28.2.23

Outra versão, mas sem espinhas

Ólafur Arnalds ft. JFDR, “Back to the Sky” (Sunrise Session), in https://www.youtube.com/watch?v=5GIBRelGHpc

Nem que fossem as estrelas os mandamentos imperativos, nem assim aceitava sair de si para uma qualquer transfiguração. Nunca a expressão “muito senhor de si” fez tanto sentido. Mas este ensimesmar tornara-se um terrível objeto de contrafação interna. De tanto insistir na matéria axial, ele deixara de fazer sentido até para ele próprio. Demorou a admiti-lo, mas foi essa a espuma que veio no regaço de uma maré. Soando como um terramoto.

Tinha de dar uma diferente versão de si. A começar, esta oferenda seria destinada a si mesmo. Se a versão que julgara ser o eu autêntico não era uma representação fidedigna, teria de encontrar outra. A incumbência era irrecusável por ele ser o mais favorecido. Precisava de se despir do sangue que era o agente agressor. Precisava de virar a carne do avesso para descobrir onde estava contaminada. Não precisava de um instrumento que ampliasse a visão, pois conseguiria descobrir onde estava a matéria pútrida à vista desarmada, os abcessos que o tornaram alguém estranho por dentro de si mesmo.

A mesma certeza não tinha quanto à outra versão de si que haveria de amarar no palco onde nos terçamos. Deixar de ser o eu que se habituara a ser já era dilacerante. Sempre fora à prova de dúvidas e por dentro de si as certezas sobre a sua pessoa eram como impermeável a arsenais e a torturas. Que versão se emanciparia desta catarse não entrava para o rosário das certezas contundentes que eram tão afluentes.

Para não andar longe da lógica, não se pode estender um braço filantropo quando alguém se apalavra a uma transfiguração. Já percebera que as mudanças não transigiam com o minimalismo, que essas seriam de circunstância e não povoariam a desejada mudança. Talvez a outra versão, desta vez sem espinhas, fosse a resposta que procurava. Com as propriedades telúricas que a simples definição de “outro” como intenção representava. Não interessava saber que outro eu sairia do exercício catártico. Folgava em saber que a empreitada estaria completa quando o eu desandado estivesse despojado de vez. Diria, com alguma desilusão a caldear o olhar nostálgico, ser uma lógica de mínimos, com alguma desambição pelo meio. Faz-se o que se pode, com o que se tem entre mãos, na proverbial confissão das fragilidades que limitam o perímetro das mãos. Tinha-o por intendência à conta da humildade que não é a moeda fraca em que nos compomos.

Talvez deixar de ser quem era seria a outra versão exigida. O resto seria jogado no tabuleiro onde as contingências rimam com o porvir. Devia esperar que a outra versão albergasse espinhas, outras espinhas, diferentes das que se habituara. Não há versões outras, nenhumas, à prova de espinhas.

27.2.23

O que aconteceu no futuro?

Um olhar de fora perguntou como tinha sido o futuro. As pessoas, umas entretidas a afiar canivetes, outras a sopesar sonhos na manta intemporal em que se teciam, fingiram não ouvir a pergunta.

Insistiu: alguém sabe o que aconteceu no futuro? Aos poucos, umas palavras timoratas foram sendo atiradas para a pantalha onde tudo se passava. Uns resgataram as inadiáveis desculpas que são a alfândega por onde o futuro não passa. Dir-se-ia, são os que habitualmente adiam o futuro. Outros puseram um sorriso fotogénico para quadrar com os lampejos de claridade que se emprestavam ao futuro acontecido. O céu sob o qual nos albergamos é uma perenidade de esperança. Alguns ficaram a meio da ponte, caldeando contratempos com proezas, próprias ou que, sendo alheias, foram apropriadas como património comum. Outros, ainda, pareciam dormir por dentro da sua hibernação enquanto o tempo percorria as suas peles anestesiadas. Ou, pelo menos, fingiam.

As respostas eram pouco convencedoras. Continuava sem saber o que aconteceu no futuro e ainda ninguém o tinha convencido que não era importante chegar ao futuro antes dos demais. Era um ativista do tempo pressentido. Desde que ficou a saber o que era um oráculo, nunca mais desistiu de adivinhar o tempo que ainda estava a léguas de existir. Era um exercício lúdico – e sabia-o bem. Que não lhe dissessem, com a pose exacerbada de quem profere lições de moral, que nada se sabe sobre o futuro e que a sua contingência trava a utilidade dos oráculos. Não queria saber desses pré-avisos de sensatez. Deixava que a lucidez lançasse âncora noutros cais.

Sabendo da improficuidade da sua demanda, recusava-se a capitular. Continuava a perguntar aos outros se sabiam do paradeiro do futuro. Desejava tanto saber o futuro antes de ele o ser! Dava o seu contributo. Recorria ao seu particular oráculo e penhorava o futuro com palpites. Não tinha medo de errar – assim entronizava a razão dos moralistas que, em pose tão superior, davam lições sobre a contingência do futuro e de como ele é imprevisível, à prova de presságios. 

Uma e outra vez, insistentemente, continuava a perguntar o que aconteceu no futuro. Aos outros que tivessem uns gramas de resposta, e a ele próprio, que passou a exibir no cartão de vista, sob o nome e morada, a inscrição “futurólogo”. De cada vez que o futuro cuidava de confirmar uma previsão arrematada pelo oráculo, exultava. Dirigia elogios interiores, que partilhava com os seus botões, de si tecendo loas pela presciência acima da média.

Um dia, um idoso que esbarrou no seu oráculo engalanado tomou-se de uma fúria porque ele adivinhara, semanas antes, um acontecimento que o futuro trataria de confirmar e que não agradara ao idoso. O velho, com mau cenho, advertiu-o. Que mania de tomar as rédeas de um tempo que ainda vai a tempo de acontecer. E, em jeito de despedida, censurou-o por a velhice não se compadecer com o futuro; quando o futuro vier a acontecer, talvez os idosos já não pertençam aos vivos.


24.2.23

Corsário (short stories #418)

Haircut 100, “Love Plus One”, in https://www.youtube.com/watch?v=5_msHpEa3_Y

          Não preguem virtudes, nem valores que depois não passam das páginas onde são formulados. Não apareçam com prenúncios de divindades, como se constituíssem a redenção das pessoas frágeis. Não meçam juras se se sabe, à partida, que são uma distração. Aconselhem-se com os maus exemplos. Um exemplo, para ser exemplo à imagem da fragilidade humana, tem de ser mau. Não são as intenções que contam, se à sua conta se contam tantos desencantos, tantas irrealizações. Não são as palavras sortilégio que se arquivam na caixa forte que vai sendo feita. Em sua vez, a errância sem remédio, os impuros ares habitados, as paredes enferrujadas que são o mapa das mãos imundas, por mais que sejam submetidas a lavagem assídua. São os maus exemplos que correspondem ao marco geodésico em que somos peões. No efémero pulsar de um sangue desabitado, como se fôssemos os ermos lugares sem direito a visitação. Fôssemos antes as desvirtudes que se agigantam na clepsidra contínua, um descontínuo apalavrar das medidas vagas pela grandeza apenas onírica. Em cada centímetro ocupado, a consciência de um território minado. O segredo é conseguir meticulosamente evitar as minas que a estultícia foi despojando para memória futura. Sem consagrar a angústia como a diletante forma de ser: o espaço ocupado pelos corsários não se oferece a santuários, é o pesar da desfortuna que açambarca as vidas. Em vez de idílicos retratos do futuro que não chega a ser, os corsários deixam cair o pano baço que vincula o olhar comprometido. Podemos ser corsários de doca seca, mas não deixamos de ser corsários. Na posse de uma rebeldia à prova de regras, combinando a indumentária puída com a imperfeição que se pode esperar dos tempos vindouros. Assim os maus exemplos avançam, diligentes, contra as fracassadas esperanças, contra os lautos sacerdotes de céus desimpedidos.

23.2.23

Road trip

 

The Smiths, “Bigmouth Strikes Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=yoKQwquHKQo

Haveria de haver, nem que em matéria onírica, um tempo apenas de estrada. Uma estrada sem obedecer a mapas e a roteiros. A única ordenança seria a ausência de rumo, deixando que fosse a estrada e as demandas que surgissem a cada momento a ditarem o caminho. 

As estradas seriam o único mandamento. Ao acaso, metendo pelas estradas secundárias, por outras que se suspeita não tenham paradeiro nos mapas, e outras que fugissem do asfalto em direção à solidão, onde a sumptuosidade da paisagem toma conta do idioma. Sulcando quilómetros sem inventário, preferindo os lugares nunca demandados, como se houvesse um chamamento pelo desconhecido. Sabendo que o desconhecido, depois de deixar de o ser, fortifica as ameias onde se cimentam os esteios interiores. Refazendo as coordenadas que são regência, para continuar a considerar desconhecidos lugares só ao de leve conhecidos. 

Ao acaso, sem planos, sem fazer ideia onde pernoitar, onde saciar a fome, a não ser o irreprimível desejo de uma larga temporada a ser forasteiro, a ser peça centrípeta do acaso. Deixando que o nómada rejeitado pelo acostumar dos lugares e do tempo repetido derrote o conformismo, deixando em lugar da apatia a sede maior da estrada. Pegando em todos os pedaços angariados ao longo da estrada para perceber que a bússola não é tiranizada por um quadrado que a cinge à pequenez castradora.

Estrada fora, ao encontro da alma mais funda, a alma anestesiada pela mesquinhez que roça o quotidiano. Uma fuga, com laivos de exílio necessário. Deixando que a estrada seja porta-voz das vozes interiores que forem sendo desembainhadas. Como se a estrada fosse o arnês para derrotar a capitulação dos dias restantes. E devolvesse o ar puro que foi sendo furtado pelo corrimão habitual de que as mãos se servem, sem darem conta de como está corrompido.

Pela estrada fora, sem saber onde está a casa da chegada. Sem saber como e quando costurar o regresso. E o legado deixado para memória futura, com a bênção das diferentes geografias, dos diferentes idiomas, das pessoas da mais variada estirpe que tenham sido atores nas palavras permutadas. Sem saber se a casa da partida é a casa da chegada. 

22.2.23

Escravidão (deus é drogado?)

Echo and the Bunnymen, “Bring on the Dancing Horses”, in https://www.youtube.com/watch?v=V_bJf3foa5I

Algures, depois de uma lua nova que ninguém notou, as pistolas estavam armadas, de atalaia, contra possíveis assaltantes. Mas podia ser apenas consequência do convencimento de uma doentia conspiração (ou do doentio convencimento de uma conspiração – ainda não tinha sido descoberto). Sob o aparato da liberdade, tantas vezes evocada que se exauriu dolosamente, ocultava-se uma escravidão silenciosa.

Havia ruas condimentadas de drogados. Uns, à procura de próxima dose, movendo-se como ratos desesperados enquanto não saldavam a deslocação. Outros, errando pelas ruas, mendigando qualquer coisa sem obterem vencimento de causa, o tempo a avançar e a abrir a carne viva para o vinagre que não demorava. Outros, ainda, abandonando o lugar ainda mais apressadamente do que à chegada, a procurarem o primeiro exílio onde pudessem satisfazer o vício, os prometidos efeitos lisérgicos à espera de serem o estado comatoso sem eles perceberem.

Desta escravidão poucos falavam, a não ser para expor uma decadência que falava de viva voz. Abjurando os dependentes das drogas mercadas e os que as transacionam, traduzindo por lucros a satisfação de todos os vícios em fila de espera. Não se falava disto como escravidão. Era a vergonha consequente à decadência que parecia cal viva atirada para cima de uma ferida aberta, sem que as dores fossem suportados pelas vítimas da escravidão; elas eram tuteladas pelas almas sensíveis que se consideram trespassadas por serem testemunhas de tanta decadência. Não eram dores em nome de outrem; eram dores próprias ditadas pela decadência alheia. Era como se a decadência fosse exportada dos autênticos escravos para os que vivem numa liberdade quase sem freios.

Porventura, a distração de deus consuma a decadência que atira almas humanas para uma subcondição, para serem intérpretes da miséria que tantas vezes é um labirinto sem saída. O mesmo deus, possivelmente atarefado com uma qualquer travessia no deserto, cuidando de abrir dunas com as diligentes mãos para irrigar um sequeiro e trazer a fertilidade a lugares que eram viveiros de infecundidade. Esse deus que anda distraído a caucionar as guerras congeminadas por homens estultos, dizem que à sua revelia, sem que ele se oponha a essa revelia com competência. 

Ou deus, em pessoa, é um drogado que podemos encontrar no grande mercado das drogas a céu aberto. E ele, esvaziado pelos efeitos tardios da dose anterior, incapaz de prover o seu sustento a não ser que seja fautor de um punhado de furtos e se dedique à recetação, esteja em negação. Abdicando do seu nome e do seu estatuto. Ou então, dando a descobrir a sua autêntica morada.

21.2.23

Flúmen

Expresso Transatlântico, “Azul Celeste”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZIonUZtqZeE

“É tão difícil guardar um rio

quando ele corre 

dentro de nós.” 

Jorge de Sousa Braga, O guarda-rios.

As paredes faziam as vezes de estradas. Eram o caudal por onde as lágrimas eram sofreadas. Não cabia em mim. Não cabia em mim porque havia um rio por dentro que não obedecia à vontade. Agigantava-se e não dava conta, a não ser quando já tinha transbordado. As margens não demarcavam o rio. As suas águas andavam por todo o lado, falavam um idioma baço que não tinha tradução. Só o rio é que tinha vontade.

Não consegui temperar a razia de um rio que acendia uma rebeldia indomável. Dizem: a rebeldia é sempre indomável. Dizê-lo é da ordem das proclamações que se tornam adultas por dentro de uma teoria. Senti-lo, como vítima dos seus tentáculos, é coabitar com a dúctil destemperança de quem sente na carne o lugar da vítima. 

Esse rio calado não anunciava o caudal excessivo que, mais cedo do que tarde, seria um folgado lençol a monopolizar a paisagem. Era como se tudo ficasse por conta do rio e o resto deixasse de contar. Não conseguia habilitar as veias para o antídoto de um rio selvagem. Não fora capaz de subir a um promontório para conter o rio à distância, nem fui diligente para levantar os diques que fossem precisos para educar o rio. Ele continuava a habitar-me por dentro, a tomar as rédeas logo a partir do magma, a sufocar os vulcões que nem conseguiam ser partícipes do seu irredentismo.

As pálpebras sonolentas vertiam-se sobre os olhos. Uma vez domados os olhos, o sono tomou conta do tempo. Com ele emergiram os sonhos avulsos que não pedem hermenêutica. Eram sonhos que submergiam o corpo nas águas lamacentas do rio em transgressão. Era possível encontrar troncos de árvores arrancadas às margens ocupadas pelo caudal vertiginoso, cadáveres de reses que não se salvaram do cerco, rostos conhecidos e outros subordinados a gente anónima, nomes em mutação, destroços de barcaças estacionadas em cais improvisados, mapas arrancados à terra, pedaços inteiros de mobiliário, sugerindo que casas ribeirinhas tinham sido levadas pela corrente irrefreável, um marco geodésico da consciência resistente. O rio inaugural destroçava o silêncio campestre e sobrepunha-se à desordem da cidade.

O rio em sobressalto não tinha guarda-rios. Era a sua própria lei, um paradeiro escasso por dentro de uma geografia colossal. Um rio que queria que o futuro pagasse os juros de arrependimentos mal guardados, sem contemplações, sem admissão a recurso. Todo o eu, um rio indomável. E eu, testemunha primeira de um suplício em desordem com o rio transgressor.

20.2.23

Implausibilidade

Perfume Genius, “Describe”, in https://www.youtube.com/watch?v=vAoWMJTClqo

As planícies ajudam a descansar. As subidas são inclinadas e o coração berra de fadiga. As descidas inflacionam a adrenalina e o perigo sente-se a estalar na boca. Se calhar devia apenas andar de barco, atravessando o rio de um lado para o outro, serenamente à espera que o tempo seja da outra margem. Na pior das hipóteses, sente-se o marear quando o rio se deixa contaminar pelas ondas vomitadas pelo vento sem regras. Os contratempos não podem ser excluídos.

Se não acordasse a meio da noite não saberia como se comporta a noite temperada pela solidão. É errado dizer que a noite é o santuário da solidão, que o pensamento não se enquista sozinho. Voam sozinhos, os arrependimentos. A lareira que já apenas crepita no seu estertor desacompanha as mentiras que querem espreitar pela escotilha. O silêncio consome-as, convidando para a sua sepultura.

E depois vem o amanhecer, a noite a desmaiar vagarosamente à medida que a claridade espreita pelo periscópio. E a manhã agiganta-se, diluindo o crepúsculo tardio numa claridade que se compõe no aroma da pureza. Às vezes, a claridade devolve um retalho do tempo em que parece que o tempo cedeu ao deslumbramento da sua suspensão. A noite continua no dia claro que persegue o tempo vindouro. Não se arruma num ocaso sem certidão. Essa é uma tirania que foi banida do dicionário que rege a humanidade.

Em vez de certezas, as ruas convidam uma nova toponímia. Não sentem remorsos por terem preparado as armadilhas que consomem o longo braço do estabelecido. Rompem as fronteiras sem haver registo da sua plausibilidade. Os vitrais que decantam a luz exterior deixam passar as legendas frugais que escolhem cada palavra, para as palavras não serem ao acaso, para não se deitarem na cama onde se aferroa a derradeira noite. 

Dizem: ninguém quer as mentiras, e essa é a maior mentira que se pode inventariar. Nem uma armadura medieval seria capaz de dar cobertura ao princípio geral da mitomania em que vivemos. Porque tudo se torna plausível, em repetitivas reinterpretações do passado que impedem a consagração de um presente definido. A verdade está pela hora da morte, e esta não chega a ser uma mentira averbada. 

17.2.23

Empate

Beck, “Loser”, in https://www.youtube.com/watch?v=YgSPaXgAdzE

Mote: Arthur Schopenhauer, Como ganhar uma discussão (mesmo sem ter razão) – 38 estratégias para vencer qualquer debate. Porto: Ideias de Ler, 2023. 

O remate da peleja é compulsório: um dos participantes será consagrado com os louros da glória, seus os argumentos que vingam por decreto de um qualquer tribunal sumário (que mais não seja, o autoconvencimento do vencedor). O dissídio só pode terminar com a capitulação de um participante. 

Os argumentos terçam-se num tabuleiro onde a razão se arremata como critério, para entronizar a razão açambarcada por um dos lados. Não pode haver empate. Como se fosse determinação de uma norma, todavia ausente dos códigos onde estão inventariadas as leis. A impossibilidade do empate é apenas um costume que se enraizou. O tempo, a maneira como ele desamadureceu, cuidou de exacerbar o método. Os argumentos passaram a ser esgrimidos como se de autêntica esgrima se tratasse – para pior: na esgrima, os praticantes sabem que não ferem ninguém. 

Os nomes encavalitados nas sucessivas camadas de argumentos pesam na hora de afiançar um resultado. Tantas são as vezes em que não é o mérito dos argumentos que se sopesa, apenas os nomes (ou as credenciais a eles inerentes) que emprestam lastro, e lustro, aos argumentos. As discussões perderam o carisma filosófico; o sentido da palavra adulterou-se: uma discussão ressoa, quase sempre, a um terçar de armas. As discussões passaram a ser uma modalidade de belicismo em que as armas foram substituídas pela violência com que os argumentos são esbracejados contra um oponente. 

A perda de sentido filosófico abastardou as trocas de argumentos, vilipendiadas pelo fórceps que exige um vencedor e um vencido. Quem participa desta conspiração – uma conspiração contra o ideal filosófico das discussões – é responsável pela polarização que toma conta das trocas de argumentos. E ninguém dá conta da sua adulteração. Deixaram de valer por si mesmas, substituídas pela perversidade do resultado que tem de ser alinhado pela identificação do vencedor e do vencido. 

O que devia imperar era a obrigação do empate, para desconstruir a soberba dos participantes, que mal entram numa destas pelejas vão industriados para a miséria que é a obrigação de vencer. Ninguém está preparado para aprender com o outro, se a demissão do empate se sobrepõe na lógica das discussões.

16.2.23

VCI

Radiohead, “True Love Waits”, in https://www.youtube.com/watch?v=02nS2EC35go

Era preciso um túnel da morte para atirar a mota contra a lei das probabilidades. Desafiando a morte. Concebendo a loucura na sua indigência. Mas quem podia de si dizer que fora sempre um exemplo de virtudes?

Era preciso meter em cestos toda a vindima, não deixando de parte parte alguma do vindimado. Separando as parras das uvas, os gaipos meticulosamente sindicados à procura das uvas que pudessem ser postas de parte para a colheita tardia. Pois é essa madurez em estado de pré-podridão que desembainha a doçura mais extravagante, deixando na boca a certeza de que o envelhecimento pode adiar o prazo de validade.

Era preciso convocar os fantasmas que voejavam de um lado para o outro, hiperativos, insistentes, maquiavélicos. Se lhes fosse dito que não eram razão de medo, e se fosse dito com convicção, talvez os fantasmas fossem ocupar outro território onde outras fossem as almas intimidadas. Talvez fossem enganados pela contundência da proclamação, se não fossem duvidar da legitimidade do nosso desmedo. 

Era preciso abandonar as hipóteses que se antepõem nas varandas que descem até ao mar, para terminarem exauridas. Era preciso encontrar a orquestra para o maestro não ficar melancólico. Era preciso definir as fronteiras para as deixar abertas para toda a gente. Era preciso abolir as regras que são um descontrato social. Era preciso coibir o destrate das almas, à mercê de uma mal disfarçada complacência que não conseguia esconder a prepotência com que o poder era viciado. Era preciso saber dizer as palavras em falta, contra o medo que o medo tabelava. 

Era preciso entrar na VCI e sair em todas as saídas, para depois voltar a entrar e percorrê-la uma vez final (até à próxima vez). Dar-se-ia o sequestro da cidade, mas era um sequestro benevolente. Por maior que fosse a estrada circular, se metodicamente desvinculada servia para olhar de fora para a cidade. Era a oportunidade para sermos forasteiros na nossa própria cidade.

Era preciso desentulhar as caves da memória, que esse pensamento será precioso para não nos apequenarmos pelas cicatrizes avivadas pela cal do medo. Era preciso ter muitas VCI para termos um balão de oxigénio contra os feitores de monotonia que estão sempre dispostos a pagar por esta para não serem desafiados pelo que ainda há por revelar. A tempo de ativar a adrenalina contra o mofo das cicatrizes, contra a estultícia de quem se atira para a frente do tempo com a certeza de que tudo são certezas.

15.2.23

Consciência sem fronteiras

Sleaford Mods ft. Florence Shaw, “Force 10 From Navarone”, in https://www.youtube.com/watch?v=AVo9CeuS9lY

1

O vento corre pela Praça da Fortuna, saltando por cima das ameias que encimam a cidade. É um vento irrefreável, desarruma as mesas dos cafés, adultera as esplanadas e atira os turistas e os nativos para dentro dos cafés, ou de regresso a casa e aos hotéis. Não estava previsto, este vento. O silêncio toma conta de tudo, como se fosse preciso para ouvir o ciciar furibundo do vento que veio sem aviso. As pessoas limitam-se a contemplar a coreografia levantada pelo vento. Suspendem o tempo enquanto o vento não desarma.

2

            Atrás do crepúsculo, um jogo de sombras. Os chapéus mobilizados contra os panteões que se prometem – como se tudo não passasse de um jogo em que só conta a morada que alberga a morte. Uma síndrome de viuvez. Os almocreves das palavras gastas monopolizam o discurso. Dizem sempre as mesmas palavras porque uma numerosa audiência quer sempre ouvir essas palavras. O medo da diferença soergue-se, cimentando a sedução pelos lugares-comuns. São as pessoas que estão gastas. Sem remédio.

3

           Na televisão, a violência não dá tréguas. Nos filmes, nas notícias que atualizam o desestado do mundo, nas discussões em que lava incandescente é bolçada para o outro, nos detalhes que invadem, soezmente, as consciências. É preciso desassossegar as consciências – era um dado adquirido, ou não andassem os filósofos há décadas de livros de meticuloso pensamento a adverti-lo. Não é do desassossego da violência gratuita que as almas precisam. Não é um estado de sítio interior, que é um contínuo sobressalto, como se fosse proibido acalmar o sangue, de outra forma em constante ebulição. A televisão assim encenada é um miradouro que desmascara a miséria humana. Como se a espécie se resumisse a uma sequência de misérias.

4

            O ecuménico sopesar das diferenças está em baixa na bolsa dos valores. Tudo é motivo para ser exacerbado. Não se expiam culpas, que são endereçadas para lugar incerto. Todos os cozinhados são má gastronomia. Todo o sangue está contaminado por literatura banal e poucos se interessam em superar as costuras da fala ramerraneira e cansativa. Que paisagem morta, a caminho de ser decepada por cavaleiros do apocalipse que não têm oposição.

5

            Ao menos há um módico de esperança a espreitar entre os poros da pele que estão de atalaia quando o mundo grita contra si mesmo. Nem tudo é o mal colocado em hipótese, à porta de um abismo pronto a ser o vazio sob os nossos pés. Às vezes, temos de nos deter no limiar do abismo, sentir como os arrepios agitam o magma efervescente, e desse fluir extrair um mandamento que torna as coisas no seu avesso. Até que as trevas dão lugar a um esplendoroso voo sobre o tempo em forma de miradouro e as arrelias são pequenas vírgulas que não incomodam o livro inteiro. Até que não seja atrevimento aprisionar os contratempos numa biblioteca que serve para memória futura.

14.2.23

Residência artística

Death Cab for Cutie, “I Will Possess Your Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=pq-yP7mb8UE

Diziam que era um exílio voluntário, a garantia de produção artística que se visse. A residência artística era como uma clausura monástica, sem a cicatriz da fortaleza inexpugnável que não permitia a saída dos seus limites. Congeminava-se como uma reclusão, mas não era para ser levada ao exagero: ao artista eram permitidas saídas aos espaços limítrofes, pois a paisagem bucólica podia ajudar na criação. 

E se se pensasse que a restrição da liberdade não quadrava com a liberdade criativa, desenganem-se os espíritos assim incomodados. Os candidatos à residência artística eram em número superior às vagas. Como é habitual nestes casos, jogavam-se muitas influências. Os artistas candidatos moviam-se nos corredores de influência que julgavam os certos. Instruíam-se de padrinhos já afamados, de quem esperavam que a palavra certa à pessoa certa no momento certo fizesse inclinar a balança a seu favor. 

Os critérios de seleção estavam metodicamente redigidos nas regras que instruíam as candidaturas. Todos sabiam que o fator de desempate (melhor dizendo: o critério de seleção) era a intercessão mais influente, exigindo um padrinho carismático, e que o júri devesse uns favores a esse padrinho. Pelo meio, não fizessem perguntas sobre o paradeiro da ética republicana, que os artistas lidam mal com os ecossistemas da política e do direito (muito embora muitos deles passeiem lições de moral que versam sobre esses domínios).

Ninguém se importava com estes detalhes formais – muitos diziam, desprezando-os, “detalhes meramente formais”. Até os artistas preteridos concediam que a falta de transparência não era motivo para levar o caso à barra dos tribunais. “São as regras do jogo”, comentavam, com ar resignado, enquanto dirigiam as esperanças para o concurso do próximo ano e começavam a pensar se deviam mudar de padrinho. Ninguém se importava: não é o formalismo que derrota o mais importante, a força substantiva da obra criada durante a residência artística. O resultado, a obra criada, cala a falta de transparência do processo de seleção e põe as formalidades no lugar secundário que é o seu. E que ninguém os acusasse de atropelarem a ética republicana, que a criação artística não deve ser medida por um filtro que é alheio à arte.

Durante a residência artística, os artistas ficavam embebidos num transe criativo que era a garantia prévia de valorosa criação artística. Assim fora no passado, não se imaginava que pudesse ser diferente nos anos vindouros. Todos acreditavam que o convento reconvertido, onde o artista escolhido entrava em residência artística, o inspirava. Sem darem conta, deram o flanco a uma fonte divina de inspiração, o que atentava contra o ateísmo incorrigível de quase todos os artistas.

O que interessa a coerência se a arte não está amarrada a esse ferrete? Os artistas transgridem convenções, a menos que sejam eles a ditar um novo cânone para a ata que os recolhe. Mas isso também não é incoerência, apenas porque, se preciso for, os artistas descem ao palco onde se passam as coisas mundanas e certificam, através da sua não sindicável palavra, não se tratar de incoerência. Palavra sábia de quem ostenta no currículo uma residência artística tão por todos consagrada. 

Uma questão de estatuto – e não interessa que o estatuto seja uma entrose à igualdade tão deificada pelos artistas (e não só).

13.2.23

Onde fica o infinito?

My Bloody Valentine, “New You”, in https://www.youtube.com/watch?v=GT2Hv2bVfPo

As árvores sentadas riam dos dias consecutivos. Riam das pessoas afadigadas. Riam do sol que tem por sua conta o alicerce do mundo e é ao mesmo tempo a sua espada de Dâmocles. As árvores estavam sempre sentadas. Em todas as paisagens do mundo. Riam. Riam como se não soubessem que amanhã iam continuar sentadas. Algumas pessoas acusavam as árvores de serem arrogantes. Eram os dendroclastas.

Se alguém escrevesse uma antropologia das árvores, ela seria sobre a quietude e a inércia, como as árvores atravessam todas as fases da vida sem se dar conta. Até o riso é disfarçado, como se fosse uma vírgula assestada no nevoeiro e o silêncio escondesse esses risos plangentes. Das árvores se diz que morrem de pé, mas é um lugar-comum. Muitas morrem mordidas pelo fogo malfeitor, elas à mercê da língua de fogo, sentadas sobre o seu próprio sentar, impedidas de fugir. Não há seres vivos assim. Não nos devíamos rir das árvores, da sua tão imensa perecibilidade, desta fragilidade que opõe a avantajada dimensão à incapacidade para fugirem de um elemento agressor. Outras, acabam metamorfoseadas em papel, servis aos homens.

Um dia, um rapaz disse na escola que as árvores vão até ao infinito. Julga-se que falava de uma metáfora antes do tempo (naquela altura o rapaz nem sabia que metáfora era uma palavra inscrita no dicionário). A professora desafiou-o: “por que dizes isso?” O rapaz não se deteve na hesitação e disparou: “quando vou para a aldeia, a estrada das mil curvas atravessa uma floresta e as árvores nunca mais acabam.” Uma menina sentada três filas atrás perguntou ao rapaz se essa era a definição de infinito. O rapaz rematou: “o infinito é onde eu deixo de ver as coisas.” A menina não ficou convencida: “o infinito é o lugar onde tu deixas de ver o cometa que rasga o céu.”

As árvores continuam sentadas na sua majestática pose. Aquelas que possuem copas frondosas, que se abrem como um benévolo guarda-sol. O filósofo amador desafiou as convenções e insurgiu-se contra a ideia de guarda-sol – ou, melhor dizendo, contra a expressão “guarda-sol”: se o chapéu nos protege do sol, por que se insiste em dele dizer que guarda o sol? Estas minudências da semântica não são para aqui chamadas (terá concluído o filósofo amador, já extenuado de tanto pensamento especulativo). Ao saber da pose sobranceira das árvores, vendo-as sentadas sobre o chão que é seu domínio a apreciarem, com a devida distância, a diligência e a loucura que são parte do filão do mundo restante, o filósofo deixou uma pergunta para memória futura: o infinito não é onde moram as árvores?

10.2.23

Este providencialismo que nos infantiliza

Wet Leg, “Ur Mum”, in https://www.youtube.com/watch?v=qGg-hitVZKQ

De tanta pequenez que nos apoquenta, vertemos a esperança em figuras que se prometem míticas no futuro. Estas personagens estilhaçam os padrões estabelecidos – no caso da paisagem política, rompem o monopólio dos partidos, colhendo frutos no cansaço que as personagens de sempre causam nos cidadãos e tirando partido dos fracos pergaminhos dos regentes que se sucedem e perenizam o passado.

Os promitentes mitos têm lucidez. Observam meticulosamente o que os rodeia. Participam no coletivo esgar de desprazer à medida que os de sempre alternam na regência e os problemas que mergulham a sociedade num, ao que parece, irremediável atraso não encontram patentes que os resolvam. Aparecem, uns do nada, outros de uma coisa qualquer em nada aparentada com a paisagem política. E como não participam da oligarquia dos partidos, cativam as preferências de muitos que estão insatisfeitos com o atual estado das coisas.

Prometem diferença, apenas. Não é promessa que devesse ser suficiente para atrair uma multidão. Anunciando-se a antítese das personagens que nada resolvem, esperam ser fieis depositários de um povo desesperançado. Um povo que aprendeu a apostar em figuras providenciais que, depois, se dissolvem num conveniente nevoeiro que as embaciou. Os que precisam deste providencialismo como oxigénio partem de uma lógica de mínimos: a alternativa às promitentes figuras providenciais é continuar a escolher os de sempre, que cada vez menos merecem confiança. É uma reação por antinomia. Sem se saber, ao certo, que ideias têm essas figuras providenciais caso lhes seja mandatado o poder. É uma aposta no escuro. Uma proposta minimalista.

É uma lógica reveladora de dois sintomas graves. Primeiro, a alternativa aos habituais detentores do poder manifesta-se não pela qualidade, mas pelo desgaste destes e pela procura de uma qualquer alternativa, sem ter o cuidado de sopesar a validade dessas alternativas através do que elas possam ter de substancial. Não é um escolha genuína, é uma apenas escolha fundamentada na recusa de alguém. Os habituais detentores do poder são os primeiros culpados pela aparição (a palavra não é inocente) das messiânicas personagens cheias de vazio.

O fenómeno encerra um segundo sintoma inquietante: a incapacidade (ou a ignorância) de os promotores de providenciais personagens aprenderem com a História. Que seja nomeado uma única messiânica figura que tenha conseguido superar o estatuto de promessa, todavia depressa fracassada nos escombros a que as suas intenções foram reduzidas. No máximo, os messianismos do passado tiveram o condão de fazer marcar passo o presente e de adiar, sempre adiar, o futuro.

Vamos de messianismo em messianismo, insatisfeitos com a casta de regentes e apostando em personagens providenciais que não personificam alternativa válida. Quando uma personagem providencial acaba por fracassar, a consequência é o refúgio na casta de sempre. Os habituais detentores do poder acabam por ser a reserva moral de si mesmos, num processo que tem tanto de paradoxal como de absurdo. Os mitos que não se cumprem obrigam as bases a voltar ao pecado original. Os messianismos são a melhor caução dos poderes estabelecidos.

9.2.23

Não tires o bife da boca do tigre

Nick Cave and the Bad Seeds, “Bright Horses” (live in Lyon), in https://www.youtube.com/watch?v=6p-l3RG6IBs

Não precisavas de tanta excentricidade. Os outros, chamam-lhe loucura. Não te prendas aos requintes da semântica. As palavras podem conter diferentes graus de um estado, mas o que interessa é o estado de alma a que elas remetem. 

Às vezes pareces convencido que desceste aos infernos e depois conseguiste a redenção. Não sabes ao certo o porquê da visita aos infernos, nem sabes caracterizar a sua geografia. Também não sabes descrever o processo interno, e as ajudas exteriores, se as houve, que te extraíram do rapto de que os demónios foram autores. Esse período soa a uma nuvem densa, baça, que não deixa ver nada até dentro das fronteiras viáveis. É como se tivesses sido atirado para uma hibernação, e tu sabes que nunca requereste uma hibernação. Foi por essa altura que duvidaste da propensão para o hedonismo. Nunca mais foste boémio – e também não sabes porquê.

Outras vezes, parece-te que a História é narrada na primeira pessoa. E tu sabes que não foste testemunha da História, o que fermenta o paradoxo. Talvez seja um sonho contínuo, disse uma amiga. Outra hipótese é a de viveres um palimpsesto, ou vários palimpsestos, como se em ti medrassem incontáveis bonecas que se desmontam de bonecas por sua vez interiores, e assim sucessivamente. E a cada palimpsesto uma parte de ti fosse perdida no processo.

Um sonho contínuo, era a hipótese. Ficaste a cismar na hipótese. Um sonho não se tem quando estamos acordados. A menos que haja sonhos impercetíveis, fingidos de pesadelos que se insinuam nas pregas da pele e não se ostentam em palco. Como se fossem irmãos siameses e apenas um deles conseguisse espreitar pela escotilha, o outro condenado a viver num escafandro, conhecendo apenas as figuras míticas que habitam os fundos dos mares. A gramática desses pesadelos sem visibilidade é um mistério improfundável. 

Talvez seja esta linhagem que atravessa a tua existência, um absurdo costurado às mais belas páginas que seriam hinos literários se tivessem tradução em palavras escritas, paisagens que avivam os roteiros de turistas solitários, uma mnemónica para o passado sem serventia. E tu, teimosamente, convencido que podes tirar o bife da boca do tigre sem que o tigre responda à tua ousadia. 

Não experimentes levar o sonho contínuo tão longe. 

8.2.23

Desalmadamente

Yard Act, “Rich” (live from the Brudenell), in https://www.youtube.com/watch?v=JJYX-tQxRIQ

Esta é a casta que traduz a vida, um corredor estreito onde a velocidade se embebe na vertigem de uma montanha russa. Esta é a clepsidra que dita o andamento, um remoinho de onde se soergue o olhar voraz, o poema feito em contínuo. As montanhas não são obstáculo. Os rios são o vocabulário da paz interior que se abriga nos bucólicos recantos que ornamentam as suas margens. 

Este é o vulcão que desadormece a vida para os encantos por revelar. A pedra espessa que se oferece aos pés nunca cansados, por eles feito o mapa que é o sortilégio empunhado com um orgulho que não se disfarça. O vulcão de onde são arrancadas as palavras, arrancadas a ferro, como se de um parto a fórceps se tratasse. As palavras que se sublevam contra o silêncio suicida. As palavras de outro modo suprimidas, pelo temor, pelo vagar com que se contamina o tempo breve. As mãos vão ao fundo do vulcão, entram pela cratera e esquadrinham as suas entranhas, sem medo da lava iracunda que espera para bolçar à superfície, rasgando o chão com o seu sangue incandescente.

Este é um saber estar, desalmadamente, como se não houve bainhas para o ser e o caudal do rio transgredisse as margens, ocupando os lugares avulsos – e ao rio fosse permitido redesenhar a geografia, subindo ao trono de onde tudo se comanda. Um dote de rebeldia insuspeito interrompendo os códigos de conduta que amestram as almas que não podem ser desalmadas. As constelações artesanais, moldadas com as mãos enrugadas de quem muito andou e demanda outro tanto por andar, ilustram as páginas de uma biografia muda. À biografia, deixa-se que fale por si. Dourando a pele de outro modo pálida, irrompendo contra a letargia que tende a colonizar os dias com a indiferença. A biografia cauciona a tensão que investe contra a solidão.

É o ser desalmadamente que conspira contra as conspirações que atentam contra a diligência de uma vida que se completa. Sem se intimidar com os muros alcantilados do fiorde onde se comprime; o fiorde é a sua janela de oportunidade, o arbítrio posto à prova contra o sacrifício de um colete-de-forças. Até que o futuro seja emancipação dos contratempos e desmobilize das catervas que ditam os códigos de conduta. Pois ser desalmadamente é o magma de onde se extraem os pólenes que despurificam as intenções beatíficas.

7.2.23

O xisto da noite

Placebo, “Where Is My Mind” (live in Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=ugjQ8mjQRhw

Teoria das espécies protegidas: a raridade exige a intencionalidade da proteção (e não apenas uma promissória que é só uma moda). Muitos são consumidos pelo seu incorrigível narcisismo. Sentem-se as peças centrípetas do universo. E espécies únicas, sujeitas às melhores leis da proteção das espécies em vias de extinção.

Muitas vezes, ao deitar os olhos nestas personagens, mal apetece pressagiar que antes estivessem em extinção. Libertariam espaço para um ar mais respirável. Que ninguém os convença que são tão banais como os mais banais de todos nós. Imersos no seu centrípeto lugar, aparecem contaminados por alucinações. São peritos num julgamento de si mesmos que peca por excesso. Não estão em extinção, pelo contrário. Se um deles se perder no inventário da espécie, não são perda contabilizada nos registos da antropologia. Serão uma dádiva para os demais, se extintos ou reservados à irrelevância. 

Os engenheiros de almas podem usar estes espécimes como caso de estudo, para melhor entenderem no que gravitam as almas que se ajuízam locatárias de um estatuto superior, no auge dos pressentimentos em que firmam os delírios. É como se estivessem sentados num pedaço de xisto, à noite, e conseguissem decifrar o que está escrito em contrafação. Não conseguem. Limitam-se a inventar, constituindo um logro só não reconhecido pelos próprios. 

Sem olhos de gato, ninguém consegue ler um conjunto de letras informes inscritas no xisto. Falta claridade para avivar essas letras. Mas os alucinados que contestam os que os contestam dão um salto em frente, inventando significados, arrumando teorias inverosímeis no corrimão que segura os mais frágeis. E frágeis somos todos, os que passeiam a sua obnóxia condição de entes predestinados e os que não se acreditam nesta linhagem de farsantes. Frágeis somos, quase sempre no limiar de um qualquer precipício.

Os que chamam a si a notabilidade como estatuto estão a milímetros de dar um passo à frente – um passo em falso. Não é perda, nem é partida. Apurado o balanço, entre danos e ganhos, é um balão de oxigénio para a espécie, que adia o seu estertor. Podemos ajudá-los a darem o passo em frente, como gesto de desapaixonada generosidade (antropológica).

6.2.23

Um deus acima

X-Wife, “Coconuts” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=h_fl4r1VYx0

Sabiam que os rumores podiam ser como mata-borrões. Não reprimiam a sua peregrinação metódica. Que houvesse vítimas inocentes apanhadas pelo caminho, era do seu desinteresse. O que importava era jogarem aos deuses. Faziam de conta que eram deuses. Para tirarem ao acaso as vidas por eles sobressaltadas.

Nunca passou pela cabeça usarem dotes semelhantes para agigantarem vidas. Sabiam que a maioria se angustia com as frustrações, as juras não cumpridas, os planos que a desfortuna cuidava de importunar, os erros não resgatados por arrependimentos meticulosos (ou apenas farsantes) – as vidas cadelas, sem sumo para resgatar. Só sabiam fazer de conta que eram deuses se fossem agiotas dessas vidas. Se as empurrassem pelo desfiladeiro, o gesto derradeiro para desfalecerem numa apneia irrisória.

O pior, é que as pessoas não sabiam da existência destes candidatos a deuses. Uns, por saberem, no púlpito da sua fé, que só há um deus e não é humano. Outros, por ateísmo ou agnóstica condição, por não conhecerem epifanias, meros devaneios esotéricos. Uns e outros ficavam à mercê dos (assim autoconsiderados) deuses. Se a vida fosse madrasta e conspirasse contra eles, procuravam encontrar culpados nas suas imediações. (A culpa, ensina o povo, é a eterna prometida do celibato. Os deuses a concurso perfilavam-se como culpados por excelência.) Os primeiros descobriam que não são monoteístas, imputando culpas a deuses desleais que desarranjaram a vida. Os outros descobriam que estavam errados: afinal há deuses, mas têm uma carantonha, e semeiam o mal entre as vidas arrastadas para o seu perímetro.

Uma mulher sexagenária descobriu mil motivos para se lamentar do passado próximo. O futuro, esse, não era promissor. Ela sabia da conspiração dos putativos deuses que passam o tempo a estilhaçar vidas sem culpa (aparente). Cabisbaixa, enquanto olhava para o caudal do rio sem reparar como fluía, voraz, para a foz, ensaiou uma prece que não vinha nos missais. Impetrou que todos os garrotes que sobre ela pendiam fossem aliviados. Que as demoras não colonizassem o tempo como se ele não fosse efémero. Pediu, de olhos fechados e com os dedos entrelaçados (pondo toda a força nesse entrelaçar para esconjurar os deuses a destempo), para um deus acima zelar por ela. 

Em toda a sua acrimónia, a mulher amaldiçoou os deuses que concorriam no mercado de divindades. A quem passasse, brandia, com ar tresloucado, que os deuses em compita são disfarces de demónios. Só não se soube se também incluía o deus oficial.

3.2.23

O fraque (short stories #417)

REM, “Bittersweet Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=-R2hvKDFLHE

          Não farás cerimónia: os solenes atos que te encantam são apenas uma encenação. Sob o verniz, nada. E, contudo, insistes no fraque. Nunca te perguntaram se o fraque não é uma superstição? Se arrotares sem ser às escondias, és vilipendiado? Não é legítimo esperar que todos arrotem? Dirão (e tu, em coro, com eles dirás): mas as pessoas coíbem-se de o fazer à frente de outras pessoas, assim é a intendência da boa educação. E eu percebo. O fraque é o adereço das convenções. Um código de vestuário, a menos que da transgressão sejamos partidários. O fraque é uma perplexidade. Sentam-se os mecenas das convenções nos seus altos tronos e inspecionam, altivos, as imediações. Têm olho de lince (diz-se). São eles que atestam o fraque. Adotam os manuais de instruções para os que não se sufragam pela rebeldia. Procuram olhos marejados. Porque os olhos marejados tentam esconder o sal sob o qual se disfarçam os conspiradores prontos a torpedear as convenções. Contra eles, um exército de homens e mulheres de fraque. Devidamente instruídos. Delidos, sem saberem. Como se fossem autómatos, maquinalmente executando os comandos dos mecenas das convenções. Não fossem esperadas guerras sanguíneas, o palco não estava montado para esse despreparo. Os fraques procuravam invadir o dia como se fossem a assinatura do crepúsculo. Se o seu sangue não fosse alheio à adrenalina, podíamos ver rostos que não eram impassíveis. Mas os fraques são apenas um pedaço de roupa sem corpo por baixo. Fantasmas não inventariados. Os demais não se importam com os fantasmas. A sua improcedência é a sepultura que os espera, perdidos num labirinto que não cobra dívidas passadas. Sabes, o fraque está sozinho. Não queres a companhia dos outros fraques. Pobre do fraque, que não sabes que estás condenado ao mesmo fim das vítimas que queres arregimentar. Serás a tua própria vítima.

2.2.23

O ladrão de perfumes

LCD Soundsystem, “Daft Punk Is Playing in My House” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=hTjfpuQWQk0

Mote: “PSP apanha ladrão de perfumes na Madeira

Tanta era a generosidade que não hesitava nas consequências dos atos possivelmente ilícitos. Os benefícios compensavam os riscos. Desta filantropia, uma filantropia original, não o podiam acusar: roubava perfumes para oferecer a quem passasse. Com a condição prévia de sentir um odor nauseabundo e, por esse motivo, a oferta de um frasco de perfume vinha a propósito.

Mas um furto era um furto. Crime, adverte o Código Penal. Por mais que esbracejasse a sua original filantropia, e os ganhos que a sociedade capitalizava por o ar ocupado deixar de ser pestilento por ação dos perfumes generosamente oferecidos, os polícias dos costumes andavam no seu encalce. As lojas da especialidade tinham o seu retrato robot. Já não eram vítimas da sua delinquência como dantes, antes de se tornar conhecido por todos os comerciantes do ramo e pela polícia. 

Para não deixar de ser generoso (para quem precisava urgentemente de se perfumar; e para a coletividade, em geral), recorreu à imaginação para não se apanhado em falso. Disfarces, já tinha inventariado uns quantos. A imaginação era um viveiro interminável. Conseguia inventar mais um disfarce que estendia por mais algum tempo a delinquência a favor da coletividade. 

Um dia, foi apanhado. Não fora tão diligente no disfarce e um comerciante telefonou para a polícia, às escondidas. Foi capturado em plena atividade delituosa (na linguagem gongórica dos advogados, juízes, delegados do ministério público e seus pueris aprendizes). Levado a tribunal, começou por admitir os delitos: era verdade, levara sem pagar sabia lá quantos frascos de perfume (perdera a conta). Alegou, em sua defesa, os préstimos à comunidade. Ninguém gosta de habitar um lugar pútrido, ou conviver com alguém num espaço fechado se essa pessoa tem uma perspetiva homeopática da higiene, ou se apenas se dá o caso de uma insuficiência hormonal conspirar contra a pessoa, exalando um odor desagradável. Alegou que não retirou qualquer proveito dos furtos: tudo o que levou de lojas de perfumes foi oferecido a gente que passava e que precisava de se perfumar. 

O juiz não ficou convencido com a retórica do ladrão de perfumes. Um crime é um crime e as leis devem ser aplicadas, mesmo que o ladrão invocasse a seu favor o que tinha invocado. Ao sair da audiência, o ladrão de perfumes balbuciou: “senhor juiz, sendo levado para o cárcere deixarei de perfumar esta cidade. V. Exa. seria um candidato à minha filantropia – queria que interiorizasse isto que acabei de dizer”.

Sem estar em julgamento, a não ser o da vergonha social, o juiz alegou em sua defesa, de si para si mesmo (que a sala de audiências já estava vazia): “tomo só dois banhos por semana para poupar água. E não é para poupar uns míseros dinheiros; é porque sou ambientalista”. 

O ladrão de perfumes já não ouviu a justificação do juiz e não podia verificar se era argumento ou pretexto.

1.2.23

Quem sai dos seus

Goldfrap, “Pilots” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=RhF0Izwyc-8

A conspiração de fevereiro queria matar o março. Não havia particular desavença: era só fevereiro a reclamar um lugar de igualdade – fevereiro sempre perguntou por que era o mês amputado. Com março morto, havia um despojo para repartir. Fevereiro podia ser maior.

Os que mandavam no mundo, mas na sombra, nunca aceitaram a concurso o peticionado por fevereiro. Em desfavor da reivindicação fevereirista, a adesão à própria desigualdade entre os meses. Uns tinham trinta e um dias (podia-se dizer, os meses completos) e outros tinham trinta dias (os aspirantes à completude). Os que ficavam a um dia do patamar da completude nunca protestaram a sua menor estatura. Eram, talvez, conservadores. Resignados ao estatuto de meses redondos. Eram, aliás, estrénuos na retórica usada em seu favor: se de um mês se dizia ser preenchido por três dezenas de dias, os meses que extravasavam a medida padeciam de um gigantismo patológico. 

Fevereiro não aceitava a complacência de abril, junho, setembro e novembro. A maioria dos meses afivelava-se pela medida dos trinta e um dias: sete em doze. O que fevereiro não aceitava era a perna pequena que lhe ditaram. Ao pé dos congéneres, fevereiro era o mês anão. E o pior ficava por conta do acerto de contas que o sortilégio do calendário (ou da contagem do tempo, talvez seja mais acertado formulá-lo deste modo) obrigava a cada quatro anos. Fevereiro teve de se habituar a ter um dia a mais nos anos bissextos, ficando a morder os calcanhares aos meses que não se importavam de incluir na sua bagagem um dia menos do que os meses balofos. 

Fevereiro fez umas contas de cabeça. Tirassem o dia gordo a alguns dos sete meses balofos e distribuíssem esses dias pelo fevereiro que era vítima da desigualdade. Fevereiro ficaria, à sua conta, com dois desses dias. Tirar-se-ia à sorte os meses que seriam forçados à dieta: janeiro e agosto. Fevereiro seria capaz de satisfazer a sua mania das grandezas, passando a correr ao longo de trinta dias. A desigualdade não seria corrigida, pois março, maio, julho, outubro e dezembro ainda podiam esbracejar nas caras dos demais um dia a mais. O problema, foi que janeiro e agosto impugnaram a intenção. Eles perguntaram: porquê nós e não outros? Será por estarmos colados a meses que já têm trinta e um dias? Esse critério é legítimo?

Fevereiro não alcançou toda a aritmética envolvida. A divisão de trezentos e sessenta e cinco por doze não dá conta certa. A desigualdade entre os meses é a conta certa, já que os meses não podem ter um número de dias a acabar em casas decimais. Fevereiro, não convencido, foi visto a sair do cenáculo dirigindo impropérios contra incertos: “a igualdade é uma pantomina, uma patranha. Os advogados de defesa da igualdade deviam ser processados num tribunal dos direitos humanos.” Disse e continuou, resignado, para os restantes vinte e sete dias que lhe cabiam.