “gestores de recursos humanos”, inscrever as criaturas que lidam com o público num curso de aperfeiçoamento profissional. Objectivo: saber lidar com os utentes, afinal as pessoas que com os seus impostos pagam os salários desta gente.

Não sei se será pedir muito mais sensibilidade a estes funcionários, que tentem compreender o aperto que estrangula os pais quando chegam ao limite de ter levar um filho à urgência de um hospital público. Pelo contrário, o tratamento é arrogante, impessoal. Limitam-se a exibir a pouca autoridade em que foram empossados – para eles, o canto do cisne, a noção de que são os guardiães da porta que franqueiam ao sabor do seu livre arbítrio.

Muito se fala dos deveres solidários de homem e mulher na educação de um filho, não como frescura dos tempos modernos mas como corporização da responsabilidade partilhada que é gerar e acompanhar um filho. Vamos aos hospitais e apenas um dos progenitores pode acompanhar a angústia que anda de mão dada com a incerteza do diagnóstico, com as demoras no atendimento, com a antipatia e distanciamento dos funcionários. Um dos pais é obrigado a arcar com todos estes padecimentos. O outro, que fica à porta, limita-se a penar, deambulando a figura da alma solitária que fica na escuridão de não saber o que se passa nos corredores frios do hospital que alberga o seu filho.

Como em tantas vezes acontece, a teoria é um embelezamento retórico que não encontra correspondência na prática. São os hospitais do Estado que negam uma das modernidades do politicamente correcto (que, aliás, não contesto): no momento do aperto, é a mãe que dá a cara (porque as mães se recusam a estar longe do filho). É a discriminação alimentada pelo próprio Estado! Dirão os mais compreensivos com o excelente serviço nacional de saúde: não pode ser de outra forma. A exiguidade de espaço nos hospitais impede o acompanhamento pelo pai e pela mãe. Pois essa é a demonstração de como a incompetência grassa entre os que arquitectos do serviço nacional de saúde. É então, como em tantas outras circunstâncias, que sinto que o dinheiro dos impostos que sou obrigado a pagar é mal empregue. Há receita para o desarranjo: privatizem-se os hospitais públicos, para serem devolvidos aos utentes.

Como se todos os males não bastassem, a saga de um hospital público traz outro inconveniente: um estado de alma sombrio, as trombas que escurecem um dia carregado com as cores matizadas da angústia.

17.5.05

O complot das multinacionais agro-alimentares

Vejo notícia de um colóquio sobre obesidade infantil. Entre nós, calcula-se que uma em cada três crianças tem excesso de peso. Uma das especialistas ouvidas profetiza que, por causa da obesidade, estas crianças vão ficar com problemas crónicos de que não se vão desprender. Vão morrer mais cedo do que as gerações antecedentes.

Com o habitual tom de quem gosta de surgir como profeta da desgraça, de braço dado com o papel de moralista de serviço, foram ouvidas três senhoras a dissertar sobre o mal e sobre o culpado. Aliás, mais do culpado do que do mal. O dedo ergue-se contra a comida que tanto atrai as crianças, o império do fast food, dos produtos alimentares fabricados pelas multinacionais do ramo e que, pelas avultadas somas gastas em publicidade, captam as preferências dos jovens alienados.

Uma das senhoras era Isabel do Carmo, apresentada como endocrinologista (mas também podia ser apresentada como figura condecorada pelo presidente da república no último 10 de Junho pelos incalculáveis serviços prestados à causa da liberdade…entre os quais ter pertencido às brigadas terroristas do PRP). Falou com pose de especialista, mas não resistiu à tentação de acusar os suspeitos do costume: da sua boca vieram palavras de censura contra os cereais que as crianças comem ao pequeno-almoço – carregados de açúcar, sentenciou – contra os McDonalds (com acentuação no “a” a seguir ao “n”), contra os Bolycao, etc. Depois ouviu-se testemunho de uma senhora sueca: que no seu país a publicidade aos produtos alimentares que carregam as criancinhas com matérias gordurosas traz sempre um aviso dos malefícios para a saúde das ditas cujas. A santa trindade ficou completa com as palavras avisadas da representante da DECO. Esta senhora também percorreu a via-sacra dos queixumes habituais: a culpa é da indústria alimentar, que apenas olha aos lucros e não mostra preocupação com os danos que os seus produtos causam nas crianças.

Estes moralistas de serviço causam-me espécie. Pela postura de superioridade que exibem, do alto do seus supostos conhecimentos. Aparecem como inestimáveis servidores do “interesse público” (essa coisa vaga…), denunciando energicamente as maquinações das empresas que querem meter o público em caixões antes do tempo. Temos que lhes agradecer: se não fossem eles, éramos corroídos por perversos hábitos de consumo. Teríamos a morte anunciada para mais cedo do que projectamos. As DECO e quejandos deviam ser reconhecidas como sagradas vacas indianas.

Mas há o reverso da medalha. Os trejeitos inquisitoriais soam a intromissões desmesuradas na esfera de cada um. Talvez pensem que as criancinhas, por ausência de livre arbítrio, são os alvos preferenciais das malditas multinacionais agro-alimentares, por serem manipuláveis com facilidade. Esquecem-se que as criancinhas têm pais, eles sim os responsáveis pela educação dos filhos. Que se saiba, ninguém endossou procuração às DECO e quejandas para se substituírem aos pais na educação (alimentar) dos filhos. E, no entanto, os activistas do moralismo surgem de espada desembainhada contra os inconfessáveis interesses das diabólicas empresas que enxameiam o mercado com as porcarias que anunciam a morte precoce dos jovens de hoje. Como se quisessem ser os pais ausentes, ou ignorantes, que deixam as criancinhas comer aquelas porcarias.

Enquanto vivermos num mundo em que as opções individuais são desrespeitadas, porque entram em conflito com a verdade tida como necessariamente boa, o terreno fertiliza-se para organizações do género, para posturas impertinentes como as relatadas. E continuamos imersos num conto diabólico, em que as multinacionais são o inimigo a abater. Como se fosse verdade que elas elaboram géneros alimentícios que são uma espécie de veneno encapotado que há-de ceifar muitas vidas antes do tempo. É uma retórica cansativa: primeiro, os discursos do que se deve fazer para levar uma vida saudável, numa espécie de “fascismo higiénico” que nos cerca por todos os lados de forma asfixiante; segundo, a semântica do combate às empresas multinacionais, que preferem o lucro à vida saudável dos consumidores. Esquecendo-se que elas vivem da fidelização dos consumidores, e que não é de esperar que os hábitos de consumo se transmitam de geração em geração se a geração anterior for causticada pelos alimentos que acabou de ingerir.

É a lógica da quadratura do círculo no seu esplendor. Com adeptos em crescendo.

16.5.05

As profecias do educador Vieira

Está quase! A terminar o sofrimento de não-sei-quantos-milhões-de-adeptos do “grandioso clube” que há vários anos atravessa a secura de vitórias que colocou aquela “massa associativa” à beira do desespero. Está quase: só mais um pequeno passo e a turba que no sábado festejou, excitada, irá celebrar com ânimo redobrado.

Na memória retenho a imagem de adeptos aos saltos, de todas as idades, numa comunhão ecuménica sem olhar a sexo, raça, credo e condição social. Saltavam, extasiados com o perfume da vitória, entoando “Ben-fi-ca, Ben-fi-ca, Ben-fi-ca”, ou a variante urbanizada “SLB, SLB, SLB”. Ainda estou na digestão de uma imagem medonha: um idoso que também embarcava no ritual dos pulinhos, mostrando a desdentada dentição, espumando o refrão colectivo, à beira da apoplexia.

Agora está-se quase a cumprir o desígnio nacional: a “instituição desportiva” está nos preparativos para envergar as faixas de campeão nacional. O jejum será, finalmente, varrido para o baú das longas recordações. E é um desígnio nacional, por certo: afastar este grandioso clube das vitórias é anti-democrático, pois – é bom ter sempre em mente este dado – muitos-milhões-de-adeptos abrigam-se na asa vermelha da águia benfiquista. O cenário compôs-se: agora que os líderes dos cinco partidos do parlamento são confessados adeptos do Benfica, não há razões para que não se satisfaça o desígnio nacional. É a democracia que se cumpre.

E também se dá cumprimento às profecias de Vieira, essa personagem que, liderando a agremiação, reanimou as massas que padeciam no deserto das vitórias. Foi o grande Vieira que anunciou a certeza de que o seu clube iria ser campeão. Foi Vieira, esse afamado economista com cartel internacional, que prenunciou: o país irá sair da crise económica assim o Benfica seja campeão. Não apresentou estudos que comprovem esta profecia. O que também não interessa. A vontade agiganta-se para vergastar os obstáculos que surgem pela frente. E se a confiança dos não-sei-quantos-milhões-de-adeptos vai atingir os píncaros com o banquete da vitória, decrete-se que para o futuro os campeonatos sejam disputados do segundo lugar para baixo.

Vieira, afinal, só tem a quarta classe. Que alguém lhe tenha sussurrado ao ouvido que uma vitória do Benfica seria o tónico esperado para a economia nacional, ou que ele tenha tido esse sonho, apenas questões de pormenor. Estamos todos à espera que a profecia se cumpra: depois de acertar no êxito do clube a que preside, espera-se que a saga adivinhatória prossiga, que a economia dobre o cabo das tormentas. O engenheiro primeiro-ministro ficaria eternamente agradecido, numa coligação (mais uma) entre o futebol e a política. E seria a primeira vez que alguém com a quarta classe se arriscava a ganhar o prémio Nobel da economia.

Talvez pelas limitadas habilitações escolares, as capacidades intelectuais do grande timoneiro da nação benfiquista estão na proporção inversa da multidão que enverga cachecóis vermelhos. Sem perceber a gaffe, Vieira tão depressa prenuncia a aceleração estonteante da economia nacional como diz, logo a seguir, que o país “vai parar”com a vitória do Benfica. Em que ficamos? Como pode um “país parado” inverter o ciclo e inscrever-se na rota da prosperidade económica?
Não interessa dar resposta à interrogação. Porque Vieira disse, Vieira tem razão, escudado por não-sei-quantos-milhões-de-adeptos do “grandioso clube”. As verdades impõem-se, sem base racional. Apenas com a crença das identificações colectivas que congregam vontades. Será, quando muito, um “wishful thinking”, uma verborreia sem sentido, palavreado oco vindo de uma cabeça sem substância intelectual. Ao mesmo tempo, a expressão de como estamos mergulhados no desnorte total: porque acredito que o “país” vá mesmo parar quando a “nação benfiquista”, por fim, estiver a saborear as delícias da vitória. Como se os problemas do país ficassem anestesiados pelo feito futebolístico.

13.5.05

Como se faltasse qualquer coisa

O computador portátil entrou em colapso. Ecrã enegrecido, nem para trás nem para a frente. O pânico começou a tomar conta de mim. Para não produzir mais males, levei o portátil ao especialista. Diagnóstico: falha grave de hardware. Só lá para terça-feira, na melhor das hipóteses, o computador regressa ao dono.

É inquietante como podemos ficar tão dependentes de uma máquina. São as rotinas que se instalam, determinados rituais que se cumprem, dia após dia, que se embebem nos gestos, nos hábitos que causam um estado de dependência tão acentuado que nem tomamos conta da sua adequada percepção. Não há dúvida que as potencialidades oferecidas pela informática são um utensílio valioso – como ferramenta de trabalho, como instrumento de divertimento, como veículo de informação. E há um sentido bem afirmativo na expressão “computador pessoal”. É uma intimidade que cresce nas horas que o proprietário passa agarrado ao seu computador. Mais ainda quando o computador é portátil, pela flexibilidade de o transportar de um lado para o outro. Sendo algo de pessoal, melhor se entende que o desligar temporário do vínculo acarrete danos irreparáveis.

Só estou sem o portátil há vinte e quatro horas. E sinto que uma parte de mim ficou com ele, naquele ponto de assistência técnica que o vai reparar. Não só porque muita informação que estava no disco danificado se perdeu irremediavelmente (por falta de cuidado do dono, que não fez o backup – outro vocábulo técnico que entrou no léxico de quem vive dependente dos favores da informática). Mais importante, por sentir que o computador funciona como um prolongamento de mim mesmo.

De tal forma que um dia destes dei comigo a pensar no seguinte: são poucos os jornais que leio, porque consulto a informação na Internet; o correio electrónico trouxe o milagre das mensagens lidas no instante que se consome, sem ter que esperar dias a fio pela chegada do correio postal; e as canetas acumulam-se num receptáculo próprio, escondido num canto da secretária, pois agora é raro manuscrever. O teclado é o prolongamento do braço que escreve as palavras que vão aparecendo, tácteis, no ecrã do computador. Por todas as razões, há um pedaço dos costumados hábitos que ficou em letargia com o adormecimento do portátil.

É a desconfortável sensação de desorientação que se apodera. Acho-me como um viajante perdido numa encruzilhada de caminhos, desprovido de mapa que forneça as coordenadas. Sou incapaz de seguir para a estrada, em viagem, sem ir munido dos mapas que esclareçam as dúvidas acerca do melhor caminho a tomar. O desnorte da ausência dos mapas está para o viajante como a perda de sentidos para quem alicerçou uma intimidade com o computador dormente.

Não sei se será um bom sintoma – estarmos tão presos aos caprichos de uma máquina que pode trazer surpresas desagradáveis quando menos se conta. O contraste entre as virtudes da informática e os caprichos dos computadores é um hiato difícil de entender. Porque afinal somos (os que estão nesta condição...) cada vez mais um prolongamento do computador, do teclado na ponta dos dedos que sobe braço acima e parece tomar conta da nossa vontade, do ecrã que consome a vista e parece hipnotizar as mentes.
É neste estado que me encontro: na desorientação que impera, achar-me o prolongamento do computador, e não que ele seja o prolongamento de mim mesmo. Como se o computador ganhasse vida própria e fosse o senhor dos meus humores. Diagnóstico que faz pensar: a entrega tão despudorada a uma máquina, quando enfim ela deixa de ser um instrumento que alimenta o bem-estar das pessoas para se transformar numa maquinação dos humanos que estendem a passadeira vermelha ao reino da informática.

12.5.05

A insónia

Há noites em que o sono tarda. São voltas e mais voltas que deixam os lençóis desgrenhados, peganhentos da fúria que os poros vão libertando. Há noites em que a insonolência se instala já a madrugada está para chegar, a meio de um sono interrompido. Quando o relógio diz que ainda faltam algumas horas para o despertar, e mesmo assim a cabeça se recusa a mergulhar no sono.

As insónias semeiam irritação. Por mais que se tente combater a insónia e trazer de volta o sono, parece que mais este se afasta para outros lugares. Fazem-se exercícios mentais que buscam a reconciliação com o sono. O corpo procura levitar-se de si mesmo, desprender-se da mente. Concentração apenas na mente. O resultado não é agradável. Porque a cabeça entra em divagações frenéticas, o oposto do necessário para atrair o sono fugidio. No ensaio de separar corpo da mente, apenas a frustração de saber que o desafio não é vencido.

Persiste a insónia. Começam a desfilar no horizonte mental as tarefas agendadas para o dia que se segue. Começam a pairar na escuridão do quarto pensamentos que trazem de volta assuntos encerrados, simulações de cenários, pessoas que são revisitadas, o que foi dito e o que ficou por dizer. A certa altura, a insónia assenhoreia-se do palco rebatendo de vez o sono que só há-de chegar na próxima noite. A intensidade mental é transportada pela insónia, o seu nutriente. E por mais que procure adormecer os pensamentos que vagueiam pela cabeça, rebeldes e erráticos, acabo por renunciar ao esforço que se abeira de um exercício que começa a ser titânico.

Já havia longas noites, longos meses, que as insónias estavam longe de mim. Tive-as mais na juventude, quando a ausência de cansaço era mais favorável à criação de insónias sucessivas. Sabia, de então, que a melhor forma de derrotar a insónia é ignorar a sua existência. Fazer de conta que não estava a ser dominado pela insónia. Desses tempos cultivei a resistência interna à insónia: deixar-me enlear nos seus braços, sem lhe dar a importância que ela queria reclamar. Iludia a insónia, simulando a não vontade de cair no sono.

Com a idade, com outras responsabilidades, o cansaço no final do dia passou a tomar conta das noites. A queda no sono era rápida, sem levar às tenebrosas insónias de outrora. Quando elas agora se anunciam, sem a assiduidade de então, são um corpo estranho que se instala e me percorre de uma ponta à outra. Sinto-me como se nunca tivesse suportado as diatribes de uma insónia. De cada vez que elas renegam a urgência do sono, deixo-me invadir pela sensação de que nunca tinha passado pelas impertinências de uma insónia. Parece que uma esponja dilui os vestígios do passado. Como se as memórias das frequentes insónias adolescentes se tivessem apagado, ou fossem distantes penumbras que não consigo perfurar.
As sequelas da insónia perduram durante o dia que se segue. As poucas horas de sono levam parte do discernimento que ainda possuo. Desnorteiam-se os sentidos, falha a concentração, vinga a vontade do ócio. É um dia adiado, jornada para esquecer. E quando, à noite, o cansaço irrompe com toda a sede, emerge o receio de que o sono atrasado seja combatido por outra insónia maléfica que se inventa, vinda do nada.

11.5.05

Sampaio, o pedagogo

Mais uma para o rol de disparates que tem preenchido o consulado presidencial de Sampaio. A mania das “presidências abertas” semeia as suas sequelas: sendo abertas, a água entra por todos os lados. Por isso não é surpreendente que Sampaio ande a toda a hora a dar tiros no próprio pé.

Opina sobre tudo e mais alguma coisa, fazendo as vezes de consciência crítica da nação, o porta-voz de um povo descontente com o país que tem, com o país que é. É o mensageiro da desgraça, o timoneiro do descontentamento popular. Paira sobre o desgoverno em que colectivamente mergulhámos, como se não fosse ele o primeiro entre pares, o símbolo mais elevado da governação. Não tem poderes executivos, é certo. O que, para ele, será caução bastante para passar ao lado dos desvarios da governação, o lenitivo para censurar o que está mal e apontar caminhos a desbravar para reparar os males. Para piorar o diagnóstico, fala “sampaiês”, um arremedo de português que se esconde em fórmulas gramaticais insondáveis, frases intermináveis, mensagens indecifráveis mesmo para os especialistas da língua.

A última pérola presidencial: medir o pulso ao ensino superior. Não chegou a organizar uma presidência aberta. Não houve o cortejo habitual, a corte de especialistas a gravitar em torno de sua excelência para o aconselhar antes da figura presidencial germinar douta sentença. Sampaio não se coibiu de opinar: algo está errado nas universidades portuguesas. Temos índices de insucesso escolar superiores aos parceiros europeus. Há muitos estudantes que ficam pelo caminho, impedidos de se deliciarem com os prazeres de uma licenciatura. Há que avaliar as universidades, uma avaliação independente (e não com o absurdo e parcial CNAVES, entidade que tem feito as avaliações das universidades com resultados de calibre duvidoso). E apurar responsabilidades, indagar o que leva tantos estudantes a palmilharem a senda do insucesso escolar.

Do alto do vezeiro apelo melodramático (desta vez sem a comoção que leva a figura presidencial a resvalar para a lacrimejante ladainha…), Sampaio abriu as portas a mais descontentamento estudantil. Foi o pretexto para as televisões auscultarem o sentir dos estudantes em várias universidades. O resultado: a culpa aqui não morre solteira, mas os estudantes não têm nenhuma quota na responsabilidade colectiva.

O diagnóstico é enviesado. Já no passado escrevi que discordo quando acusam os estudantes de serem a “geração rasca”. Ela é a “geração à rasca”, posta nesta condição pelos excelsos pedagogos que ensaiam fórmulas educacionais que não se sabe para o que servem a não ser para puxar lustro às suas elucubrações pseudo-científicas. Brincam aos sistemas educativos, fazendo dos estudantes as cobaias, como se fossem bichinhos de laboratório que se sacrificam sem pesar. São estes brilhantes pedagogos que estragam o sistema educativo. E que apanham, como vítimas directas, os estudantes. Que assim ficam à rasca, devido às manobras destes rascas da pedagogia.

Isto não pode distrair da realidade. E quem tem um contacto próximo com o ensino universitário pode falar com mais acutilância do que a figura presidencial que plana do alto do seu posto de observação, distante das coisas. Doze anos de experiência de ensino universitário proporcionam alguma tarimba. Prestam-se a uma análise fria do estado em que se encontram as universidades. Não creio que a elevada taxa de abandono dos estudantes só seja assacada às universidades, aos professores, às decisões questionáveis do ministério da tutela. Os estudantes também têm uma elevada responsabilidade.

Não se questiona que os jovens abdiquem do direito ao ócio. O divertimento faz bem, contribui para o seu crescimento como pessoas. Mas talvez fosse boa ideia inverter as proporções do tempo que dedicam ao estudo e à farra. Quem sabe se não passa por aí, por um sentido de responsabilidade individual, o caminho para o sucesso no percurso dos estudantes universitários. Depois há a cultura de facilitismo que se instalou. As tentativas de colocar os alunos a trabalhar sinalizam a sua desmobilização. Só se sentem incentivados quando o professor facilita as suas tarefas. Mesmo que tenham que pagar um preço perigoso: o de saírem impreparados das universidades, de serem atirados para a selva do meio profissional sem terem o treino da exigência intelectual.

Sampaio, entretido com os discursos de onde floresce o “sampaiês”, devia medir as palavras. Escusava de dar trunfos a quem não está isento de culpas no processo. Só se Sampaio quiser engrossar a leva de pedagogos com fraca reputação que são, eles sim, os culpados número um do estado calamitoso a que se chegou. Ou isso, ou a figura presidencial descobriu, agora, que é o zelador dos interesses dos estudantes universitários…

10.5.05

Os penachos que nobilitam

Já em tempos escrevi sobre a mania de pavonear o Dr. que há dentro de nós. Hoje vou estender o exercício para tentar perceber o que leva muitos dos meus colegas a ostentar a imponência do “Prof. Dr.”. Isto vem a propósito de algo de descobri nas páginas pessoais que os professores da universidade são convidados a inserir na Internet. A universidade fornece um guia que orienta, passo a passo, a construção da webpage. O primeiro campo que temos que preencher traz a seguinte informação: “nome, incluindo títulos honoríficos”.

Os coleguinhas que já cumpriram a tarefa não se coibiram de colocar o “Prof. Dr.” antes do nome (ou, nalguns casos, “PhD” à frente do nome; ou mesmo “Mestre”, para os que estão ainda no percurso que os há-de levar ao doutoramento). Não conseguindo resistir ao apelo de quem elaborou o guia de orientação da webpage, lá colocaram, com todo o garbo, o “título honorífico” que tanto os enobrece. Numa pesquisa rápida, a esmagadora maioria dos doutorados com página pessoal apresenta-se como “Prof. Dr.”. A proporção anda à volta dos 75%.

No afã de mostrar a vaidade de quem possui o título académico que, para consumo doméstico, é em muitos casos o apogeu da carreira (enquanto em Inglaterra, o expoente do meio universitário, o doutoramento apenas marca o início da carreira), há casos absurdos. Como o desta colega, que nem sequer se apercebeu que antes do seu nome aparece um patético “Professora Doutoura” (sic)! Será uma “douta toura”? Já não bastava a ousadia de colocar o título por extenso, ignorando que a titulação está reservada aos que atingem o topo da carreira – os professores catedráticos (o que não é o caso desta recém-doutorada…). E depois há este caso, que teve a sensatez de escapar ao alçapão do título nobilitante antes do nome, mas borrou a pintura com a caricata fotografia que inseriu na página, com a ridícula toga que tresanda ao que de mais bafiento têm os rituais académicos. Não está lá o título, mas está a veste do lente que mostra toda a sua altivez e exibe a pose professoral de quem se apresenta…como “Prof. Dr.”!

Sei que um grau académico – qualquer que seja – exige sacrifícios pessoais. Um desafio, um cabo tormentoso que foi dobrado. Daí que certas pessoas gostem de ser reconhecidas pelo feito pessoal. Uma forma de insuflar as pequenas vaidades que fermentam o ego que se quer libertar das suas amarras. Sei que no mundo académico lusitano os seus intérpretes gostam de se esbofetear reciprocamente com os títulos que possuem. É um estranho ritual: as pessoas tratam-se por doutor, a deferência necessária e obrigatória para elevar o respeito mútuo ao altar que as pessoas do meio acham que merecem. Sem darem conta do ridículo em que se embrulham.

O provincianismo luso encontra terreno fértil nesta mania a que os académicos se entregam. No estrangeiro, as pessoas do meio académico colocam os títulos de lado e insistem num tratamento informal (falo pelo país que melhor conheço, o Reino Unido; ou pelo ambiente dos congressos em que tenho participado em diversos países. No entanto, a veia nobilitante dos títulos também é dominante na Alemanha e em Espanha, por exemplo).

Contam-me histórias de colegas que ao chegarem ao patamar de “Prof. Dr.” exigem tratamento adequado dos funcionários administrativos. Como se tivessem a necessidade de se lembrarem a si mesmos, a toda a hora, que o são. Parece que têm dúvidas do mérito da façanha que foi (para eles) chegar aos píncaros de um doutoramento. Eis outra dimensão do nosso provincianismo: de como vemos no grau o púlpito de um trajecto, como se mais nada houvesse para conquistar. Enquistam-se à sombra do penacho adquirido, muitas vezes ao fim de uma interminável maratona. Como se fazer um doutoramento fosse uma tarefa homérica.

As falsas modéstias são, muitas vezes, a maior forma de vaidade. Nada disto conflitua com a discrição de uns poucos, que querem antagonizar com os exageros que muitos cometem quando acenam com vigor o título adquirido. Na estranheza do título anteceder o nome, como se houvesse uma alteração da identidade da pessoa. Fica a proposta, para dar cumprimento às vaidades ocas que por aí andam à solta: porque não exigir da burocracia que nos asfixia que os títulos surjam no bilhete de identidade? Se muitos insistem em dar-se a conhecer como “Prof. Dr.” (seguido do nome), obrigue-se o registo civil a averbar essas alterações no nome de quem as gosta de ostentar.

9.5.05

Quem anda à chuva molha-se: inocentes cigarrinhos de haxixe no Dubai

É grande o alarido por causa de um cineasta que se fez acompanhar até ao Dubai de uns inócuos cigarros de haxixe. Na deslavada sangra de lágrimas das habituais carpideiras, montou-se o estendal da comiseração. A campanha está aí, apelando à solidariedade colectiva em relação a Ivo Ferreira, preso no Dubai, em condições sub-humanas. “Apenas” por uns inocentes cigarros de haxixe, o concidadão presta-se ao tratamento humilhante dado pelo sistema judicial daquele país árabe. O problema é que aquele “apenas” é mais do que um pormenor. É a manifestação de um etnocentrismo que nós, europeus, temos dificuldade em atirar para trás das costas.

Por mais do que uma vez já aqui manifestei a minha posição em relação às drogas. Deviam ser todas legalizadas – e quando digo todas, digo mesmo todas, das mais leves às mais duras, incluindo as sintéticas. Mas defendo esta posição no contexto em que vivemos, no enquadramento sociológico e cultural que nos envolve. Quando defendo esta posição extremada (admito-o), faço-o por sentir que a sociedade se devia libertar de preconceitos que a levam a censurar o consumo de estupefacientes. Quando é tolerante com o consumo de outras substâncias legais que podem levar a estados de dependência tão profundos como as drogas que estão criminalizadas.

Por isso estou à vontade para lamentar o ruído, a vaga de fundo que se ergueu à laia de amofinação colectiva por um patrício que deu com os costados numa cadeia de um país tão longínquo. À vontade por defender a legalização das drogas, mas com a sensatez de reconhecer que outros países, com hábitos bem diferentes, fruto de um contexto cultural e religioso que está nos antípodas do nosso, possam ter uma posição mais rígida. E quem os pode censurar por perseguirem de forma tão dura o consumo de qualquer tipo de droga, mesmo que seja a posse de uns simples cigarros de haxixe? Dirão os incrédulos que por cá o haxixe vive no limbo da lei: será crime o tráfico, dificilmente será criminalizado o consumo. E, portanto, é inadmissível que um país ouse descer o duro braço da lei sobre quem se faz acompanhar por meia dúzia de cigarros de haxixe.

Este é o erro dos que, sem darem conta, são apanhados na armadilha do etnocentrismo. Se queremos que as outras civilizações respeitem os nossos hábitos, temos que respeitar a sua cultura. Somos incapazes de o fazer devido ao legado da tradição europeia de colonização. Quisemos levar a civilização aos bárbaros que colonizámos. Mas estes bárbaros não estavam na orfandade civilizacional. Tinham a sua cultura, os seus hábitos, a sua religião. Tentar avaliar a superioridade cultural de uns em relação aos outros é um terreno pantanoso com as consequências que ficam à mostra: o choque de civilizações – de que falava Samuel Huntington –, o fermento para os conflitos que se sucedem à era da guerra-fria.

Ivo Ferreira foi em digressão até ao Dubai. Devia saber que aí o consumo de qualquer droga é crime, e devia saber que é combatido de forma implacável. Se não sabia, que se informasse. Na sua qualidade de cineasta, não é crível que seja pessoa desinformada do que se passa no mundo. Qualquer alma com os olhos abertos sabe que os países árabes são pouco contemplativos com o consumo de qualquer tipo de estupefaciente. Ora, Ivo Ferreira ou é estúpido ou pisou a linha do risco. Ao fazê-lo, devia assumir as consequências dos seus actos. E não a encenação melodramática montada, com a descrição das condições em que foi detido, com a revelação da falta de garantias de imparcialidade do sistema judicial do Dubai.

Nada disso me interessa. Quando vamos a um país devemos ter o cuidado de recolher informações sobre o que não devemos fazer, para não ferir os usos e costumes locais, para não cairmos em infracção por actos que são legais no nosso país. Se pisamos o risco, e se o fazemos com consciência do risco, temos que assumir a responsabilidade do comportamento. O que Ivo Ferreira fez, com a ladainha ecoada pela comunicação social, apelando à intervenção do governo, é lamentável. É a imagem de um adolescente irresponsável que sabe que pode fazer o que lhe apetecer, porque na hora do aperto há-de surgir a figura paternal (aqui na “pessoa” do governo) para limpar as asneiras que andou a cometer.

O que devia fazer um governo responsável? Nada. Deixar Ivo Ferreira ser julgado de acordo com as leis do Dubai. Dirão os aflitos com as condições miseráveis em que se encontra o cineasta: mas isso não é votar Ivo Ferreira ao abandono? Direi que não, que é arrepiar caminho à responsabilização individual pelos actos de cada um.

6.5.05

O desconfiado

Está sempre a olhar por trás do ombro, na suspeita de que alguém o vai apunhalar pelas costas. Se pudesse, gostava que a nuca tivesse um olho incorporado. Porque ele sabe que as coisas se passam nas suas costas. Vendo em si um corajoso de primeira água, acredita que ninguém tem a ousadia de o enfrentar olhos nos olhos, de fazer as trapaças nas suas barbas. Por isso anda um passo à frente com a mira afinada para trás. Desconfia. De tudo, de todos. Se calhar, até mesmo dele desconfia.

Atormentado pelo negrume do mundo, o desconfiado rezinga. Para ele, o mundo é um universo composto de pessoas que se querem enganar a toda a hora. É como se todos os humanos nascessem possuídos de uma desconfiança genética. Como se nascêssemos para dar a facada nas costas dos que convivem connosco, dos que circunstancialmente entram em contacto connosco. Para evitar que seja a outra pessoa a tirar partido do embuste, o desconfiado entra à defesa. Metódico, sempre de pé atrás, na certeza de que pode ser enganado por outrem. Para que isto não suceda, toma a dianteira: a iniciativa é sua, manobra os cordelinhos e, em vez de ser o alvo da pérfida trapaça, é ele o trapaceiro.

O desconfiado desconfia porque sabe que ninguém pode confiar nele. Ao rever-se no espelho, reflecte a sua imagem nos que o rodeiam. Como está habituado aos logros que levam a palma na arte de ludibriar o próximo, concebe as outras pessoas à sua imagem. E nada é genuíno: sentimentos frouxos, falsificados, pontuados pela dissimulação. Os sorrisos amarelos são a arte maior de uma cosmética simpatia, uma aparência para levar no engodo os ingénuos que acreditam na sua boa-fé. Os actos são preconcebidos, carregados de manobras sinuosas que fogem de uma linha recta. Tudo soa a falsidade. As palavras têm a ressonância das mentiras ditas por quem mente com todos os dentes que tem e consegue passar a mentira como a verdade mais espontânea e credível.

Mas o desconfiado vive agrilhoado na tormenta de si mesmo. Abraseado pela desconfiança, vive no permanente suplício do assalto dos seus fantasmas. Ele é vítima de conspirações que só ele consegue imaginar. O mundo está contra si. Todos estão contra si, numa vitimização absurda que nasce dos complexos que tem de si mesmo e que projecta nos outros – sem querer saber se os outros, por poderem ser diferentes, não embarcam na desconfiança metódica, não alimentam o comportamento farsante de quem desconfia.

À noite, o desconfiado deita-se com os seus fantasmas. Dir-se-ia que antes de repousar a cabeça no travesseiro ergue os lençóis, não vá um inimigo encontrar-se escondido numa dobra dos lençóis, preparado para desferir a facada fatal. Deita-se, então, mais sossegado. O sono traz-lhe o bramido dos fantasmas que lhe povoam o subconsciente. Mesmo os sonhos são terreno flagelado. Dorme agitado, a sonhar o dia que há-de vir, as manobras periclitantes de quem o quer enganar, naquilo que há-de fazer para se antecipar a esses desígnios.

O desconfiado é a expressão perversa do individualista. Aliás, um falso individualista, que necessita de conviver com os outros porque a arte de os aldrabar é o oxigénio que dá sentido à sua vida. Sem os outros, o desconfiado é um alienado de si mesmo, um deslocado do mundo. Ao situar-se no epicentro de si mesmo, ao fazer dos outros satélites da sua encenação ludibriante, renega o que há de genuíno no individualismo benigno: valorizar o eu, na crença de que só uma interacção pacífica e voluntária com os outros eus faz mover o mundo com harmonia.

5.5.05

Mudar de povo

É recorrente: a ignorância, aliada à maldade doentia, descamba em crimes hediondos. A ignorância assim nutrida vem alimentar a sede de vingança, essa coisa reles chamada “justiça popular”. É o povo que, do alto da sua terrível ignorância, responde à miserável ignorância, à macabra propensão para o crime. De vez em quando somos assaltados pelas imagens da turba indignada que, fosse feita a sua vontade, dispensava a existência de juízes, passava por cima das regras civilizacionais que nos ensinam que a justiça não se deve fazer com as próprias mãos.

Ontem, mais do mesmo. Um crime incompreensível: maus-tratos numa criança de tenra idade, roubando a vida da infeliz criança. Pai e avó simulam o rapto da criança para se verem livres da suspeita do crime que cometeram. Com o requinte de malvadez de terem atirado a criança, já cadáver, para as águas do Douro. Quando se soube dos pormenores do crime, a populaça não conteve a ira. As pessoas saíram de casa e dirigiram-se ao tribunal onde os criminosos iam ser interrogados. Montou-se o cerco. As televisões acompanharam a exibição de revolta popular. A democracia é linda, e mais se exalta a sua grandeza quando assume estas manifestações de “democracia popular”. Porque há quem acredite que a voz do povo é a voz da sabedoria.

Estes arruaceiros acreditam piamente que conseguem iludir a apertada vigilância policial e subtrair os criminosos para fazerem “justiça popular”. A sede de vingança alimenta o fervor popular. A gentalha revela o selvagem que há dentro de cada um: contido quando não tem razões para destilar ódio, soltando a selvajaria que habita nele quando algo acontece que detona o protesto hibernado. Só a ignorância, ou a mal formação individual – ou as duas coisas ao mesmo tempo – explica a propensão para a bandalheira social, tão do agrado da frouxa imprensa que por aí anda.

A ignorância explica a deriva comportamental. São as pessoas que ignoram como funciona a sociedade modelar em que estão convencidas que vivem. São elas os esteios da sagrada democracia, porque se insiste que todos temos o mesmo direito de voto, independentemente das capacidades de cada um. A pessoa mais ignorante, mais alheada do mundo, tem o mesmo poder de influenciar que uma outra dotada de sensatez, equilibrada, informada. É isto que não está certo. Por mais que esta minha conclusão arrepie as sensibilidades do politicamente correcto, mantenho a ideia: devia existir um mecanismo qualquer que retirasse o direito de voto às criaturas alienadas que dessem para o peditório da justiça popular.

Mas não são apenas estas espécimes que vendem ignorância a rodos. No mesmo dia, o conhecimento de três casos de meningite numa escola dos arredores de Lisboa. Instalou-se o alarme social, pois o tipo de meningite detectado é do mais contagioso. Percebe-se a preocupação que se apoderou dos pais das outras crianças da escola. O que já não se compreende é o histerismo que os levou em massa à escola, a exigir da direcção coisas que ela não tem competência para decidir (o encerramento da escola). Ao povo não interessa saber quais as consequências que a directora da escola sofreria se aceitasse a exigência. Pudera, não era o povinho a arcar com as consequências! É a democracia popular no seu esplendor: o povo exige, cumpra-se a vontade do povo. Não interessa saber que há pessoas legitimadas para tomar as decisões (ou o contrário do que o povo exige).

A ignorância popular não tem limites. Intriga-me como podem aqueles pais e mães assentar arraiais numa escola onde se descobriram casos de meningite. Se a doença é tão contagiosa, como podem os pais arriscar uma ida a um local onde a bactéria anda à solta? Será que querem ser portadores da doença, incubando-a nas suas casas e oferecendo-a de contágio aos seus filhos? Quando a solução seria ir a qualquer local menos à escola, aqueles pais ignorantes fizeram o contrário do que seria sensato. Onde a irresponsabilidade se mistura com a mais pura ignorância – ou onde a ignorância é o alicerce de uma irresponsabilidade que aquelas pessoas não têm capacidade para discernir.

É por isso que me custa ver gente deste calibre a ter o direito de voto. Concedo que é uma conclusão pouco popular. Será fácil chamar-me anti-democrático. Mas bastará um manto de formalismo (uma pessoa, um voto) para sermos democráticos? Devemo-nos contentar com uma democracia que põe no poder alguém à custa de uma turba de ignorantes?

Em tempos alguém disse que o mal do país não é o país que temos. Que seria necessário mudar de povo para termos um país decente. Um sonho distante, que disso não passa. Mas um sonho que desnuda a realidade que nos circunda.

4.5.05

Os piropos dos trolhas

São os campeões do marialvismo. O trabalho é árduo, físico. Arcar com tijolos, sentir a poeira do cimento entranhar-se nos poros e nos pulmões, suportar os rigores do clima – ora a chuva que ensopa os ossos, ora o calor abrasador que tosta o cérebro – não está ao alcance do comum dos mortais. Entende-se que eles tenham que fazer uma pausa no trabalho. Ou para beber mais um gole de cerveja, ou para deliciar a vista quando passa um mulherão que está mesmo a pedir que se solte o relambório de piropos que engrossa a cartilha bem composta dos trolhas.

Em frente ao meu prédio está a nascer um edifício. Depois das fundações, depois das placas de cimento armado que fazem as divisórias entre os andares, chegou a etapa dos tijolos que vão separar os apartamentos e, dentro destes, as divisões. Veio uma nova fornada de trolhas – são mais, e de outra estirpe. Menos refinados na educação. Há um que está sempre a trautear uma melodia entoada pela claque de energúmenos do clube de azul e branco. Outras vezes canta a música que os facínoras cantarolam para celebrar o seu papa – qualquer coisa como “Pinto da Costa, olé, Pinto da Costa, olé”. Nem o vidro duplo da marquise do meu escritório é barreira auditiva para os impropérios que disparam uns aos outros, quando um asneira. Mas onde eles se destacam é nos piropos dirigidos às senhoras que parqueiam nas imediações.

É certo e sabido: começam com uns assobios, para chamar a atenção da fêmea que acabou de sair do carro. Depois soltam-se os grunhidos que escondem umas palavras, na maioria das vezes imperceptíveis. Quando alcanço o que aquelas bocas esfaimadas destilam como encómio à mulher mais ou menos escultural que desfila na rua, são palavras imaginativas, carregadas de sentido de humor. Há os que descambam para a ordinarice – que no final predomina. Aos que não resistem a soltar palavras desagradáveis, apetece perguntar: qual é a intenção? Aposto que não será engatar a mulher que vai pela rua, orelhas moucas às palavras ensandecidas. Mas, e se fosse? Seria com a jactância de um homem das cavernas que lá iam? Ou será apenas a genética do marialva que se preza, da criatura que ainda acredita que elas gostam mais daqueles que as maltratam?

Estes trolhas estão desenquadrados. Ou serei eu? Agora que as mulheres, no fulgor da sua emancipação, reivindicando igualdade de direitos a torto e a direito, em teoria fogem dos desbocados marialvas que ainda as tratam como objectos, os trolhas são peças de arqueologia que vivem aprisionados ao passado que desprezava o romantismo – pelo menos na fase da conquista. Não é de estranhar: a aliança entre a força bruta da musculatura e a inoperância dos neurónios impede os trolhas de verem mais além. O mulherio, ainda e sempre o objecto que materializa o desejo másculo – e apenas isto.

Esta verborreia inconsequente sinaliza outro estado de alma. Frustrados pelo insucesso em chegar ao coração das damas – em rigor, não é bem aí que os trolhas querem chegar – exaltam a insatisfação através dos piropos que interrompem a jornada de trabalho. A insensibilidade que exalam é o suor baço e pútrido que repele o sexo feminino. Mas os trolhas satisfazem-se com pouco: incapazes de transformar as ameaças embebidas nos piropos, os trolhas restringem-se a uma imaginação (fértil?). E daí não passam. O mulherio que anseiam (será?) passa-lhes ao lado, como quem tenta estender uma mão para agarrar os grãos de areia soprados pelo vento em sentido contrário.

A boçalidade presenteia-os com o infortúnio, tornando mais elástica a báscula que os separa do sexo feminino. Quem sabe se por se sentirem injustiçados – ao não serem correspondidos nos flirts desajeitados – especializaram-se no palanfrório insultuoso para as mulheres. Prova da inteligência que (não) abunda. Possuídos de um orgulho masculino ímpar, são exemplos envaidecidos de uma heterossexualidade gorada. Não dão para homossexuais, porque isso atenta contra os padrões mentais em que foram formatados. Resta-lhes serem amibas: na recusa da homossexualidade, mas sem sucesso com as mulheres.

É aqui que faz sentido recordar o adágio: “cão que ladra não morde”!

3.5.05

Os novos bufos

No tempo da ditadura estava instalada a cultura da delação. Era assim que os opositores do regime davam com os ossos na cadeia e se sujeitavam às torturas ignóbeis. Derrotada a ditadura, uma nova visão do mundo. No discurso oficial está presente a recordação dos tenebrosos tempos do Estado Novo. Relembra-se a ausência de liberdade de expressão, as perseguições políticas, o clima de terror social com a desconfiança sempre ao virar da esquina. Na retórica “anti-fascista”, ergue-se o dedo aos bufos que sopravam aos ouvidos dos facínoras polícias da PIDE os segredos que denunciavam quem ousava falar contra o regime. Hoje as criancinhas são ensinadas que bufo é das piores coisas que um cidadão decente pode ser. Vestígios do “fascismo” que temos que combater para sempre (mesmo que as ameaças do “fascismo” não passem de fantasmas que ensombram estas mentes desorientadas).

Agora somos convidados a ser bufos de novo. Não ao serviço de uma qualquer polícia política. O convite à delação é feito em nome dos superiores interesses de todos nós, ou seja, do fisco. Permanece a mania que as contas públicas se equilibram apenas com mais receitas embolsadas pelos cofres do Estado; continua o tabu do outro lado do orçamento: assegura-se que uma fatia significativa dos gastos do Estado é inamovível. É por isso que levamos com manobras sucessivas de reengenharia financeira para arrecadar mais receita. Como se insiste que há muita fuga aos impostos, vinga a ideia de que a prioridade é o combate aos que ousam escapar a esta obrigação social.

A derradeira novidade tem laivos de uma imaginação febril. Dos zeloso burocratas que tiram da cartola os coelhos mais mirabolantes para impedir que os contribuintes não paguem impostos. Agora os guardiães dos impostos lembraram-se de dirigir a sua ira contra as empresas que organizam festas de casamento. Se calhar a imaginação febril guindou-os à seguinte conclusão: o combate à fraude fiscal daquelas empresas será suficiente para enxugar as contas públicas. Será então tempo para dizer adeus aos apertos orçamentais motivados pelo terrífico Pacto de Estabilidade e Crescimento. A luz anuncia-se ao fundo do túnel: quando aquelas empresas pagarem os impostos a que se furtaram, as contas públicas ficam equilibradas. Dir-se-ia que aquelas empresas devem representar uma parcela importante da economia subterrânea que desvia recursos dos cofres do Estado...

Pena que o método dos censores sociais (os guardiães do fisco) seja duvidoso. Decidiram enviar inquéritos a quem se tenha casado nos últimos tempos. Para averiguar quanto pagaram pelo serviço que a empresa de eventos lhes prestou na boda. Para depois fazer as contas de merceeiro e concluir que aquelas empresas fugiram aos impostos. No fundo, somos convidados a fazer de bufos – nesta adaptação moderna, de “bufos do fisco”. Desdizendo a cultura oficial que está sempre disposta a relembrar os malefícios do “fascismo”: se é verdade que ser bufo no Estado Novo é motivo de crítica áspera nos tempos que correm, porque havemos de ser complacentes com este pedido do fisco que nos quer transformar em bufos ao seu serviço? Como se tivéssemos a obrigação de delatar; como se tivéssemos a obrigação de fazer o serviço que é exigido ao fisco.

Estou a adivinhar os moralistas de serviço a anuírem na função, dizendo que se trata de uma obrigação inerente à nossa convivência em sociedade. Pagar impostos é o preço de fazermos parte de um colectivo chamado país, chamado Portugal. Quem foge a este imperativo deve ser denunciado. De outra forma, dá-se a iniquidade de uns pagarem os impostos e de outros, os que fogem, tirarem o mesmo partido dos serviços prestados pelo Estado, sem para eles contribuírem. Ora essa argumentação funciona em sentido contrário. Explico-me: quem me dera poder fugir aos impostos! Irresponsabilidade? Não, apenas salutar inveja de quem consegue fugir, adicionada a uma genética alergia a tudo o que signifique o roubo à propriedade privada que dá pelo nome de impostos.

Desconheço se vou receber o inquérito do fisco. Sei que de mim a administração fiscal não leva informação nenhuma. Porque é feio, muito feio, ser bufo!

2.5.05

Domingo à tarde, IC1 a setenta à hora

Não tinha saudades de ir para a estrada ao domingo à tarde. Não tinha saudades de me exasperar com os domingueiros que se espalham estrada fora, com a lentidão que põe a paciência à prova. Ontem tive que ir a Ponte de Lima. Pelo IC1 fora (agora chama-se A28, à espera que o primeiro-ministro mantenha a promessa espúria das portagens virtuais, essa decisão iníqua e economicamente irracional), parecia que ia numa procissão. Carros e mais carros, em duas velocidades: devagar e lento. Os que iam devagar punham-se do lado esquerdo, ensaiando ultrapassagem aos lentos. Estes a setenta à hora, os que se aventuravam pela faixa da esquerda a setenta e cinco, do alto do orgulho de quem vai a ultrapassar uma fileira de parceiros que se ia arrastando domingueiramente pela estrada.

Carros que saem da garagem ao fim-de-semana. Depois do almoço dominical em famelga, espairecer as pernas dentro do veículo (estranha forma de fazer desporto; depois ficamos alarmados com as estatísticas do colesterol, dos enfartes de miocárdio, das tromboses). Mete-se a família no carro para o passeio dos tristes. Dantes, entupiam a estrada nacional. Odisseia que se prolongava tempo fora. Demorava-se mais de uma hora para se fazer trinta quilómetros. Porque domingo é para descansar. Para deixar as pressas para trás das costas. O stress é exclusivo dos dias de semana. É aí que o ritmo de vida se faz alucinante. O fim-de-semana é o império do repouso. Na aclimatização do ócio, até as máquinas potentes que famílias endinheiradas passeiam na estrada marcam o passo de caracol, tragando quilómetros com a lentidão que a preguiça aconselha.

Depois há os apressados, essas aves raras que ao fim-de-semana, guilhotinados pelo tempo que corre voraz, deviam ficar em casa para não prejudicar a procissão lenta dos domingueiros. São eles que furam o entorpecimento que se semeia pelas estradas. São eles que aborrecem a lentidão sossegada dos domingueiros militantes. Malditos espécimes, que deviam aprender a andar devagar porque o fim-de-semana é tempo de reparar forças, de olvidar o frenesim dos longos dias de semana.

Os domingueiros sentam-se nas suas bombas artilhadas, que repousam na garagem (ou ao relento) pela semana fora. Engraxam a viatura ao sábado, para ao domingo se pavonearam com garbo, família apensa, estrada fora. Embarcam numa competição para ver quem consegue andar mais devagar. Pedem meças uns aos outros, para ver quem consegue engarrafar mais o trânsito. Depois do lauto almoço, bem regado com o verde tinto que tresanda a zurrapa, sentam-se ao volante e fazem uma semi-sesta aos comandos do automóvel. Meio cérebro adormecido – fim-de-semana oblige – e a outra metade em salmoura nos vapores etílicos que viajam de neurónio em neurónio.

A euforia contida faz deles os campeões da prevenção rodoviária, pois vão muito dentro dos limites de velocidade. Se acaso fazem manobras imprevisíveis – mudar de direcção sem o pisca-pisca, parar inopinadamente na berma da estrada para comprar melões, ultrapassar quando alguém já o vai a fazer, circular devagar nas auto-estradas pela faixa da esquerda, como se estivessem heroicamente a ultrapassar o vácuo – sabem que não estão a infringir preceitos do código que convocam a sinistralidade rodoviária. Os maus da fita são os imprevidentes que ousam circular aos domingos a velocidades impróprias. Esses são os responsáveis pelos acidentes. Nunca os domingueiros, que nem sabem o que estão a fazer ao volante, a macerar o álcool que regou o almoço avantajado. Não eles, com as manobras imprevisíveis que causam acidentes – e depois apressam-se a atirar as culpas para o outro, porque devia ter dons de adivinhação.

No regresso de Ponte de Lima não quis repetir a experiência. Como estes “senhores prudência” poupam todos os tostões que puderem, suspeitei que a auto-estrada Valença-Porto estivesse desanuviada destes espécimes: tendo o IC1 gratuito, para quê pagar portagem na A3? Ganhei a aposta. A auto-estrada tinha menos trânsito. Os domingueiros não gostam de auto-estradas a pagar. Benditos 4.85 euros de portagem! A chancela para me ver livre da chaga dos domingueiros.

Tão cedo não me apanham na estrada ao domingo…