9.10.24

Sussurro

Ride, “Like a Daydream”, in https://www.youtube.com/watch?v=8zzo25t_eC8  

Um mandamento estatelado ao comprido. Talvez por decadência. Ou por irrelevância: as pessoas passavam ao lado do mandamento puído e não davam conta do corpo inerte estendido no asfalto corroído. O corpo inerte era causa suficiente para a indiferença dos passeantes. 

O mandamento deixou de mandar. O que dantes convocava um rosário de oxalás (oxalá deixe de ser mandamento; oxalá as pessoas deixem de lhe dar importância; oxalá caia em desuso; oxalá seja revogado) era agora féretro deixado nas margens da irrelevância. O mandamento já não se podia chamar mandamento. Era outra coisa qualquer, nestes preparos apenas uma peça museológica. Ajudaria a compor as memórias da memória. Daria para uma lição. Que não se voltasse a erguer das cinzas, deixando de ser simulacro de Fénix para embainhar a forma dentro da sepultura. 

A notícia correu, rasa ao chão para não levantar a poeira da memória ainda desorganizada. As pessoas tinham medo que a notícia da extinção do mandamento fosse prematura. Receavam que o mandamento tivesse capacidades sobrenaturais e fosse resgatado dos braços da morte, marcando orgulhosamente presença no panteão dos vivos. Ou as pessoas estavam cansadas de mandamentos e o rumor, ciciado de ouvido em ouvido, de que um mandamento perdera autoridade era como um estandarte de ânimo cravado no chão do futuro. Em vez de terem um número indeterminado de mandamentos sobreponíveis à sua autonomia, tinham esse número menos um. Este era daquele domínios em que todos ficam a ganhar ao ativarem a subtração. 

O sussurro imperativo era o recibo da discrição anotada à margem do verbete daquele mandamento. Rasgaram-lhe o traje. O mandamento não conseguia ser alguém vestido com a nudez absoluta. Ninguém quis ser testemunha dessa nudez. Não foi por elegia ao mandamento extinto. Um corpo despojado de vida merece o pudor da indiferença. 

O sussurro montou-se numa onda irreparável. Deixou de ser sussurro, continuando a propagar-se, nos idiomas todos, por todos os lados onde havia idiomas por falar. O mandamento foi celebrado porque estava extinto. E o sussurro, já sem medo da inviabilidade do rumor, deu a vez à voz com bainha inteira. Que, ébria no êxtase de quem se desembaraçou de um mandamento, cantava o que mais podia cantar.

8.10.24

O PREC e uma barrigada de riso

 

The Horrors, “Mirror’s Image”, in https://www.youtube.com/watch?v=0EOPIi4Q3lM

(Pensamentos avulsos após a peça de teatro “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”, encenação de Gonçalo Amorim, Teatro Carlos Alberto, 6 de outubro de 2024)

Aprende-se muito com aqueles de quem se discorda. 

O coletivo de autores (ora pois) prometia “problematizar e contrariar a ideia de que [o PREC] foi um período dominado pelo caos e por excessos ideológicos”. A “Comissão de Festas” (o tal coletivo) advertia: o espetáculo era “(...) intimamente parcial. De esquerda. Antirreacionário e antifascista. E, por isso mesmo, é celebratório, festivo e popular.” Quando li a sinopse, abri um espaço obrigatório na agenda para assistir ao exercício encomiástico do PREC, em versão teatralizada. Sempre me interessei pelo período, sobre ele li bastante e considero-o paradigmático dos riscos da polarização política em curso.

Depois de quase três horas e meia de fragmentos que mergulhavam no PREC (“precformances”), dois dias depois ainda estou para perceber se assisti a uma peça de teatro ou a um comício. A peça é sobre a nostalgia do PREC, misturando ingenuidade com um embrião de violência, com uma entrega plena à intervenção política. Não vale a pena voltar à vexato quaestio da fusão entre arte e política, ou de que como a arte pode ser invadida pela ideologia política, tornando-se instrumento da política. Já escrevi no passado e reforço a minha posição a cada peça em que a cumplicidade é visível: a arte expõe-se à (auto) decadência quando é instrumentalizada pela política.

Aprendi com a peça que os que pactuam com o regime em vigor são burgueses, vendidos ao capitalismo (ou por ele hipnotizados) e metidos num largo baú onde medram como “fascistas”. Depois de ter sido informado que fascistas e liberais são da mesma cepa, concluí que se não nos mobilizarmos contra o grande capital que nos oprime somos coniventes com um fascismo disfarçado de democracia. E eles, os saudosistas do PREC, que deixaram passar em branco os mandatos em branco assinados pelo líder do COPCON, eles que usaram a palavra “democracia” à exaustão para, quase no fim, defenderem a “ditadura do proletariado”, num ativismo arrancado ao fundo da alma, ensinaram como a democracia burguesa continua a condenar os explorados a serem explorados. Estes saudosistas do PREC, se pudessem mudar o curso da História, não teriam permitido eleições e teriam demitido (ou condenado a degredo, ou a cárcere) uma parcela considerável do povo. Justamente todo aquele povo que foi condenando os partidos da extrema-esquerda à insignificância em sucessivas eleições. 

A peça incluiu tragédias narradas que tiveram o efeito Photoshop previsível para quem se amordaça num autismo intelectual. Os tribunais populares, porque a justiça que se aprende nas Faculdades de Direito é uma justiça enviesada, malsãmente burguesa, que se inclina sempre a favor dos poderosos. Ou a cena, contada com uma elevada intensidade dramática, do homem que, enquanto rapaz, celebrava o primeiro de maio de 1980 às cavalitas do seu pai, evocando as cabeças de carneiro empaladas como metáfora do que os revolucionários gostariam de fazer ao então primeiro-ministro, Sá Carneiro. E como a personagem ajuizou o desfile de cabeças de carneiro decepadas como uma “encenação carnavalesca”. Poderia discordar e considerar a encenação macabra, ou seria condenado ao açaime se me tivesse levantado em pleno ato para propor a correção do qualificativo? No momento de elevada intensidade dramática, o ator que sai da personagem de toupeira e encarna na pele de ator com um nome próprio desfila os nomes que serviram de inspiração para a “democracia” que o coletivo celebrou na peça. Não faltaram Baader e Meinhof! A páginas tantas, num momento de maior exaltação, não aceitou que lhe digam que é de extrema-esquerda. 

No fim da récita, olhei em redor, com a ajuda das luzes acesas. Os aplausos foram demorados, num abraço excitado do público ao coletivo de atores (com a exceção de meia-dúzia de espectadores que saíram apressados e sem o obrigatório aplauso). Uma das atrizes gritou o pregão sacramental “fascismo nunca mais”, esquecendo-se que a peça passou grande parte do tempo a denunciar o fascismo em que vivemos. O exercício de nostalgia tinha tocado o público profundamente. Este público pratica uma espécie de onanismo intelectual: só adere às artes desde que as artes estejam politicamente comprometidas com aquilo que esse público gosta. Este viés é significativo da sua linhagem democrática.

E se fosse possível um exercício contra-factual, só para perguntar o seguinte: se a extrema-esquerda tivesse vingado no PREC, em que regime político viveríamos? Como não faço parte do proletariado, a liberdade de escrever este texto seria garantida pelos tutores da “ditadura do proletariado”, como foi defendido, sem pejo, num momento da peça?

No intervalo da récita, em conversa com uma conhecida que estranhou a minha presença naquele momento celebratório de “esquerda”, disse-lhe, em tom provocatório: “ainda bem que ainda temos a liberdade de expressão”. Disse-o sem que ela pudesse deduzir que estava a insinuar o contrário. Repito: ainda bem que a liberdade de expressão está enraizada e, apesar de algum salazarismo entranhado até aos ossos, visível em vários quadrantes da sociedade (da direita à esquerda, por mais que a uns e a outros custe admitir), é uma pedra de toque do regime. Disse-o, admito, em tom de provocação e não fiquei propositadamente agarrado a um sussurro, para perceber se nas imediações estava um entusiasmado com o tempo-volta-para-trás do PREC que acusasse o toque. Ela confessou que gosta muito de “teatro comprometido”. Fiquei sem resposta quando lhe perguntei se teria elasticidade mental para assistir a uma peça que encenasse (por exemplo) um texto de Ezra Pound.

Depois de ter assistido a esta peça, puxei a fita atrás. Tivemos muita sorte durante o PREC. Podíamos ter escorregado para um banho de sangue se as coisas não tivessem corrido bem. Ou então foi apenas um episódio de uma ópera bufa que, à distância, provoca uma gargalhada sonora. O coletivo de atores, afinal, fez-me um favor.

7.10.24

O champanhe pagão

Nine Inch Nails, “We’re in This Together” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=mKyxnbjC8KU

As luzes tremeluziam, como se conspirassem com a tempestade. Os foliões não se importavam (nem com a hesitação das luzes, nem com o troar da tempestade). Não seriam coisas menores a incomodar a intendência da folia. A sua arma era a indiferença. 

Em seu desabono, era feriado religioso. As festividades que se aceitam são as da alma, de acordo com os sacerdotes que se enxameiam nas coisas mundanas da política. Era dia de consagração a deus e à família. Os foliões, indiferentes às ordenanças eclesiásticas, refugiavam-se em celebrações que os apóstolos da situação apressar-se-iam a reprovar por serem do domínio da frivolidade.

(Estes homens e mulheres que brandem a batuta dos costumes, exigindo a prescrição da frivolidade, nunca fizeram um exame interior para descobrirem aquela parte da sua existência que é dedicada a uma qualquer futilidade. Não creiam que há vidas inteiramente afastadas do endemoninhado véu da frivolidade. As vidas deles e delas terão algum recanto, ao menos um recanto, colonizado pela frivolidade. Ou não dão conta, ou fazem de conta. No primeiro caso, são apanhados na armadilha da ignorância; no segundo caso, refugiam-se na escotilha que esconde a mentira e o fingimento. Esta peregrinação interior, que recusam ser sua demanda, seria suficiente para olharem para os outros com olhos diferentes.)

Os boémios brindam efusivamente com o champanhe a borbulhar por ação do movimento dos copos que levam à sua socialmente aceitável colisão. Não se escondem do hedonismo. Estão preparados para aguentar, com indiferença olímpica, as acusações dos embaixadores das sacristias. Sabem que pagãs são as suas festividades; não contam levar ao juízo interior a acusação de heresia dos que reprovam o seu comportamento fútil numa data tão importante (de acordo com as escrituras).

A noite recebe o chão onde passeiam os foliões. Desfilam, uns atrás dos outros, os copos de champanhe, à medida que ecoam as imagens desfocadas, próprias de uma embriaguez que se instala com o consentimento da boémia pagã. Sabem que precisam de uma anestesia do mundo. Sabem que se encontram atrás do palco, como quem segreda o avesso das ondas, titulares de uma lucidez assoberbada. Não querem saber do mundo que vem nos jornais e nas televisões. Menos ainda da trela estendida a partir das sacristias. No rótulo do champanhe, propositadamente, em letras garrafais impressas a carmim, a palavra “pagão”. Antes fingirem, com a ajuda do champanhe.

Os boémios têm a esperança que o pagão pague o apagão de que precisam.

4.10.24

Roda-viva

Einstürzende Neubauten, “Ist Ist” (live Tvornica Kultur), in https://www.youtube.com/watch?v=Di0h52gBYHc

Um concerto armado sem pressa, as luzes coalhavam o suor que ia assentando nos corpos. A sala estava cheia e abafada. À medida que entrava gente tornava-se ainda mais quente. De repente, apenas a escuridão. Uma música a romper a escuridão, hipnótica, introdutória. A audiência fala este código de conduta: os músicos estavam quase a entrar em palco. 

A música não era de modo a pensar-se numa entrada triunfal dos músicos. Não era o seu perfil. O carisma pode ser passageiro da discrição. Os segundos arrastavam-se, a escuridão continuava a rimar com a música hipnótica, mas dos músicos não havia pressentimento. A agitação anterior foi temperada e o gelo começou a abater sobre a sala. Vinha a calhar, que o suor prematuro já tinha assentado nos corpos.  Prematuro, o suor: ainda estava por vir a adrenalina do concerto, os corpos desamordaçados para o frenesim da sua movimentação, como se fossem ateados pela música que subia a palco.

Os músicos entram em palco. Com vagar. A idade deixa marcas do passado e os corpos ficam cansados, gastos, com a desambição do tempo. Os músicos acenam discretamente para o público enquanto vão caminhando para as suas posições. A escuridão foi substituída por uma luz timorata, dando lugar a uma penumbra metodicamente instalada. 

O vocalista firma as mãos no microfone, olha em redor, detém-se com mais atenção num dos sectores da sala e acena em tom concordante. Balbucia, com a sua voz cavernosa em provocante, “boa noite”. É o mote para a descarga de sons que desmobiliza a penumbra. As luzes entram pela retina a convulsionam a carne que se incendeia num tonitruante movimentar, os corpos vizinhos encaixando-se uns nos outros, tocando-se à medida que se entregam a uma coreografia coletiva e desorganizada. O suor tomou conta da pele, extasiada pelo frémito sonoro.

O olhar intimidante do vocalista entre duas músicas é aplaudido, como um sinal de devoção. As pessoas precisam de refúgios. A música é um refúgio. Quando é tocada ao vivo torna-se um sortilégio. As pessoas que coincidem na sala de espetáculos podem não se conhecer. Naqueles noventa minutos é como se fossem conhecidas de longa data, uma família que partilha as estrofes entoadas ora em registo confessional, a voz cavernosa a entrar na medula de quem a ouve, ora num registo histriónico que acompanha o esvoaçar da energia descarregada pelos instrumentos, com uma percussão dupla a sublinhar o entorno sonoro. 

No fim do concerto, a roda mantém-se viva. É difícil adormecer sob o efeito telúrico. À roda, a vida não se entontece com o ludismo da música. As pessoas muito sérias, que não têm vida fora do ambiente taciturno em que vivem, darão nota da sua censura (que dirão ser social): os melómanos são peritos numa auto-anestesia que é um disfarce do mundo real (é assim que lhe chamam, possivelmente em contraste com o mundo fingido). 

Os melómanos não acusam o libelo: a sua roda está viva quando entram na roda viva das artes. Para eles, fora das artes (o que poderiam chamar “desartes”) é monótono, castrador da criatividade, uma deriva para se apoderar da autonomia de cada um. Deixam a pose de estadista para os devedores das solenidades e não lhes conferem importância. Em nome da liberdade.

3.10.24

Glossário (short stories #473)

Michael Kiwanuka, “Lowdown (parts I and ii), in https://www.youtube.com/watch?v=agx-kVgC3sg

          É esta forma incerta que nos dá corpo, a matéria vaga que sussurra nas imediações da noite. O cais pede pessoas e elas fogem. Antes que seja noite, fogem das silhuetas que se consomem em labaredas. Fogem, apenas. E, fugindo, aspiram a ser a máxima liberdade que alcançam. Não lhes peçam futuros ávidos, poemas sem fôlego, uma maratona de dissidências só para provarem que estão vivas. Somos mais modestos. Somos vagos. Pedimos ao mar que seja musa. Deixamos nas mãos da maresia uma usura que não tem sindicância. Mas sabemos que essa usura não colhe significado na restrição de um dicionário. Não queremos ser como as redes de arrasto que dizimam tudo à sua passagem. Queremos ser olhados como aqueles que contribuíram para repensar o estabelecido e rever os padrões. Porque o tempo muda as coisas que devolvem com vigor redobrado as fronteiras em que se congemina o tempo futuro. Se nos perguntassem, queríamos responder com perguntas: não somos os pacatos peões que se movem na inocência de um tabuleiro arquitetado pelas mãos poderosas que se mobilizam, espectrais. Não somos a gente imersa nos rostos indiferentes, tutores de nomes que só cada um de nós sabe; não somos a carne fácil que se atira aos mastins que têm de ser domados. Vamos ao fundo das gavetas e esgravatamos os sinónimos que são da nossa tutela. No chão onde se encontra a forma incerta que nos confere frágeis, na fragilidade em que emergimos como fundamento da modéstia de ser. Em vez de andarmos enredados em possíveis heroísmos, recolhemos ao recato da humildade. Mergulhamos no glossário de que somos autores, à espera que frua num idioma em que poucos são os que falam. Da forma incerta, um rosto insinuado, pesando a voragem das palavras que ficam para nossa intendência. Até a manhã se transformar em estrofe.

2.10.24

Quando deu conta, a inteligência artificial desmentiu-o sobre a sua pessoa

Fontaines D.C., “Starbuster”, in https://www.youtube.com/watch?v=KHocVRUlvkk

(Baseado numa história que aconteceu)

Tinha tanta a curiosidade para saber como pensa a artificial inteligência que se deitou à exploração, como se fosse um descobridor quinhentista a avançar por territórios ermos. Ao contrário dos seus antecessores, não partiu no vazio. Leu o que pôde antes de se deitar à empreitada.

Com um módico de conhecimentos sobre o assunto, e sentindo-se preparado para colher os frutos do investimento que, a propósito, forçara a desviar-se de algumas pendências em carteira, começou a falar com a inteligência artificial. Percebeu que a inteligência artificial (IA, para os amigos) pode não ter um rosto, mas está longe de ser anónima, tanta a bagagem de conhecimento. Segundo as regras não escritas, é preciso dar de comer (conhecimento) para a IA se alimentar da sua inteligência e devolver a confiança na forma de conhecimento com estrutura. Nós damos o lamiré e a IA faz o resto.

Foi adicionando peças no puzzle de coalescência com a IA. Como se fossem sendo limadas arestas, à medida que a máquina devolvia mais nacos de conhecimento e respondia às solicitações que acrescentavam novas camadas à demanda. Até que ficou satisfeito com o resultado que a IA apresentou. Começou a ler atentamente o arrazoado. Era um produto legítimo, se à coerência fosse perguntar se se sentia ultrajada. Começou a acreditar nos predicados da IA. Até que descobriu, mesmo no final do texto, que a IA descobriu um livro escrito por ele que se juntava à bibliografia a propósito do assunto. Só que ele não tinha escrito aquele livro.

Ele é que estava errado. Se a IA participou que tinha a honra de pertencer ao escol que iluminava de conhecimento o texto acabado de produzir, é porque foi assim. E não era esquecimento: a sua memória estava impecavelmente lubrificada e os mais próximos sempre comentavam como ela era prodigiosa. 

Lutou com denodo contra a IA para a convencer que ele não era autor daquela obra. (Quantos não desdenhariam a oportunidade de passar por autores de uma coisa que não tinham feito?) Se a IA dizia que sim, que ele era o autor, é porque ele estava enganado. Não era obra proscrita, porque ainda não chegara a esse estado de recusa terminante do que escrevera no passado, nem tem o feitio judicioso de escritores que ficaram famosos por terem tanto de genialidade como de irascível. Sabia que não tinha sido o autor do livro, mas a IA insistia em dizer o contrário. 

Foi-se convencendo que a IA não conta mentiras. Dizem por aí que é infalível. Percebeu, então, que a IA sabe mais das nossas vidas do que nós mesmos; era um modo alternativo de atirar o ónus da desinformação para cima de nós. Se calhar – alvitrou, sem desdém e apenas com uma modesta dose de cinismo – deus reincarnou na forma de IA.

1.10.24

A descer vertiginosamente de bicicleta, o rosto a tirar a bissetriz do chão

Portishead, “Magic Doors” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=dwkf6qJUIxo

Sem capacete: roubou uma bicicleta, desleixadamente deixada ao deus-dará pelo dono, e pedalou com toda a velocidade até à descida alcantilada a caminho do rio, não fosse o dono no seu encalço e ele precisava da bicicleta para o ato que espontaneamente encenou. 

Só podia ser sem capacete: não tem por hábito andar de bicicleta e o ato de tomar ilegítima posse de uma bicicleta alheia foi espontâneo. Não se intimidou. Com ou sem capacete, andava para experimentar a descida íngreme que ia ter ao rio. Não lhe chamassem louco – apenas queria experimentar a sensação de não ter de pedalar para chegar a uma velocidade estonteante e saber que o seu corpo era o para-choques doloroso se a aventura tivesse um mau fim.

Até estava convencido que o mau fim era o mais provável. Todos os dias havia acidentes naquela pendente; ainda por cima, o piso era escorregadio, inexplicavelmente escorregadio (as pessoas habituaram-se a acusar o piso de ser de manteiga), e as autoridades não queriam saber, jogavam um jogo do empurra, cada uma (governo, região e município) com destreza a mostrar como se endossa a culpa para o outro. Nem a noção que a aventura podia ter um mau fim o desmotivou. Isso poderia parecer, aos olhos dos outros, um lancinante ato de desinteresse pela vida: quem escapa com ela ao chocar de frente contra um veículo a mais de sessenta quilómetros por hora e sem capacete?

Continuou resoluto. Nunca fora a sua marca de água, a falta de hesitações. Mas agora ia ser, nem que fosse a última coisa que a sua vida testemunhava. Dobrou a esquina e parou de pedalar com toda a força que tinha; não parou totalmente, manteve alguma cadência nos pedais ao começar a descida para que a força de gravidade o levasse a caminho do precipício a uma velocidade invejável para o melhor dos suicidas.

A hora era de ponta. Um longo cortejo de carros e motoretas descia vagarosamente a avenida. Ia ultrapassá-los a todos. Ia passar por eles com rasantes que amedrontassem os condutores distraídos. As pessoas iriam perguntar o que faria tamanho louco a descer vertiginosamente a avenida a caminho do rio. O lugar-comum que povoa as pessoas comuns ajudaria a concluírem que ele era suicida. Não se sabe se seria o primeiro. Pouco interessava: por mais que um mau fim fosse a hipótese mais provável, não descia alucinantemente a avenida com o propósito de ser ele próprio a extinguir a vida. Tinha a certeza, pondo lado as congénitas tergiversações, que ia conseguir sair com vida e sem muitos arranhões. 

O resto não importava, só o ar frio que se esmagava contra o rosto, os cabelos já de si desarranjados a penderem para o lado que o vento quisesse, um rumor de estupefação ao vê-lo, temerário, a caminhar na direção da morte quase certa, os carros mais lentos a serem ultrapassados com rasantes circenses, numa mostra de equilíbrio que nunca fora seu apanágio, o corpo aerodinamicamente colocado para ganhar ainda mais velocidade (como se aquela já não chegasse), a vertigem de ver o rio aproximar-se na exata medida do ganho de velocidade com a bênção da descida inclinada; e as imagens correspondendo à sua vida passada que iam desfilando em excertos velozes, embaciando o olhar. 

O resto não importava. A vida continuava a ser bela.

30.9.24

Quem gosta de óleo de fígado de bacalhau?

Explosions in the Sky, “Ten Billion People”, in https://www.youtube.com/watch?v=7CqIe34ghgs

G20 vai discutir, em novembro, um imposto especial de 2% aos “super ricos”, as pessoas com uma riqueza superior a mil milhões de dólares. Para o(a) leitor(a) se situar no contexto, o G20 é o fórum internacional onde os países mais ricos se reúnem e que frequentemente é acusado, da esquerda para a extrema-esquerda, de ser insensível às desigualdades de riqueza e de estar a soldo dos interesses do “grande capital” e dos muito endinheirados. Quando o assunto foi agendado na Assembleia da República, por iniciativa do Livre, PS e PAN, todos os partidos situados à direita do PS manifestaram-se categoricamente contra.

Antes de prosseguir a análise, é imperativa uma declaração de interesses: sou liberal, não sou (nem de perto) abastado nem estou isento de IRS, e faz-me espécie a sanha anti-ricos e anti-empresas “pornograficamente” lucrativas que os partidos à esquerda do PS personificam. Diante desta recusa perentória dos partidos à direita aceitarem discutir o imposto sobre os muito endinheirados para começo de conversa, devo acrescentar às irritações pessoais a recusa sistemática das direitas em contemplarem a hipótese de os ricos desviarem um pequeno naco das suas fortunas em favor dos que mais precisam.

Em vez de serem advogados de defesa acríticos dos que nadam em privilégios materiais, talvez os partidos à direita ganhassem em prescindir de dogmatismos, deixando-os no regaço da extrema-esquerda. Pois um dogmatismo é sempre um dogmatismo, mesmo que venha disfarçado em diferentes pressupostos e que obedeça a bandeiras diferentes. 

O meu liberalismo não se encaixa em certas intransigências da IL: em vez de se agarrarem, quase por reflexo condicionado, à abjuração imediata de tudo que soe a (aumento de) impostos, sem refletirem sobre o que está em causa e das razões que explicam que até se justifica uma exceção aos seus princípios, a IL deve saber ler o tempo e a circunstância em que nos encontramos. Todos os partidos, de um lado ao outro, deviam estar menos presos aos dogmas e deviam perfilhar o pragmatismo. Afinal, aprende-se que a política foi inventada para resolver os problemas das pessoas. (A menos que o(a) leitor(a) subscreva a visão cínica de Groucho Marx: “a política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em todos os lados, diagnosticá-los incorretamente e aplicar as piores soluções”.)

Para ajudar a este lampejo de pragmatismo, que é uma necessidade para os partidos à direita, vem a calhar um shot de Filosofia. Ter a capacidade para nos colocarmos no lugar do outro é um cânone da Filosofia moral. Bem sei que para os apóstolos da política como a conhecemos, tão dependente da partidarite cega e das táticas que levam os partidos a esquecer para o que foram inventados, invocar aquele preceito filosófico pode soar a ingenuidade. 

Aceito: sou ingénuo. É desta ingenuidade que parto para justificar por que faz sentido, até para um liberal, apoiar a proposta de tributar excecionalmente os muito abastados. Uma pessoa que seja titular de uma grande fortuna aceita o exercício de substituição de lugar com alguém que seja carenciado e acaba a perguntar: se eu estivesse no lugar daquela pessoa, gostaria que um rico me ajudasse. Não estou a pensar numa troca bilateral, um deles fazendo pura filantropia em benefício do outra, que dela beneficia; estou a pensar nessa pessoa a aceitar que a redistribuição deve operar através do Estado, que cobra impostos e depois os distribui de acordo com um mapa de preferências que dá corpo às políticas públicas.

A recusa terminante de muita direita é contraproducente. Alimenta a tensão social, podendo, em situações-limite, ser o rastilho para atos de violência descontrolada de que ninguém sai a ganhar. Configura a insensibilidade social que trespassa muita direita, oferecendo um trunfo às esquerdas: elas é que defendem os desvalidos, elas é que se libertam daquela insensibilidade social, são elas que, à conta destes pergaminhos, constroem uma imagem pública decente; construindo esta linhagem, ufanas em delimitar as trincheiras que as separam “da direita”, montam-se na superioridade moral e depressa descaem para a arrogância, todavia tolerada por ser um instrumento da superioridade moral.

O imposto sobre os super-ricos é a oportunidade para “a direita” deixar de ser obstinada e, com essa obstinação, oferecer um tesouro valioso às esquerdas. Para mais, a mudança de atitude não poderia ser determinada por uma mera inflexão oportunista, como quem muda de opinião apenas para esvaziar os argumentos do adversário. Não: a mudança teria de ser genuína; essas direitas teriam de reconhecer a justeza em impor aos muito abastados um tributo excecional por terem uma fortuna excecional. Se não for uma mudança genuína, é preferível que estas direitas se mantenham agarradas aos seus atávicos padrões. Para fingimentos e táticas que sopesam oportunismos, levamos com a lamentável encenação a propósito da negociação do orçamento de Estado para 2025.

Antecipando algumas críticas que me possam sere feitas, direi que não guinei à esquerda, contrariando os que, da direita, assim me ajuizarem. Aos da esquerda que quiserem esvaziar a minha ideia, também direi que não me juntei a eles. Desminto os que, presos às suas convenções herméticas, me acusarem de estar a ver as coisas do avesso, porque a sensibilidade social é um monopólio das esquerdas. Se me for permitido enviar um par de recados, às direitas recomendo que não sejam os habituais defensores dos ricos; às esquerdas sugiro que reconheçam que também estão presas a dogmatismos que costuram um viés de que não dão conta (ou fingem que não). 

Todos gostamos de comer um trufa de chocolate. Mas todos fazem um esgar de desprazer se tiverem de ingerir uma colher de óleo de fígado de bacalhau. Quando é preciso, temos de ingerir óleo de fígado de bacalhau. Para que mais gente possa deliciar-se com trufas de chocolate.

27.9.24

Já foram quantas voltas ao mundo? (Às vezes, os números não contam)

Royal Blood, “Figure It Out”, in https://www.youtube.com/watch?v=jhgVu2lsi_k

O velho vendia poemas, sentado no chão da rua pedonal. Escritos em cartões retangulares, a escrita desenhada a tinta azul, poemas espartanos, a crer na não exaustiva mancha que ocupava cada cartão antes de a tinta azul ter corrompido a sua alvura. O velho não teria o juízo inteiro, diriam os mais atentos, aqueles, e eram a maioria, que passavam com a pressa de quem tinha pressa, ou não a tendo fingia tê-la, só para fingir não reparar no homem mentecapto que vendia as poesias da sua lavra – ou só para fingirem, porque era a sua especialidade.

Ninguém parava para apreciar a poesia do velho. Preferiam correr para apanhar o comboio, ou parar na pastelaria para enganar o sono com um café, ou para à fome lançar um engodo com um lanche intermédio, ou fazer pose de turista e dirigir o olhar compenetrado para as fachadas das casas que apontam ao alto, ou olhar a ponte ao longe e com ela adivinhar o rio soporífero, ou apreciar os muitos e diferentes turistas que percorriam a rua pedonal, esses sim com um legítimo olhar atirado para a parte mais alta do edificado.

Ninguém quis saber da poesia do velho. Ou se o velho era um louco autêntico, ou apenas uma personagem excêntrica que não tinha vergonha de vestir uns andrajos e posar na rua concorrida. Ninguém quis fazer perguntas ao velho: onde nasceu, o que fez na vida, e o que desfez, se esteve preso e qual o crime que o condenou a suspender a liberdade, se o espalhafato era propositado ou ele não dava conta dos preparos, por onde andou na vida, se é um monogâmico territorial ou se foram muitas as terras que coincidiram com as suas demandas. 

Ninguém acabou por saber que o velho não é mentecapto. Ninguém quis experimentar a poesia espalhada numa manta por sua vez espalhada no chão ladrilhado da rua pedonal. Ninguém pôde atestar que era poesia a sério. Ninguém acabou por ouvir o velho protestar, em voz alta, que todas as demandas que nos fazem percorrer voltas ao mundo são insensatas (e fê-lo, lendo um poema resgatado ao chão). E que não devemos ser prisioneiros dos números, que a nosso favor não são testemunhas cabais. 

Ninguém parava para apreciar a poesia que era o velho sentado no chão a vender poesia da sua autoria. Quando o velho partiu em direção a lugar incerto, a sua poesia ficou tatuada no chão ladrilhado da rua turística.

26.9.24

Capitólio


Cage the Elephant, “Cold Cold Cold”, in https://www.youtube.com/watch?v=n95eekfFZZg

Um longo bocejo cobre a valsa intemporal. O espelho virado do avesso separa os vestígios puídos que se arrastam sem se deterem. Convocadas ao estirador onde as almas são aferidas, as vozes sentinelas preferem o silêncio. As tardes baças encomendam o estertor do dia. O crepúsculo coloniza a claridade; desfaz o fingimento da claridade, que ocupará as horas prévias com um ardiloso teatro que distraiu os inocentes para a matéria vã da frivolidade. 

Alguém pergunta:

Não é melhor, ou digamos, menos mau contratar a frivolidade, em vez de sermos testemunhas à força do desprezível estado das coisas e das pessoas? Se nos acusarem de sermos os mais altos serventuários do fingimento, consideramos, pelo contrário, um elogio? Não nos esqueçamos do teatro como arte sublime do fingimento. Não nos esqueçamos – insto, com a ênfase necessária – que o fingimento pode ser a vacina necessária contra o estado desprezível das coisas e das pessoas, contra as palavras que, ditas mansamente, alojam uma agressividade desarmante

Vivemos um tirocínio interminável. Reféns da intransigência que se joga contra nós, somos apenas presas domadas nos dedos maninhos da inocência. Uma e outra vez, sem aprendermos a aprender que as balas que nos trespassam nunca são julgadas por contumácia. Nós é que mergulhamos na contumácia de nós mesmos, como se nos tornássemos espectadores passivos da nossa biografia desentrapada, exposta no maior palco do mundo. No palco onde a vergonha foi destronada.

Amarrados às cordas arbitrárias, não podemos aceitar a bondade certificada. Juntamos as miragens hasteadas em estrofes douradas, os beijos que ficaram aprisionados em sonhos, a grotesca, funda gruta que nos impede de saber a gramática do sol, e nem assim nos soltamos da hibernação. Enquanto não soubermos dizer, sem medo das vozes que estão de atalaia à espera de nos punirem, que não nos perguntaram se queríamos a hibernação, seremos meros vultos disformes, marionetas à condição sob a égide das vontades exteriores que silenciosamente torturam a nossa vontade. 

25.9.24

De uma folha em branco (short stories #472)

The Murder Capital, “Can’t Pretend to Know”, in https://www.youtube.com/watch?v=w78NwHYLjzo

          Participamos no entardecer onde a loucura é contrabandeada. Os deuses são uma amostra visível da fúria, desembaraçam-se dos elementos adversários que possam travar a sua ira. Agora que sabem que a tese dos deuses bondosos foi desmentida, as pessoas mergulham na ossatura em branco, como se tudo voltasse à virgindade de uma folha. Falta saber se as pessoas são capazes, sem se entregarem à litania da demência que congela o sangue. Algumas vozes militam a favor da renovação. Já há muito desconfiavam dos deuses – lamentavam, os mais condescendentes, que os deuses estavam a fazer um mau trabalho. Agora que os deuses estão sepultados, as pessoas olham de frente para o tempo e sentem que têm o destino nas mãos. Não se querem precipitar. Não querem ser acusados da soberba divina que deu maus resultados. Todo o sal que traz os lugares ermos a uma condição de proximidade destapa o véu que se abatera, roubando a claridade a que as pessoas se desabituaram. Parece que deixou de haver lugares ermos e todas as pessoas são credoras de uma oportunidade. Um feixe de espectros dança sobre o fio do horizonte. Os mais desconfiados temem que seja a vingança dos deuses, que antes de morrerem terão deixado em testamento a continuidade da sua obra contestável; ou então, sabendo da sua intrínseca incapacidade, os deuses semearam a usura só para que as pessoas continuassem a ser feitas de fragilidade. Os dígitos que se sobrepõem falam como as palavras. Dizem que a linguagem agora é assim. Ainda sem saberem se é outra vingança apalavrada dos deuses, as pessoas limpam o suor do rosto, arregaçam as mangas, querem ser os arquitetos da empreitada. Partem de uma folha em branco. Só depois se saberá de que enredo é feita essa folha.

24.9.24

Amarelo

Nirvana ft. St. Vincent, “Lithium” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LM9sq5GENbE

Muitos cultivam a arrogância. Pode ser uma defesa – quantas vezes, durante a sua vida, terão tropeçado em arrogantes que cavalgaram a arrogância em cima deles, atirando-os (ou querendo atirar) para a subalternidade? 

Agarram-se à arrogância sem disfarce, o selo expoente da desconfiança criteriosa que dedicam os outros. Desconfiam por desconfiarem que todos os outros desconfiam deles e que essa desconfiança precede a sua desconfiança – uma desconfiança apenas por reação. Não se pode descontar a possibilidade dos outros, os que praticaram a desconfiança num momento pretérito e os que só a ela se abraçam na posteridade, contestarem os termos da desconfiança. Enquanto andarem entretidos com a magna questão de saber qual foi a desconfiança que deu origem à desconfiança posterior, quase toda a gente é colonizada pela desconfiança e poucos sobram para explicar como é confiar e ser confiável.

Esta zona cinzenta da mente condena a um especismo judicioso que mata à nascença a cooperação entre as pessoas – uma contradição de termos. Quando se alarga a teia de desconfianças, extingue-se o incentivo para a confiança. Soa a conceito datado, mera curiosidade arqueológica que não sai das páginas dos dicionários que evitam que o conceito se perca de vez. Ninguém confia: e sê-lo-á muito mais porque poucos são de confiar, não porque grande parte dos que desconfiam podem alegar em sua defesa que já foram vítimas da desconfiança.

Pelo andar do tempo fora, uma corda aperta-se à volta da jugular. A espécie torna-se um espelho baço do que poderia ser se as especulações dos otimistas pudessem ter vencimento. Já não é da humanidade adulterada que se trata; a desconfiada face que cobre a espécie tornou-se identidade. À conta da caudalosa desconfiança, os que ousarem avançar contra o princípio geral da desconfiança só têm a seu favor o alívio da consciência. São as vítimas preferidas dos mastins gerais que se alimentam, e alimentam, a desconfiança. 

É neste pano puído, amarelecido pela adulteração constante que se tornou comportamento convencionado, que se deita a espécie destratada. Quando desconfiamos porque esse é o criterioso imperativo que se veste de arnês, amarelecemos o pano e deitamo-nos no estertor da decadência. Não venham os cânones convencer que somos habitantes numa paisagem bucólica que não passa de um sonho: somos gregários só para sermos obedientes aos imperativos da ordem social. 

A desconfiança torna ilegítima a condição gregária, corrompendo as boas intenções dos instrutores da nossa gregária condição.

23.9.24

A tomada dos refrões (assinatura)

Kiasmos, “Burnt”, in https://www.youtube.com/watch?v=bR9-2As-XMk

Tomava conta dos refrões. Podia ser que mais ninguém os usasse. E depois, o que seria das pessoas se fossem privadas dos refrões?

Que fosse tomada por boa a intenção. O uso repetido de refrões banaliza a linguagem. Traz para dentro dela os lugares-comuns que têm um efeito-eucalipto nas palavras, que perdem originalidade e ficam ao deus-dará, usadas e abusadas numa corruptela que abrevia a decadência do idioma. 

(Mas: nem a tanta riqueza do vocabulário – já alguém inventariou o número de palavras que fazem parte do dicionário? – transige com a natural banalização de muitas palavras, de tão usadas que são.)

Era como dissolver os refrões das músicas e guardar as estrofes restantes. E perceber o resto: as palavras sobrantes precisam do refrão para terem sentido? Ou ganham mais sentido se vierem somadas do refrão? 

Chocamos de frente com expressões banalizadas e que ora são redundantes (“há três anos atrás”), ora são uma deseconomia de palavras por uso excessivo de uma delas (“totalmente gratuito”), ora tratam de aportuguesar estrangeirismos à pressa (“o que se pede ao colaborador é que esteja engajado com a empresa”; ou “análise compreensiva”). E depois vulgarizam-se, entranham-se na fala. As pessoas acomodam-se ao seu uso corrente. Usando-as recorrentemente. Confirmando-se a ausência de espírito crítico, através da propensão para alinhar com as facilidades, mesmo que facilitar corresponda a um incorreto uso da língua.

Os refrões são os assassinos da língua. Mesmo quando não encerram erros gramaticais ou de sintaxe, são contaminados pelo abcesso da mentira – da mentira que, de tantas vezes apregoada, e de boca em boca, acaba por se transfigurar em verdade forjada. Os refrões adoentam o idioma. Tornam-no repetitivo, liquidam a originalidade que a riqueza do idioma oferece. Esta é uma dádiva que as pessoas omitem. É estranho: elas costumam ser diligentes na procura de brindes, numa caça às borlas que daria azo a manuais de economia comportamental. E, no entanto, fogem da gratuitidade do idioma tão rico que é o da sua fala.

Se pudesse, tomava conta dos refrões. Seria seu procurador, com o propósito de os armazenar a sete chaves, escondendo-os do uso (re)corrente. Seria a minha assinatura.

20.9.24

A beleza de pertencer a uma seita

The Smile, “Zero Sum”, in https://www.youtube.com/watch?v=TJ4lG5Szr50

Os mais novos angustiam-se depressa e com muita facilidade. Cada problema que mede milímetros é como se pesasse toneladas. Quando acontece, começam a ser invadidos pelo pânico que espalha cenários terríficos, quase como o seu (pequeno) problema fosse acabar com o mundo. É uma geração que se deixa contaminar muito depressa pela promessa de vários apocalipses. Para o caso de um não se materializar, outros seguem em carteira.

E não aprendem: já terão passado por vários quase-apocalipses e continuam à espera do próximo. Podiam ter aprendido com as experiências transatas, com o cheio a apocalipse que não passou disso mesmo, de um mau agoiro que não dita o fim do mundo. Todavia, montam um registo histriónico e abraçam-se à apoplexia, como se o mundo for mesmo acabar se o seu milimétrico problema não for resolvido. Quem o resolve são sempre os outros. A externalização das angústias pode desatar uma multiplicação de estados catatónicos, se em cadeia fruir uma multidão que exagera no diagnóstico e se deixa convencer que um ínfimo problema vindima o fim do mundo. 

Talvez pudessem pertencer a uma seita, daquelas que explora à exaustão os malefícios de habitarmos este mundo puído e esperam que ele acabe para se resolverem os problemas de uma vez por todas. Dessas seitas influenciadas por gurus que têm um poder hipnótico, tantos os seguidores que conseguem atrair. São potenciais suicidas: se o mundo vai acabar, não será excêntrico imaginar que será um espetáculo medonho; talvez prefiram ceifar a vida para não serem dizimados pelo fim do mundo. Os gurus nunca explicaram porque são tão apocalípticos e, em o sendo, não antecipam o golpe fatal e deixam de cá estar para ver como o mundo acaba. Os confrades destas seitas, em perene estado hipnótico, não fazem essa pergunta a si mesmos e aos gurus que tão devotamente seguem (não necessariamente por esta ordem).

Tal como o terrífico fim do mundo, que resolve todas as pendências que impedem o reconhecimento da perfeição do mundo, as angústias extemporâneas podiam ser tratadas com psiquiatra ou a pertença a uma seita que valide um esoterismo. 

A magia, o mistério e a especulação sempre foram do agrado das pessoas quando ninguém devolve resposta às suas dúvidas existenciais.

19.9.24

Farmácia

Jack White, “That’s How I’m Feeling”, in https://www.youtube.com/watch?v=A3neCOTqfj8

“E se em vez de esperarmos verdades finais que nos estarrecem, praticássemos activamente a esperança?” 

André Barata, in Ipsilon, 26.07.24, p. 31.

Deixemos de lado a inútil demanda da verdade. Deixemos de querer ocupar o lugar dos deuses, se aos deuses se aceitar a imputação das verdades finais. Sejamos cultores da esperança: uma bússola, mesmo que esteja desafinada, que colhe os ramos do futuro como sementes regadas pelas nossas mãos conspícuas.

É preciso interpretar o divórcio da verdade. Da verdade como ente absoluto e que fermenta na intransigência do seu contrário, um fogo estarrecedor que infecta tudo à sua volta. Para não sermos colonizados por uma vontade que, sem sabermos, nos é exterior. Para não alojarmos vestígios de uma imanência que não nos diz respeito. Não é que dispensemos os bons exemplos, que os há em barda no espaço limítrofe. Devemos ser criteriosos. Não tutelar verdades insofismáveis que se fazem passar por imperativos categóricos. Não sejamos reféns de contendas que aos outros dizem respeito. São o pressentimento das piores beligerâncias que envergonham a humanidade.

Em vez disso, a esperança que fala através das interrogações sistemáticas. As interrogações devem ser dirigidas aos patronos das verdades, aos insuspeitos advogados das certezas esfregadas no rosto dos outros com uma contundência arrogante. É uma esperança com pavio interminável. À medida que for trespassando perguntas atrás de perguntas, que for incomodando os procuradores de verdades à prova de contradição, que forem sobressaltando as almas domadas pela adesão ao conforto das convenções, a esperança alimenta-se a si mesma e de si mesma. Como se fosse um novelo feito de fios que aderem uns aos outros e crescem de geração espontânea, a esperança de saber contestar as verdades acastela-se num futuro que se promete luminoso. 

Enquanto houver pavio longo, e sobre ele adejar a promessa da intemporalidade, a esperança fica tatuada no magma profundo e invisível. Cobra os lugares habitados no tempo vindouro, como se fossem as portagens necessárias para saber haver lugar próprio da identidade do futuro. Não devemos ser timoratos na adesão à gramática da esperança. Teremos de ser agentes ativos, empenhados, como se ao úbere da esperança fôssemos beber o direito a sermos futuro. Sem o inconveniente das verdades que são satélites em nome dos contratempos que figuramos inúteis. 

A essas verdades, depostas pela esperança metodicamente ativa, destinemos a indiferença. O espelho avivado da esperança.

18.9.24

O roteiro de um conservador que preza muito os costumes e ambiciona a devolução de Olivença

Mogwai, “God Gets You Back”, in https://www.youtube.com/watch?v=hq30tXF-n5E

(Na primeira pessoa, o conservador)

Vigiar os outros é minha especialidade – e não faço parte dos serviços secretos. É uma canseira. Estou de atalaia, sempre diligente para prevenir que almas tresmalhadas atravessem a fronteira do permitido pelos cânones e comecem a pisar o chão pantanoso da perfídia. Faço-o com sacrifício da vida familiar. Esta incumbência é desgastante, a muitos olhos exteriores é deselegante. A páginas tantas acabo por esquecer que tenho vida própria e uma família para outorgar carinho. 

Já tentei mais de que uma vez o afastamento terapêutico. A generosidade cava cicatrizes fundas. Não são reversíveis. O estado do mundo é cada vez pior, o número de almas errantes que incorrem em múltiplos pecados está sempre a crescer. O hedonismo está quase a tonar-se numa religião. Os bons esforços que ponho no encaminhamento das almas são objeto de sarcasmo (por uns) e de rejeição contundente (por outros). Até ouço, de vez em quando, “vai tratar da tua vida”, como se o sacrifício dela não fosse do meu conhecimento e não soubesse traduzi-lo num ónus que se deita em cima dos meus pesares.

É impressionante como muitas pessoas vivem imersas em sofismas. Com a minha bondade intrínseca, tento chamá-las à razão, à verdade, à luz límpida que só Deus é capaz de nos garantir. Rejeitam tudo. Às vezes, com maus modos. Pergunto se estes hedonistas, estes embaixadores dos vícios e das depravações, estes mastins que mordem na generosidade dos costumes bons em que se acamou a sociedade, não são lídimos representantes do demo. E estão espalhados, com zeloso critério, para difundirem o mal, a frivolidade, a decadência, a degeneração, a entrega aos prazeres superficiais da carne, tudo empanado num véu que esconde o fingimento da liberdade. Não precisamos de liberdade; precisamos de seguir Deus e os seus mandamentos – e dispensamos perguntas sobre o que já sabemos, que inventem a palavra “dogma” e putativas crises existenciais que só servem para nos desamordaçarmos dos costumes. 

Estou cansado. Quando vou à missa, vejo a audiência a enfraquecer, os fieis envelhecidos como presságio da decadência do culto e provavelmente da popularidade do catolicismo. Vejo promiscuidade. Vejo os prazeres fúteis a serem preferidos à espiritualidade. Vejo que Olivença continua a ser ocupada por Espanha (e defendo, sem que me tivessem pedido, que a Catalunha deve continuar a fazer parte de Espanha). Vejo as mulheres a exigirem igualdade (ó heresia!). Vejo homens que amam homens, mulheres que amam mulheres e outros que não sabem bem o que amam – se é que amam. Até vejo que por aí já se escreve “outres”. Vejo mulheres que se metamorfoseiam em homens e homens que passam a ser mulheres. Vejo os partidos de esquerda que ainda são admitidos a eleições. Não vejo grande futuro destinado ao mundo. Estou desiludido: sinto que a minha tarefa, e a dos outros missionários espalhados pelo mundo, foi um logro.

(Em sendo assim, posso-me dedicar aos aspetos subterrâneos, mundanos e inconfessáveis, da minha vida: teimar em grande parte dos pecados de que sou incumbido de contrariar com a pose beata de que fui dotado. Pois enquanto passo a aparência de muito me preocupar com os descaminhos dos outros, finjo que não tenho exatamente os mesmos.)

17.9.24

Feitiçaria

Mdou Moctar, “Imouhar”, in https://www.youtube.com/watch?v=Rou56KMf_dw

Os lívidos azulejos são o espelho de quão baço está o dia. Conspiradores de toda a espécie juntam-se à volta de um adro escondido numa cave. Conspiram, num certame de criatividade usada do avesso: o trofeu derradeiro será empunhado pelo confrade que tiver inventado a conspiração simultaneamente mais disparatada e credível.

Cá fora, a populaça aguarda. Ela também ávida, o olhar estremunhado porque o dia soalheiro rejeitou o ar pesado e plúmbeo que se põe a jeito das explicações mal-amanhadas para fenómenos singelos. Aguarda, a populaça: se for preciso, são as tropas alinhadas para satisfazerem as convocatórias dos conspiradores-natos. Eles, a maralha indistinta, são netos intelectuais dos conspiradores que falam em nome da moda. Com crença fácil a amurar os corpos, desconfiam da ciência e acreditam nas elucubrações fantasiosas de um punhado de mitómanos profissionais. Já foi tempo em que os apelos à razão tinham eco. Agora, estão condenados à usura das almas mal-intencionadas.

Essas pessoas pedem feitiçaria a rodos. Sortilégios, muitos; fantasmas pelo meio; episódios fartos de gente credível a ser humilhada na denegação da autoridade que julgavam incontestada. São a favor do contrabando das ideias e dos factos. As cátedras deixaram de ter serventia. Os peritos, que medraram encostados aos esteios da ciência, são amesquinhados, a sua ciência reduzida a um trejeito do saber por gente que navega na mais profunda ignorância. Os pratos são virados do avesso e os lugares também. As provas que a ciência diria irrefutáveis são uma lâmina severa terçada por peritos que são o disfarce de impostores.

Os feiticeiros vão colonizando o seu espaço. Com um séquito atrás, sob o testemunho da ciência agora destinada a um lugar de impotência. Fundem na fala um cuspe fétido que inventa alucinações. Disfarçam a fala sob o alto patrocínio da credibilidade, quando se empenharem em ser feiticeiros em nome próprio, desautorizando o conhecimento com alicerces. Com estes ilusionistas sem carteira, as mentiras propagam-se à velocidade da luz, ultrapassando o jugo de mentira. De tantas vezes entoada, a mentira torna-se a verdade que eles querem selada na monocromática página de um receituário sem dissidência. 

Por que gostariam de um céu despejado de nuvens se é o embaciado que transporta a penumbra de onde espiga o conhecimento sem silhueta? Aos conspiradores resta a consolação de saberem que convencem os incautos com meia dúzia de teorias que são a negação de uma teoria. Preferem o purgatório onde se despenham, sem saberem, os ingénuos que distribuíram conspirações a eito e os seguidores que ajudaram ao peditório. 

16.9.24

Cidade fantasma (excurso pela masculinidade tóxica)

Nick Cave and the Bad Seeds, “Conversion”, in https://www.youtube.com/watch?v=NHbQFArmxdc

Também posso ter teorias interiores: os marialvas que sobem muitos degraus acima das mulheres e passeiam prosápia, fazem-no como válvula de escape de inconfessáveis fragilidades intrínsecas. 

Elaboro: desprezam as mulheres e consideram-nas o sexo fraco porque se recusam a admitir que fraco é o sexo deles. Em abono da minha teoria gratuita, atiro para o ar uns elementos fartamente especulativos: estes homenzarrões de falaz linhagem não admitem que não são amantes dignos do termo, porque terão notado (se é que não houve mulheres que lhes disseram num assomo de franqueza) que não conseguiram atingir se não o seu próprio clímax, incapazes de cuidarem da reciprocidade que não lhes importa. Não se lamentem de serem rejeitados no mercado dos prazeres carnais por apenas cuidarem do seu, num egoísmo que quadra com os cânones da masculinidade tóxica.

Atormentados pelas dúvidas existenciais que levantam tempestades interiores e abrem fendas no seu muito prezado orgulho másculo, vingam-se nas mulheres, que são atiradas para um lugar secundário na ordem social. Manifestam um tal jaez intelectual que os eleva ao olimpo reservado aos apedeutas. Por fora das angústias interiores que ora os consomem sem darem parte de fraco, ora asfixiam como parte do fingimento de que fazem parte, os marialvas acusam as mulheres de não conseguirem integrar a comandita do prazer e diagnosticam o mal: está nelas, longe de admitirem que personagens tão varonis possam ser apontadas pelas omissas proezas do foro.

Ato contínuo, tecem os caminhos simplistas nos vagos e também simplistas corredores do raciocínio em que se debatem: não podem ser acusados das frustrações carnais das suas parceiras, habituais ou ocasionais, pois eles tiveram prova cabal do seu desempenho que teve o epílogo esperado. Comportam-se como se um par dançasse apenas com as pernas de um deles, o outro desobrigado de contribuir para a sintonia do duo. O sexo, para estes beócios, é uma interação em que os dois corpos se desligam quando o deles se saciou. Pobres de qualidades mentais, endossam a culpa da coreografia embuçada para as mulheres. Sem saberem que deles é tanta a responsabilidade pelo auge que elas não alcancem.

A masculinidade tóxica é um sintoma da tremenda fragilidade dos varões que se passeiam ufanos das suas proezas que não passam do calibre do imaginário. Rejeitados por elas, ou pelo menos sabedores que elas não os avaliam como eles têm a certeza que devem ser avaliados, vingam-se dedicando o desprezo a quem está destinado a ser um ser inferior. 

Não dão conta que tanta prosápia, tanta arrogância, são o sinal distintivo de que eles é que são o autêntico sexo fraco.

13.9.24

Foragido (short stories #471)

Kidd Funkadelic, “Maggot Brain” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=3aAzdHnYfuk

          Penso rápido, que as cicatrizes não demoram e o vagar embota as palavras pendentes. Se não forem ditas, ficam sem testemunhas: ficam desertas. A aridez, por conta de quem as guardou por dentro e as deixou no friso do silêncio. Se forem vítimas dessa abstenção, nunca se saberá que curso levariam, que ondas de choque podiam causar se tivessem sido emancipadas dessa hibernação forçada. Penso rápido, enquanto verto uma casca de limão na água que repousa da fervura. Há pouco passei no mercado e as cenouras estavam perliquitetas, ungidas por uma cor avivada – houvesse conspiradores por perto e diriam tratar-se de uma propositada operação para dar lustro às apeácias. (Aposto que julgavam que a cenoura era um tubérculo.) Entre a multidão, uma mulher lia a bíblia perto de uma esquina movimentada. Tinha montado um púlpito devidamente ornamentado com os dizeres “ler a bíblia”. Ninguém parou para a ouvir. Nem com as promessas de paraíso se conseguem mercar almas para a coutada dos deuses. Parece que as pessoas acreditam mais na vida do que na morte. O paraíso e as juras de felicidade só ao alcance dos que chegarem ao céu é um logro: não há testemunhos válidos de que assim seja e, a crer nas escrituras, a vida terrena soa a castigo enquanto não se é encomendado ao exílio celestial. À falta de prova outra que não seja a crença nos dogmas (“a verdade”, insistia o padre na homilia aos desatentos), desautorizam-se os sentidos. Oxalá os desenganados não se atirassem de cabeça para charlatães que navegam na antítese dos curas de religiões variegadas. Deixem os vigilantes silenciosos em paz com a sua função. Não descuidamos os preparos metódicos, quase como se estivéssemos agrilhoados a uma superstição que ultrapassa as crenças pela esquerda. Depois, tudo se desmente (menos a superstição teimosamente não remissa). Parece que somos foragidos. E fugimos de nós mesmos.

12.9.24

Osso vaidoso (dá na pimenta)

Osso Vaidoso, “Elogio da Pobreza”, in https://www.youtube.com/watch?v=eA32AyqG9mQ  

Atordoado, patrocino a pele de galinha. Há aquele olhar que está virado para a transgressão – dirias, em jeito de memória futura, que está explicado porque viraste as costas às leis e ordenanças, um certo savoir-être com laivos de anarquia. 

Atordoado e, mesmo assim, penhor de uma bússola que certifica apenas os paradeiros em perda. Não se esperem localizações determinadas com precisão matemática. Não têm validade esses espiões disfarçados que querem saber de todos os paradeiros possíveis. Este é um deslugar que se desliga de pertenças, ou um lugar onde se açambarca a gramática da despertença. Um feixe de desacontecimentos – antes que se esgotem todos os “des” e o resto fique com a espessura de uma maionese deslaçada. 

Nem por isso renego o osso vaidoso, o ínfimo osso vaidoso que se esconde bem próximo do magma que hiberna como se fosse um vulcão adormecido. As juras latentes não passam de miragens que rendem o lugar da desesperança. Não são as manhãs sombrias que arrematam a amargura que rima com a deselegância do mundo. As manhãs são sempre a melhor elegia da noite que é sua véspera. Um encantamento que reabilita o horizonte entrecruzado nos dedos que desenham o dia vindouro. Às vinhas onde estagia o pensamento vou buscar as palavras que não se coíbem com a apatia. Aprendo que o dia vindouro não pode ser um presídio.

Não é imodéstia consagrar o osso vaidoso que descuida os preparos convencionados. Mantido sob a tutela apertada da discrição, ateia a combustão da pele que a reveste da indiferença necessária. Podem verter toda a pimenta sobre as feridas por cicatrizar; a tatuagem indelével, o recobro onde levitam as cicatrizes esperadas, cobre-se de coragem quando os dias se servem de contratempos. Empunho o espelho retemperado e escolho o tempo a preceito; não me deixo enfeitiçar pelas juras do futuro, o corpo ficaria amortalhado na semântica embuçada que arremata as palavras maçadoras.

Próximo do mais profundo magma, o osso continua vaidoso. Mas não digo a ninguém.

11.9.24

O bibliotecário das folhas outonais

Morrissey, “Everyday Is Like Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=hv8dhQkmZEo

O epílogo do Verão é sempre um achado. Prometem-se os dias sem o sol agressor, sem o suor a pastorear o cansaço do corpo, a chuva idílica, as primeiras tempestades outonais que se abatem com o vento iracundo de sudeste. 

As folhas das árvores começam a ficar caducas. Depois caem. Varrem o chão, entoadas pelo vento tempestuoso. Amontoam-se num descaro anárquico, colonizando passeios, jardins, sarjetas, os recantos mais escondidos, os vidros dos automóveis. Levantam-se numa coreografia avulsa quando o vento esbraceja, atirando-se ao acaso contra os rostos contrariados das pessoas que frequentam as ruas. O epílogo do Verão é a sua maior outorga. É preciso esperar pelos terminais dias de setembro para celebrar a maior proeza do Verão.

O bibliotecário das folhas outonais é tomado pela agitação, recolhendo amostras das folhas derruídas. Inventaria-as metodicamente, sempre que o Verão se liquefaz e o Outono ocupa o calendário na sua vez. É uma tarefa que muda todos os anos. Poder-se-ia pensar que não: a diversidade da flora é escassa, os compêndios ensinam que a folhagem de uma certa árvore obedece a um arquétipo. A quimera do Outono, que é todos os outonos perseguida pelo bibliotecário das folhas outonais, é registar as diferentes matizes das folhas caducas que num chão qualquer encontram sepultura. As folhas enrugam de maneira diferente, ganham cambiantes diferentes: os Outonos são como colheitas sempre diferentes. Deve haver explicação (científica) para a diversidade de amostras que o bibliotecário das folhas outonais recolhera estes anos cumpridos.

Com o seu critério metodicamente obedecido, regista as diferentes cores, as diferentes texturas, inventou uma escala para apurar o grau de senescência das folhas que se despenharam, deixando as árvores paradoxalmente despidas para aguentarem a estação mais severa. É uma empreitada solitária. Não tem correspondentes e não divulgou o seu labor. Não lhe importa saber se o seu espólio vai ser aproveitado depois de morrer. Inspirou-se na metáfora das folhas outonais: elas devolvem um esplendor inédito quando são acompanhadas pela decadência. Não se importam com o que sobra depois da sua extinção. 

10.9.24

O lugar onde não havia psicólogos

Radiohead, “Bloom” (from the basement), in https://www.youtube.com/watch?v=D2084nQbmvk&list=PLukmsaXDPJifXCo9iXVPnzlXJ5gP2V_Fs

Neste lugar não havia psicólogos. Ou os que há estão todos desempregados: este era um lugar que dispensou os psicólogos (e a sua ramificação dada às piores patologias da alma, os psiquiatras). 

Uns emigraram, partiram em demanda de lugares outros onde as pessoas são ensinadas a precisarem de psicólogos. Outros dedicaram-se a outras artes, numa obrigatória reconversão para não ficarem à míngua de recursos que pudesse comprometer a sua sobrevivência. Uns poucos entregaram-se ao ócio, usufruindo do subsídio de desemprego, entrecortado com biscates de diverso recorte; estes foram os que sempre recusaram as outras duas soluções, como quem evitava fazer concessões aos estudos em que tanto se empenharam. Estes seriam os que mais precisavam de psicólogos, se naquele lugar ainda houvesse psicólogos outros que não eles.

Este lugar dispensou os psicólogos porque as pessoas aprenderam, desde os bancos da escola, que as condições para não terem de recorrer a psicólogos partiam de dentro de cada um. Dependiam da sua vontade, da força mental interior, da capacidade para não treslerem condições pessoais, não se entregando a um suicidário exercício de angariação de angústia, melancolia e desespero. Quando esta tábua de salvação interior começou a ser ensinada nas escolas e pregada em casa, não foram os psicólogos que tiveram o encargo. As pessoas começaram a perceber que não precisavam de psicólogos. 

Os psicólogos quase foram a tempo de emendar a nova política. Reagiram com contundência, acusando os pedagogos influentes de serem responsáveis pela delapidação da saúde mental de gerações inteiras (e já contavam com as gerações futuras, adivinhando a decadência que lhes estava fadada). Socorrendo-se da argúcia típica do causídico mais palavroso, montaram cenários apocalípticos: se os psicólogos deixassem de ser precisos, as pessoas viveriam num lugar sorumbático e decadente, deixariam de confiar umas nas outras, e este seria um lugar onde os suicídios rivalizariam com os países nórdicos (ainda que por diferentes razões). 

O que nunca se soube é se esta argúcia retórica era apenas uma prova de vida para o futuro ou se os psicólogos estavam convencidos que dispensá-los seria um erro. Muitos, dos que observaram o fenómeno, inclinam-se para a segunda hipótese. Termos em que se concluiria que quem mais precisaria de psicólogos eram os psicólogos.

9.9.24

Já não há imperadores (short stories #470)

Gorillaz, Clint Eastwood”, in https://www.youtube.com/watch?v=1V_xRb0x9aw

          Ouviu a expressão “tirar o cavalinho da chuva”, era um possivelmente pai a informar o possivelmente filho que não havia cabimento a um possivelmente capricho. O petiz, esbracejando uma birra depressa extinta, engoliu a lava da má criação quando o pai dirigiu um olhar que entrou pelo seu olhar fundo. Fez-se silêncio, para agradecimento dos populares limítrofes que, mal o rapaz acentuou a curva dos decibéis ao abrir os pulmões em ajuda do berro misturado com pranto para ver se convencia o pai, as pessoas à volta logo dirigiram o olhar para a birra tonitruante. O rapaz deu conta, era ele no centro das atenções ali no centro da praça no centro da cidade, e toda esta roda gigante centrípeta foi o remédio suficiente para o silenciar. (Haveria de se confirmar, no devir que haveria de chegar, que o rapaz, já então feito homem de barba rija, detestava ser o centro das atenções.) Foi a atenção de todos os olhares à volta que convenceu o rapaz a “tirar o cavalinho da chuva”. É fresca a moda de não incomodar as vontades dos mais novos, sob pena de se declarar um choro com perímetro mundial e a poluição sonora se traduzir numa vergonha para os pais, nunca para os filhos que não se importam de flanar por tristes figuras diante do público. Dantes, as crianças não eram imperadores e imperatrizes. De acordo com este modismo hodierno, os mais novos depressa se investiram no papel de imperadores; e os seus pais, obedientes suseranos, condenados a pagar as vontades, caprichosas ou não, patenteadas pelos petizes. Naquele dia, ao dizer “tira o cavalinho da chuva”, aquele possivelmente pai repôs a ordem dos fatores. Sem chamar a si o estatuto de imperador (a monarquia caiu em desuso e os impérios ainda mais), devolveu o possivelmente filho à sua condição de filho.