29.10.21

Os desdentados são os que não mentem

BADBADNOTGOOD, “City of Mirrors”, in https://www.youtube.com/watch?v=JF072-87grI

Guardemos a porosidade das expressões que entram para o património do idioma. Depois, como falantes do idioma, somos seus tutores. Não questionamos expressões idiomáticas. Somos apenas os seus praticantes.

- Não sei dessa acrítica. As palavras valem pelo que trazem de intrínseco. Não são “verbos de encher” (para te fazer a vontade e empregar uma expressão idiomática). Não merecem ser arrastadas para o anonimato do tratamento.

Por essa ordem de ideias, hás de questionar tudo. Tudo será fonte da tua perplexidade. Uma perplexidade corrida a precipitação contínua, tantas as dúvidas que te assaltam.

- Para não ser um peão arregimentado nessa vacina de inércia, não uso expressões idiomáticas. Faço-as corresponder à banalização da fala. As palavras também tropeçam na armadilha do lugar-comum. Os fracos é que precisam de se agarrar aos lugares-comuns.

E como convives com essa dissidência?

- Não é mal que me apoquente. Uma dissidência assim terçada funciona como consolo. 

Não temes que te vejam como um enjeitado, um apóstata na sociedade que te acolheu?

- Não pedi para a sociedade me acolher. Confiro as regras de convivência, pois sei que a pertença, um módico de pertença que habilite uma existência sufragada pela serenidade, o exige. Nada disso colide com o pensamento insubmisso que se ajeita contra as palavras domadas por nomes sem rosto que ditam o seu significado. 

Desconfio que vives um sobressalto contínuo.

- Dou-te um exemplo: por que se determinou que os mitómanos precisam dos dentes para serem abjurados? Não é convenção dizer-se “mente com os dentes todos”? Como se fosse preciso os dentes para exercitar a mentira. Quem tutela a voz não são os dentes, é a língua e as cordas vocais alojadas na garganta. Pergunto se não faria sentido convencionar “mente com a língua toda”.

Fico admirado como consegues autopsiar as palavras que se amontoam numa frase. Nunca tal me tinha ocorrido.

- Porque te acomodas com as frases feitas e não interrogas as palavras que nelas se compõem. Mas não fico por aqui. Que dentes são propícios à mentira? Os dentes definitivos, que substituíram os dentes de leite que irromperam na infância? Excluímos as próteses que substituíram dentes entretanto apodrecidos? E os dentes arrancados aos maxilares, venais exemplos da dissimulação, perdem-se no lixo onde são depositados, como se, nesse ato, as mentiras neles contidas se evaporassem e deixassem de contar para as falácias que compõem as vidas de quem mente?

Tanta elucubração por um punhado de palavras! Se as palavras fossem seres animados ficariam estarrecidas com a tua minuciosa anatomização.

- Assim o crês? Cesariny teria escrito “no riso admirável de quem sabe e gosta/ter lavados e muitos dentes brancos à mostra” se se lembrasse que um mitómano mente com os dentes todos?

As palavras são maleáveis. Elas transbordam do seu sentido literal e ganham novos sentidos. As metáforas são o melhor processo de enriquecimento das palavras. Desapegam-se do seu sentido literal. 

- Se formos tementes dos mitómanos – porque a mentira só é descoberta (se for descoberta) depois de cometida –, o melhor é só confiar nos desdentados. Ao menos, esses não têm dentes para mentir. Os gurus dos serviços secretos deviam desistir dos testes de polígrafo; deviam ser dentistas a separar o trigo do joio. E um mentiroso profissional sempre pode disfarçar a sua condição se intencionalmente prescindir da dentição.

28.10.21

Às montanhas que parem ratos

Rodrigo Leão (ft. Kurt Wagner), “Who Can Resist”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZFmR3UWfbC0

Vós, montanhas, que afinal não sois seres inertes e muito menos estéreis, tanto que sois parideiras de ignóbeis ratos, ouçam o plangente apelo das pessoas de bem (e todos somos pessoas de bem, como mandam os cânones do otimismo antropológico). Ouçam o nosso pesar, que nos amordaçam em pesadelos infames em que ratos soezes corrompem a nossa serenidade.

Sabeis, ó montanhas não heurísticas, dos vossos contrafortes podiam ser paridas outras criaturas que não desaprouvessem tanto o imaginário humano. Não sendo o caso, os humanos, que apesar de serem estruturalmente dados à bondade conseguem afivelar o rancoroso projétil da vingança, cuidarão de em vós pespegar o rótulo da ignomínia. Pois sois vós, montanhas teimosamente mães de vis ratos, a contaminar o palco imaginário em que lobrigam humanos tão adeptos da bondade e cultores de uma estética. 

Sabeis, montanhas genesíacas, que os ratos são criaturas pestilenciais. Como podeis ambicionar a ser cantadas por vates enamorados das paisagens bucólicas se vos são imputados partos de ratos morbígeros? Não dais conta da contradição em que vos encerrais, ó montanhas que capitulais nesta dobra insensata? Não fosse serem parideiras de ratos e serieis a causa de uma provável loa tecida por humanos que se deporiam aos vossos pés, tanta a beleza que de vós irradia. 

Podeis contrapor, em defesa da vossa honra, que vós, montanhas afinal matéria inerte, fostes arrastadas para este opróbrio à revelia da vossa vontade. Uma indagação não exaustiva desalfandegará conclusão lapidar: foram humanos que inventaram a expressão idiomática, ou a metáfora sanguínea, que vos cola à pele o ultraje de serem as mães de infaustas criaturas como o são os ratos. E quem dá à luz criaturas deste jaez delas não se distingue: vós, montanhas, serieis tão deploráveis como os ratos de que sois parideiras. O que é uma manifesta injustiça – argumentais em vosso favor. Pois não foram tidas nem achadas na tecedura da metáfora. 

Endossais, pois, as culpas a quem teceu semelhante metáfora. Afinal, os humanos podem não ser credores da infinita bondade que se autoatribuem. Ou a bondade é, afinal, finita, e a indiligência humana com as metáforas é seu pergaminho.

27.10.21

Devoluto

No Words Left, “Because of Ghosts”, in https://www.youtube.com/watch?v=DSQZtk7hsec

Não é por esta circunstância que devolvemos o grito fundado à gruta de onde se sublevou. As vozes não são para serem caladas. As vozes falam. Esse é o seu destino. Não queiram que sejam as mordaças a bordar a bandeira que desce o silêncio sobre todos. Não queiram que as pessoas sejam a sua própria intimidação, castradas no povoar dos sentimentos que as habitam como um caudal irrefreável.

Não são as contradições que lesam o direito de considerarmos as circunstâncias. Não se pode estorvar os julgamentos, por mais obnóxios, ou absurdos, ou militantes de um qualquer bolçar. Os eruditos protestam contra o acesso universal à opinião e como ela se banalizou sob o disfarce da democracia. Os eruditos sempre conviveram mal com a concorrência. Até com a concorrência que, por manifesta incapacidade, não chega a ser concorrência. Deixemos os eruditos nas suas torres de babel. Viremos a página.

Os contratempos adejam com a coreografia apascentada pelo vento. Não se anunciam no tempo vindouro. Esbarram nos corpos que se fingem contrafeitos. Se o contrabando não fosse um disfarce sem bússola, dir-se-ia que servia ao propósito de aplacar os contratempos. A ser assim, seríamos devolutos numa cidade rasurada pelo medo, numa cidade viciada pelo futuro sem procuração. Mas não somos assim. Insurgimo-nos contra a devolução aos lugares que se enciumaram contra a nossa vontade. Afirmamos a vontade como um império insubmisso. E terçamos as armas necessárias contra os patíbulos que se insinuam no céu toldado.

À corrupção das almas dizemos não. Um não contundente. Não queremos ser caiados pelos prefaciadores da usura que rima com os tempos que receberam a bênção dos bispos dominantes. Não queremos os maestros que usurpam as vozes e as tomam como prova viva da sua. Esses regentes, convencidos da sua predestinada condição, destinamo-los à devolução aos corredores estreitos onde habitam os que os querem saber como gurus. 

Nós não precisamos de arietes que se fazem passar por porta-vozes das vozes que nos contrabandeiam. Nós só queremos que não tenham a veleidade de a nós se sobreporem, tingindo a nossa vontade com a sua arbitrária vontade. Queremos fugir para um ermo lugar, de onde não haja ecos, sequer, da sua existência. O exílio interior, marca indelével da nossa condição.

26.10.21

Não usarás bigode aristocrático (pela integridade da tua higiene)

Parquet Courts, “Homo Sapien”, in https://www.youtube.com/watch?v=-AcXjhA0zlI

Alguns diziam que tinha parado no tempo. Outros, que viva perdido num pretérito já remoto. Diziam-no por causa da pose aristocrática (e do indeclinável apoio às monarquias deste mundo, ele que tão contristado estava porque o seu país, outrora uma monarquia pujante, primeiro deixou de ser pujante e depois também deixou de ser monarquia). 

Da pose aristocrática fazia parte um bigode farfalhudo que cultivava com diligência. O bigode contorcia-se na extremidade, dobrando-se para o interior, ficando os pelos terminais a adejar sobre o corpo principal do adereço facial. As extremidades quase caíam sobre o corpo principal do bigode – e isso só não acontecia porque ele tratava-o meticulosamente, aparando-o quando os pelos terminais já quase roçavam o corpo principal do bigode. Ostentava-o, com garbo. Sabia ser uma imagem de marca que os adversários ideológicos não só não envergavam como até repudiavam. Esse ostracismo era, para ele, incentivo habilitante. 

Como se considerava uma boa (e devotamente católica) alma, o aspirante a aristocrata praticava bondade social com regularidade. Ajudava na distribuição de mantimentos aos sem-abrigo, instruía os petizes nos meandros da bíblia e era voluntário em campos de escuteiros. Era uma obrigação social a que, enquanto bom candidato a aristocrata, não podia menosprezar, ainda que o sacrifício que procurava esconder nas águas-furtadas do pensamento pudesse revelar o contrário. Os aristocratas modernos têm de se pautar pelas modernidades que a sociedade congemina. Por muito que a convivência com os súbditos causasse engulhos (apenas interiores, contudo).

Um dia, num acampamento de escuteiros, um grupo de estroinas esperou que o aristocrata instrutor recolhesse à tenda para pôr o sono em dia. Esperaram que o aristocrata caísse no sono profundo, o que não seria difícil de comprovar devido ao conhecido ressonar que troava nas imediações da sua tenda. Mal o silêncio da noite começou a ser entrecortado pelo ressonar do putativo aristocrata, os galfarros abriram o fecho da tenda com zelo silencioso e entraram nos aposentos. A partida estava prestes a ser cometida: um deles, usando luvas que a cozinheira tinha de usar para confecionar o rancho, besuntou as extremidades do bigode do aspirante a aristocrata com os dejetos ainda mornos que um deles propositadamente preparara para o efeito. Terminada a embaraçosa operação, escapuliram-se entre risadas que mal conseguiam travar.

Na manhã seguinte, o aristocrata acordou cercado por um odor nauseabundo. Procurou e procurou nas imediações da tenda, não fosse um dos petizes ter-se servido dos arredores da tenda para se aliviar de uma diarreia que não teria ido a tempo da improvisada casa-de-banho. Não descobriu a origem do cheiro pestilento. Só ao pequeno-almoço, entre as risadas indisfarçáveis dos adolescentes escuteiros que se intercalavam com um esgar de desprazer motivado pela exportação do odor merdificado, o aristocrata instrutor descobriu o que fora feito ao seu bigode.

O homem nunca mais foi o mesmo. A vergonha ditou um exílio voluntário por uma larga temporada. Quando voltou a ser visto em público, já não trazia o bigode excêntrico como marca registada. E, diz-se à boca grande, abdicou das pretensões aristocratas para se dedicar à luta da classe operária através da militância num partido exíguo que era das poucas reminiscências do Verão quente de 1975. As pretensões aristocráticas emudeceram com o bigode extinto. 

25.10.21

XXL, ou a mania do gigantismo

Lambchop, “Up With People”, in https://www.youtube.com/watch?v=M4PxY_RPBeM

A prodigalidade dos paradoxos: os modernos tempos desprezam a obesidade e escarnecem das roupas adamastores; e, todavia, o princípio geral do ensimesmar manda obedecer à ideia de que se é peça única quando o cotejo com os demais vem ao de cima, numa exacerbação do eu que o faz centrípeto e opado. 

O empolamento gravitacional não quadra com a humildade que os tempos arcaicos, de inspiração metafísica, traziam como exemplo. Pode ser a vingança do eu moderno sobre o eu castrado que outrora vivia enfeudado aos dogmas e às determinações da igreja. Não deixa de ser uma contradição insanável: como o eu é levado pelos modismos a verberar os corpos de volumetria excessiva, num arremedo de racismo hodierno, e depois o mesmo eu é fautor da sua própria inflação, aparecendo como um eu disforme, morbidamente obeso, num espelho que amplia a estatura do eu ganancioso. O eu é tão parcial que não se reconhece adiposo; os outros é que o são e, enquanto tal, são seres risíveis.

O hedonismo dominante não parece um mero incidente. É preciso esperar que o tempo se sedimente para avalizar uma observação descomprometida (o que não acontece agora, quando estamos imersos nesse hedonismo). É preciso saber esperar para emoldurar uma tendência reconhecida. Por enquanto, o ensimesmar compromete o desprendimento do eu que era ditado pela igreja e depois instruído pelos novos gurus que queriam fabricar o novo homem novo. Contra as tendências de outrora, o eu sacraliza-se. Torna-se o deus de si próprio, ponto de Arquimedes que julga ser independente dos pontos de Arquimedes que são a bússola dos outros. Como se as vidas fossem ilhéus sem correspondência entre si, fechados num casulo, impenetráveis.

Nesta moda decadente, todo o eu é o astro solar de que dependem os demais, apenas seus satélites. Será apenas o princípio geral de uma autofagia com contornos medonhos, pois cada eu centrípeto esbarra nos tantos eus centrípetos que não se demovem da sua condição. Uma batalha de desiguais que não o são. Entretanto, eus destes agigantam-se numa obesidade mórbida. Por mais que questionem o espelho (já não, como dantes, em demanda da confirmação da beleza, mas como verificação da sua sacralidade), não percebem como o espelho é um antro de mitomania: disfarça a estatura dos autoconvencidos, pesando-lhes o logro da elegância quando eles já deixaram de caber dentro de si.

22.10.21

Piloto automático (a balsa do nevoeiro)

Bonobo (feat. Jamila Woods), “Tides”, in https://www.youtube.com/watch?v=PctUKuCVCD8

Procuro o mapa como quem tem sede do tempo. Sob o olhar, na penumbra que dele se esconde, está inscrita uma lei de bronze: já não é preciso um mapa. Os tempos avivam uma historiografia diferente. Em surdina, uma voz preenche o espaço, dizendo: tens de apanhar o comboio da tecnologia.

O mapa era um romance artesanal dedilhado pelos dedos, perscrutado pelos olhos ávidos de novas geografias. Num mapa continha-se o labirinto das estradas que se entreteciam nos dedos, como se fosse possível as mãos serem tutoras de todas as estradas. Se em vez de um ermo houvesse a diligência do olhar, os mapas eram trazidos à colação. Ninguém achava um lugar demandado se não houvesse um mapa por perto.

Hoje até os aviões voam sozinhos. Os carros levam ao destino pela voz feminina que se esconde no utensílio que substituiu os mapas. Hoje, somos cada vez mais autómatos. A vontade desprende-se da sua órbita, enquistando-se na vertigem da inércia. Somos educados para aplaudir o que a tecnologia faz por nós, todos aqueles papeis em que deixamos de ter um papel porque a tecnologia inventou um meio de ocupar o nosso lugar. Somos treinados para aceitar que o marasmo tome conta de nós sob a forma do conforto que a tecnologia supõe. Acabamos reféns de uma inércia que nos devolve a um arcaico lugar.

Hoje, os aviões quase aterram sozinhos, mesmo que esteja um nevoeiro que embacie tudo. Hoje, vamos para uma balsa e não temos medo que o nevoeiro que tomou conta do rio seja o presságio da catástrofe. Os instrumentos navegam por nós. E nós somos cada vez mais agentes passivos neste processo. Desabituamo-nos de sermos o que éramos, talvez já formatados para usufruir as vantagens da tecnologia, sem darmos conta da metamorfose. Não precisamos de ser diligentes. 

Dirão, contra o diagnóstico pessimista: a tecnologia é obra da mão humana. Não há tecnologia que se invente a si própria. Quando tiramos partido da tecnologia, exercemos a diligência que gente como nós teve para dar um salto no tempo através do avanço da tecnologia. Do processo resulta o hipotecar da autonomia das pessoas. Por muito que a sua qualidade de vida melhore à mercê da tecnologia que avança, inexorável (ao que parece), faria sentido sermos inquisitivos para perceber se a mão dada pela tecnologia traduz uma melhoria da qualidade de vida. Falta sopesar o que se perde no processo para aferir o resultado final.

21.10.21

Caso único

The Cure, “Pornography”, in https://www.youtube.com/watch?v=8904LrXrtWo

O artesanato singular cola-se à pele como cimento intangível. Como se fosse uma marca registada, tatuada com a brutalidade dos contratempos. Não se foge deles. Assomam contra o corpo como uma maré-viva que toma conta do areal naquela parte que costuma estar a coberto do mar. Ainda assim, diz-se ser um caso único, que irrompe na sua singularidade entre a indiferença.

Os costumes quase valem como leis. Como comodato de um conservadorismo que coloniza o espaço em redor, mesmo que muitos dos atores se revejam numa vanguarda qualquer. Agarram-se aos costumes porque os costumes são confortáveis. Dispensam as interrogações – e as interrogações são aquele lugar incómodo que obriga a ativar o pensamento, numa vigilância metódica. Um caso único furta-se à tirania dos costumes. Por dentro da sua rebeldia, diverge dos costumes. Se lhe forem impostos, subleva-se contra os costumes. Prefere ser o fortuito amparo de ninguém.

As vigas reforçadas trazem o ferro fundido para empossarem os alicerces. A sua reputação é incontestável. Sem eles, as pessoas não tinham azimutes e perder-se-iam, errantes. Seriam como náufragos a dar à costa sem saberem do seu paradeiro. A causa das coisas não se alimenta de pesares ou de semelhanças cabalísticas. Façam-se as perguntas que tomarem conta do peito, as perguntas que contêm a sua própria voz. Não interessa saber se são as perguntas certas. Ninguém saberá ao certo se uma pergunta é acertada – ou como definir uma pergunta certa. 

Se for preciso, que se alistem no grupo dos párias, onde são acantonados os que não seguem os costumes. Não haja pudor em admitir que se é caso único. Salvaguarde-se que a singularidade do caso não se confunde com um ensimesmar. A deriva narcisista não quadra com o reconhecimento de um caso único. Não são precisas sentinelas a tutelar o pensamento, impedindo-o de se curvar perante a inércia. 

A alma desembaraça-se das suas prisões mentais. Tanto é suficiente para bordar as costuras que delimitam a singularidade. O demais fica por conta do avulso que for o idioma da superfície. Não se antecipem esses alinhavos, que a empreitada esbarra na natureza do avulso. O que conta é deixar a alma por sua conta, desalfandegada de estribos que limitem a sua ação. Caso contrário, ninguém é um caso único.

20.10.21

O que foi feito do saco de caldo-verde?

Hanni El Khatib, “Fuck It. You Win” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=QqsqsEWYm4I

Mote: Marcelo lanchou em casa de antigo sem-abrigo e até recebeu um saco de caldo-verde.

Um regente é popular quando desce dos tamancos e se mistura com o povo. Quando de si cunham a imagem que é apenas um entre os demais, como se ele não fosse o seu máximo representante. Em tempos de ditadura da igualdade (todos somos iguais; e, não sendo suficiente, todos temos de ser iguais), a fronteira entre as duas condições torna-se fluida. O regente não deve assumir o pedestal, vincando a distância inacessível perante os representados; mas até os ideólogos da igualdade sem fronteiras admitirão que a banalização da sinecura leva, pelo menos, com o adjetivo da artificialidade.

O regente deve ser a pessoa mais feliz com o levantamento da quarentena e das restrições que travavam o passo ao contacto mais próximo com o próximo. O açaime ainda resiste quando a proximidade é excessiva, nas ruas ou nos espaços fechados onde acontecem cerimónias presididas por sua excelência. Mas já é possível a convivialidade que desmata a solenidade das funções, como se o regente despisse o fato e gravata e vestisse o fato-de-macaco de operário ou envergasse a esfregona (para render homenagem a outro imperativo categórico corrente).

O que fica por saber é o que se esconde nos bastidores das imagens sufragadas pelo público. Como está escondido pelo véu próprio dos bastidores, e a menos que um membro da entourage escorregue para uma inconfidência, o resto fica por conta da especulação. Sua excelência exultou de contentamento porque um homem que conheceu como sem-abrigo já tem casa. Ninguém ficará indiferente à melhoria das condições de vida do homem. Que o episódio seja narrado na comunicação social com a habitual teatralidade de sua excelência, também não é novidade. A imprensa gosta de espetáculo e sua excelência oferece-lhes o plateau, o enredo e a sua pessoa como ator principal. É o melhor dos dois mundos (para esses mundos assim misturados, como se fossem um bolo mármore).

O que ficou por saber foi o destino do caldo-verde. Mandam os costumes que não se nega, nem se transvia, uma prenda. O humilde gesto do homem que foi sem-abrigo não caiu em saco-roto. Pelo menos na imprensa, que vai no engodo da reconhecida espetacularidade do regente que adora passear a imagem da sua popularidade entre as gentes. Terá sua excelência levado o saco de caldo-verde para casa? Esta seria a investigação seguinte a cargo da imprensa tão propícia ao acessório. 

Como é de especulação que se trata, junto umas colheradas para a encenação. Ao entrar na limousine, sua excelência terá ordenado ao ajudante de campo para: (i) entregar o saco de caldo-verde na primeira instituição de caridade pelo caminho; (ii) levar o saco de caldo-verde para o palácio e oferecê-lo a uma das cozinheiras; (iii) “ó homem! Quero lá saber o que vai fazer com esse caldo-verde”; (iv) deitar ao lixo, em não sabendo dos antepassados de higiene do saco de caldo-verde, correspondendo aos seus pergaminhos de hipocondríaco. 

Fica ao critério do leitor.

19.10.21

Vindima

Max Richter, “Haunted Ocean”, in https://www.youtube.com/watch?v=1UuxUMF7dpI

As mãos jogam-se ao acaso. Colhem os frutos maduros e esbracejam a favor dos deuses que foram tutores da safra. As mãos não se cansam, nem em jornadas contínuas que unem a alvorada com o entardecer, como se não houvesse tempo de permeio. Nem os calos que se constituem seus mapas hasteiam a dor que podia contrabandear a vontade. As mãos perseveram e com elas nasce um rio de rostos marejados na colheita esperada.

Pelo meio, umas quantas vozes; os detentores das mãos não são reféns do silêncio. São essas vozes que matam o silêncio, apenas interrompido pelo sibilo das abelhas que acompanham a vindima à distância. As palavras sobem os socalcos e embebem-se na árvore centrípeta que parece um pelourinho, encimado. O pelourinho só aparentemente é feito de granito; uma inspeção meticulosa revelaria todas as vozes arquivadas que erigiram o pelourinho, dando corpo aos socalcos que desenharam a paisagem. O cadastro de todas as mãos arquitetas de tantas colheitas.

Os corpos não sentem a estafa. Não quebram, nem quando um sol enciumado se vinga neles, inaugurando um caudal de suor nas suas peles. Eles afastam o suor que escorre pelo rosto num movimento espontâneo, enquanto um esgar disfarça o incómodo. Não será a canícula encomendada pelo sol enciumado a derrotar os corpos que se fundem com os socalcos. Como em tempos imemoriais, quando corpos frágeis derrotaram o xisto da paisagem e lhe conferiram um rosto aformoseado.

Ao anoitecer, na adega, inventaria-se a jornada. As vozes são aprazíveis. Combinam nos versos rudes que rimam com as mãos ásperas, com as rugas que são a identidade dos rostos adulterados pelo sol e pela estafa. Mas ninguém se lamenta. Ninguém intende a angústia entre as sílabas magoadas de tantas jornadas indúcteis. 

Nas lonjuras, da geografia e do tempo, em que fidalgos haverá no deleite dos néctares dali colhidos, não farão eles ideia dos sacrifícios silenciados que se somaram a favor dos seus prazeres. Nem aquelas vozes e as mãos sábias que colhem os frutos maduros reclamam outro patamar. Preferem a indulgência do silêncio e do anonimato. Estes são os socalcos que lhes emprestam vida. E eles sabem que não é a vindima o juro maior que pagam na usura das vidas sem remédio. 

18.10.21

As bruxas só existem se forem faladas em espanhol

Trentemøller, “All Too Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=QcJUapt-IdA

Não se invoquem as bruxas de ânimo leve. No santuário das superstições, tudo é regra para fundamentar um malogro ou uma incapacidade, ou apenas o apelativo culto da evasão da responsabilidade. É como se os mesmos fossem endossados, sem aviso de receção, para o altar onde as bruxas confecionam invasivos castigos que são a punição que se abate sempre sobre os injustiçados.

Mas as bruxas não são um escapismo tão simples. Elas só falam em espanhol, a crer no adágio confessado pelos céticos, que admitem a sua bipolaridade (não acreditam em bruxas, mas elas existem). E servem-se do castelhano para darem corpo à esotérica desconfiança que apenas serve de véu para ocultar uma crença.

Podia-se alvitrar que os ambivalentes que não acreditam, mas acreditam, em bruxas murmuram em espanhol não vão as bruxas hibernadas ouvi-los. Partem do pressuposto que as bruxas nacionais não conhecem o idioma castelhano, mantendo-se dormentes no seu casulo até serem despertadas para a maldade vulcânica que distribuem sem contemplações pelos destinatários escolhidos ao acaso. 

Ou então, elas são nascidas e criadas em Espanha e quem, em surdina, confessa a sua dividida opinião sobre a existência de bruxas, serve-se do castelhano para as despertar da letargia. O que vai contra as convenções. A expressão idiomática, que é lusitanamente idiomática pedindo de empréstimo um idioma não nativo (talvez outra manifestação esquizofrénica), ensina a proclamá-la para afugentar as bruxas e bruxedos que possam semear uma dose de desdita. Mas talvez seja o oposto: quem o enuncia está a convocar as bruxas. Estas, só capazes de entenderem o idioma de Cervantes e seus descendentes, acolhem o chamamento e socorrem a superstição do proclamador. 

A contradição de termos por nomear bruxas depois de ter começado por declarar que não se acreditava nelas é um prudente ato de superstição. Não admitem o poder transformativo de uma mezinha, mas ficam de pé atrás e não negam a possibilidade, só para não serem as vítimas de um mau olhado. Não são supersticiosos, que até fica mal admitirem-no, eles que são tão eruditos e a superstição é para os fracos de espírito. Mas também navegam no lodo da superstição.

15.10.21

Vírgulas fora do sítio (short stories #364)

Depeche Mode, “Useless”, in https://www.youtube.com/watch?v=U2Kyu4XURaE

          Não era o nevoeiro que tomara conta da manhã que embaciava a lucidez. Eram as reservas mentais que se abatiam sobre o dia frio, prolongando-o na sua inércia. Dessa languidez não se retiravam ensinamentos, a não ser que o corpo se entrega a uma ausência que parecer ser heurística. Dias há em que a única empreitada é fazer nada. O que houver por cumprir fica adiado. Todos temos direito a um dia de ausência. É como se nesse dia estivéssemos temporariamente suspensos do inventário das almas e nos fosse dada a possibilidade de sairmos de nós para nos vermos, para vermos tudo o demais, a partir de uma cumeada. Nesse dia, as vírgulas são desarrumadas com o consentimento de quem as tutela. A gramática fica sujeita a regras novas, regras ditadas pela vulnerabilidade das almas desapossadas de um dia. Poderá alguém protestar que não devíamos ter o direito de procrastinar um dia, pois todos os dias são bens preciosos pela sua escassez. (A vida, por mais longa que seja, é sempre escassa.) Poderá esse alguém convocar o lugar próprio da gramática, sem se exilar num lugar que se esvazia por dentro dos lugares que são dados a conhecer. Concluirá que as vírgulas não têm direito a uma arrumação avulsa. Elas sujeitam-se às regras. Tudo se sujeita às regras. As poses postiças de quem se disfarça numa ausência retórica revertem a desfavor de um fingimento sem serventia. Haja quem contraponha: fazemos do tempo o que a nossa vontade determina e não são as vontades alheias que ditam as regras para consumo próprio. Até quem execra as vírgulas fora do sítio pode reivindicar a seu favor um tempo de exceção, ou um não-tempo (ou um tempo por fora do tempo como o sabemos), só para experimentar as vírgulas fora do sítio. 

14.10.21

Marca registada

Bonobo, “Rosewood”, in https://www.youtube.com/watch?v=o86icu6iI2U

Esta é a minha pele. O seu sal, único. O sangue que corre em ebulição, mesmo quando o sono habilita a hibernação e suspende o tempo, irrepetível. Estas são as minhas cicatrizes. Um modo de ostentar as feridas de outrora, ou apenas uma mnemónica que coloniza o tempo vindouro. Uma marca registada, inconfundível. 

Todos somos inconfundíveis, portadores de uma marca registada, exclusiva. É o que determina a irrelevância da marca registada de cada um. Não se imagina a necessidade da diferença sem justificar como somos, à nossa maneira, peças únicas que coabitam no universo feito da semelhança. Apuramos os sentidos no caudal por onde somos testemunhas da nossa carne inconfundível. 

A marca registada transporta o selo da genética. Sendo úberes da semelhança (enquanto espécie), somos embaixadores dos atributos que são matéria exclusiva do nosso ser. Há quem confunda os termos da equação e preconize a aglutinação de todos nós sob o chapéu protetor do grupo. Supõem que o que nos distingue é uma minúscula gota de água no vasto oceano onde reside a espécie. Tendem a desvalorizar a marca registada que é a voz única de cada pessoa. Talvez o façam por esquizofrenia, pois não entendem a dicotomia entre a singularidade de cada um e a sua pertença a um grupo. Presos a um erro de raciocínio, condenam o ser pela sua exiguidade, forçando-o a atuar sob os auspícios de uma vontade coletiva que é tão difícil de apurar. Fingem não saber da singularidade que nos distingue de todos os outros. Fingem ocultar a validade da marca registada tatuada na pele de cada um. 

Sobre o seu olhar deita-se uma noite que se tresmalha, a negação do que neles se exprime na mesma medida em que o desvalorizam quando atestam a supremacia do grupo. Por mais que sejam forjadas identidades que sublimem a pertença ao grupo, não se sabe das marcas registadas que sejam sinónimos de grupos.

13.10.21

Comprador de milagres

The Rapture, “Sail Away” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=BpYUiJO8jTU

O mundo não acaba. A noite não povoa a pele com pesadelos arrepiantes. As palavras passaram a ser mais importantes do que (ó modismo irritante) os algoritmos. E o mundo é que não acaba, contra as notícias, infundamentadas, das profecias que semeiam apocalipses. As pessoas habituam-se a sê-lo. Continua tudo como dantes.

Contra as piores desesperanças, uns vultos acordam maldispostos e colhem do futuro ventos sorumbáticos que prometem más sementeiras. As pessoas amedrontam-se: enquanto os regentes, na sua melhor política de RP, ajuramentam tempos que são melhores quando vierem emparelhados com o futuro (mas “o mal é que o futuro nunca mais chega”, na voz seca dos escorraçados), os vultos teimam em ser agentes a soldo de distopias que açambarcam o futuro. E ele continua a dizer que o mundo não acaba. 

(Murmurando logo a seguir, sem que ninguém o ouça, que o mundo não acaba pelo menos enquanto ele puder testemunhar a favor do mundo.)

Os vigilantes estremunhados podem fingir que não se cansam. Pousam os cotovelos na madeira gasta que habilita a varanda do alpendre e escutam as vozes da paisagem. Sabem que a paisagem é a caução do mundo, o seu melhor rosto. À sua volta, as pessoas não se deixam hipotecar pelas persistentes notícias do mundo enlutado, ou dos maus hábitos que se saldam pela adulteração dos procedimentos ensinados pelos profetas da boa diligência. São compradores de milagres, mas não ostentam a condição.

Se ao menos se soubesse inventariar o chão minado, seria mais fácil acordar para as manhãs sucessivas. E ele diz, insistentemente, “o mundo não acaba”, muito embora esteja colonizado pelo que os profetas da boa graça apelidam como “maus exemplos” (sem alguma vez dizerem o que é um bom exemplo, só para termos os termos da comparação). O chão minado só é problema depois de detonadas as minas. Até lá, finge-se que o chão não é tutelado pelas minas. 

Os compradores de milagres parecem anestesiados. Só acordam da anestesia quando uma parte de si é expropriada pelas cicatrizes que o futuro teima em deixar, quando chega a sua vez. Talvez por isso sejam compradores de milagres.

12.10.21

Só as mentes pequeninas é que indagam sobre os que são maiores

David Bowie, “Absolute Beginners”, in https://www.youtube.com/watch?v=iCJLOXqnT2I

O plumitivo perora na televisão, cheio de certezas e com aquela pose ostensiva de quem sabe ser tutor de certezas muitas e incontestáveis. Sentencia: a banda x era a maior do mundo, mas agora está em decadência; à qual não será alheio o envelhecimento e, talvez, a fadiga e uma crise de criatividade dos músicos. Prossegue o julgamento: a banda x vai perder o lugar cimeiro para a banda y.

Que ao plumitivo não seja dado considerar que na música (e nas artes, em geral) a subjetividade mata à nascença qualquer imperativo categórico, não causa surpresa. Se o plumitivo se dá a conhecer pelas suas opiniões vinculativas, pela contundência do bolçado para consumo da audiência, sempre naquele jeito autoconvencido de quem sabe estar a falar de cátedra, não é de estranhar que ele torça (ou ignore, melhor dizendo) a inata subjetividade das artes e dogmatize com a chancela de quem aniquila a subjetividade interpretativa das artes (pelo menos, de toda aquela subjetividade que não estiver em concordância com a dele).

Esta é uma tendência que abona as almas pequeninas. Como são pequeninas, precisam de enaltecer a grandeza dos que, aos seus olhos, grandes são. É a compensação da sua pequenez. Como se, ao atestarem a grandiloquência dos grandes, estas almas pequeninas se escondessem do que são, furtivamente sonhadas na grandeza que em sonhos desejariam ser. 

O seu subjetivismo objetivo só os vincula a eles mesmos. Para bem de todos nós, e da espécie humana em particular, a subjetividade das artes não é hipotecada porque uns pacóvios decretam sentenças que a adulteram. E o pior é que, de tão apedeutas serem, estas almas pequeninas nem percebem que chegaria uma breve declinação nas frases sentenciadas para não caírem no logro do subjetivismo objetivado: era só complementarem a sentença com o humilde “na minha opinião” (des-sentenciando a sentença).

Mas as almas pequeninas nunca conseguem percebem o nanismo do casulo em que lobrigam. Até porque os grandes não precisam de se exibir como tal. Sabem que são grandes. O demais silêncio é a manifestação mais produtiva da sua grandeza. Admite-se que eles dispensam as almas pequeninas como suas embaixadoras. Ninguém lhes encomendou a incumbência.

11.10.21

Desta alma que na dor se não consente (short stories #363)

Rodrigo Leão, “O Método” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=YYb2bIS-HDo

          Não é no sobressalto que se firma o húmus. A lucidez amarrota-se em teimosias várias, enquanto a pele entardece nas rugas que sinalizam a senescência. Porém, a alma fala mais alto. Alteia-se no miradouro onde todas as luzes se condensam. Estilhaça todo o mal que a procura como enseada. Não colhem as malfeitorias que ninguém pode jurar não terem sido cais. O consentimento só se apalavra no avesso dos contratempos afivelados numa má estação. Os pútridos lances não vão a jogo no leilão a que se deitam as almas. Para além dos labirintos, marejam os pesares inúteis que querem quadrar com o arrependimento. A alma cresce em força e murmura, repetidamente: o arrependimento é um pálido esteio; o arrependimento não se ensaia a não ser nos bocejos de decadência que ascendem desde um lugar recôndito. Em vez da lava diletante, a pele serve-se de tatuagens embebidas nos poemas ao acaso. Diz-se: um poema sempre é um poema – como se fosse a caução do que aparece inscrito na pele tatuada, o salvo-conduto que desaprova as superstições e os maus olhados que elas ousam combater. Estas são as almas sumptuosas, um barroco estar que não se alinhava pela jugular da simplicidade. Este é um palco onde se entretecem almas contínuas num consulado complexo. Não venham os gurus das coisas fáceis desmatar uma retórica esgotada. Desenganem-se, os gurus e quem os segue. A alma que é império de si mesma contém as estrofes que são pedras preciosas à procura de um paradeiro. A alma é esse paradeiro. Não precisa de inventariar muito mais, para além dos amores que se estimam como desmentidos da angústia. Não é uma alma escapista. É o verbo generoso que desautoriza as dores interiores. Seu é o consentimento para a diligente rosácea da vida.

8.10.21

Nunca dizemos adeus

 

Mogwai, “Ex Cowboy” (live in Sydney), in https://www.youtube.com/watch?v=JZORIYbiXcY

Nunca dizemos adeus. Nunca nos é dado o tempo certo para sabermos quando dizer adeus. Ou não há sequer um tempo certo para um adeus. Ou então, tememos os efeitos sísmicos de um adeus. Um rosto que não volta a ser visitado. Uma presença que se torna um eclipse perene. Ou a morte de um dos intérpretes do adeus de que se foge para dele não termos de fugir.

Nunca dizemos adeus e, contudo, não podemos atestar que um lugar visitado, um disco, uma página, um quadro, um filme, um poema, não voltam a ser palco para o nosso estar quando o futuro for desembainhado. Não dizemos adeus porque um adeus é sobre o definitivo e nós não queremos saber das costuras do definitivo. Devolvidos ao lugar presente, no miradouro de onde não temos vista sobre as marés vindouras, somos censores voluntários do adeus que se congemina. Calamos o adeus, não possa ele, possuído pela insubmissão, sobressaltar o nosso estar.

Nunca dizemos adeus porque nos situa num tempo de que não queremos ser mecenas. Pois o adeus confirma uma extinção e a extinção é o recordatório da efemeridade que nos assalta desde o fundo dos mais fundos pesadelos. Recusamos esse labiríntico pesar que nos consome o sangue são. Não queremos saber das derradeiras existências. Elas são o avesso da nossa finitude. 

Não dizemos adeus porque acreditamos que as portas ficam sempre abertas e podem ser franqueadas a qualquer momento. Um adeus encerra uma definitividade assustadora. Se levássemos a peito cada adeus que entoamos, era quase como se nos enlutássemos de cada vez que a palavra ecoa nas nossas bocas. Merecemos melhor do que um luto constante. O luto é a negação da vida. O adeus furtivo desmata um fingimento de que não nos exilamos. Um fingimento que disfarça a negação que nos consome, a negação de ver o tempo que nos pertence como matéria finita. 

Fugimos do adeus como fugimos da morte. Ou disfarçamos o medo do adeus pelas causas semânticas que são a ossatura da palavra. Nunca dizemos adeus porque o ateísmo, e o rigor semântico, nos impede de encomendar o que quer que seja a um deus sem existência. 

7.10.21

Intendência do mundo audaz

In "Festival – New Directors New Film Festival", in https://site.fest.pt/pt/

O homem seguia a eito pela larga planície em direção à montanha. Carregava a tiracolo uma espingarda e levava uma criança pela mão. Seria seu filho (pense-se desse modo, especulativo, para conveniência das deduções). Caminhava, resoluto, às vezes quase arrastando a criança atrás do seu passo acelerado. O céu plúmbeo insinuava uma tragédia por acontecer. O homem só era visível de costas. Não estava disponível a sua versão facial para se tirarem conclusões (ou especulações) sobre a representação fermentada no rosto.

Era do céu plúmbeo que se falava, não tanto do passo pesado, e aparentemente na direção de um precipício, do homem armado. Só as costas largas do homem e o rapaz franzino, que parecia ir contra a sua vontade, contavam. Ele há tantas formas de resolver pendências – lamentou uma alma condoída que partilhava a fotografia, mesmo ao seu lado. Fingiu que não era com ele, não devia retorquir. Falou com o silêncio. Era a vez do vizinho não importunar a sua atenção à exposição. E, assim como assim, não lhe tinha sido pedida a opinião. Eis que confluem dois lugares paradoxais: o direito a falar com o direito de não ser importunado pela fala do outro. O seu silêncio tácito resolveu o atrito que não chegou a ser.

Dobrou a esquina. Talvez a fotografia tivesse continuação e o resto da história ficasse patente pela sequência que se seguisse. Não era o caso. Era fotografia única. Foi a fotografia que ficou a pesar no pensamento quando regressou a casa no piso superior do autocarro. Era a que se prestava a uma dose reforçada de especulação. Uns lugares atrás, a conversa animada era sobre a mesma fotografia. Ele insistia que não deduzia nenhuma mensagem, nem adivinhava um desenlace. Ela era a ebulição hermenêutica. Tinha a certeza de que o suicídio era o fim da história narrada pela fotografia. As cores baças, emprestadas pelo céu plúmbeo, eram a legenda que a fotografia precisava.

Entrou em casa, depois de sair três paragens antes do normal, para não ter de testemunhar os alvitres da mulher frenética. No caminho a pé, desprazeu-lhe o ar quente e húmido que era inusual para o começo do Outono. Estava difícil alinhar uns pensamentos traduzíveis. As ideias borbulhantes da exegeta da fotografia abatiam-se sobre as cortinas que procurava afastar para resgatar um módico de compreensão do acontecido. Era como se a confusão mental se misturasse com o ar insuportavelmente abafado do entardecer e sufocasse de apatia.

Formulou a sua interpretação. O céu plúmbeo era um disfarce para conduzir o espetador comum à representação banal de uma caminhada a par para o suicídio. Contra a norma, nele habitual, desligou-se da tragédia. Pai e filho iam à caça. Era a iniciação deste pela mão resoluta do pai. O céu estava escuro porque haveria vítimas a contar entre o mundo animal. O sol não se põe por conta da barbárie. Essa seria a lição que o petiz teria para aprender. Ou a lição que ele queria aprender, se sua fosse a posição do petiz.

6.10.21

Martelo pneumático

God Is An Astronaut, “Remebrance Day” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qmWhckCqs6w

Como é que se passa o tempo sem ser um passatempo? Não se pressentiam respostas que fossem um aval. Sem perceber o idioma da alma, nem encontrar tradução à altura, sentia que era um passageiro do tempo e dele seu refém. Não havia palavra pior, ou ideia pior, do que passatempo.

Às vezes, a meio de uma insónia, jurava que teria de desarmadilhar o tempo para dele não ser vítima. Tudo se passaria por fora dos relógios que eram o pior tiranete (se é que se pode considerar a hipótese de um tiranete benévolo). A quimera do tempo suspenso não é a morfologia da uma ilusão. Teria de ser o prefácio de uma profecia à espera de consentimento.

Tudo o que era provável não aderia à estrada que se inscrevia no seu paradeiro. Muito embora houvesse profecias ajuramentadas (como se um desejo não esperasse pelas contingências do incerto), os oráculos não eram a sua mortalha. Preferia a dureza da artilharia pesada – se, por artilharia pesada, se entendesse o martelo pneumático e a maquinaria afim que percutem no subsolo que é a carne que se enraíza, devidamente hasteada pelo sangue avivado. O tempo deixava de contar. Os relógios, todos exilados, deixavam de contar o tempo de que eram procuradores. Talvez o zero voltasse a ser o sinónimo de um alento.

O tartamudear do martelo pneumático revelava a manhã sem esteios. Ficava sozinha, a manhã, sem a proteção do orvalho que lhe empresta o lastro. Os verbos ofuscados lembram-se dos apeadeiros e devolvem ao mapa lugares que dantes eram um opúsculo de decadência. Se não fosse pela vertigem do futuro, o tempo deixara de ter lugar no vocabulário. Podia ser que chegasse para o esvaziar de significado. E o futuro não passasse do dia corrente.

Mas não contava com as mentiras herdadas de tempos anciãos. Há mentiras que não dependem dos mitómanos. São consumidos pelas circunstâncias que não dominam, nem fingem tolerar. Socorrem-se dos martelos pneumáticos para hipotecar o peso arcano das mentiras que se sopesam no avesso de uma alquimia. Ao menos, o tonitruante soar dos martelos pneumáticos não deixa as mentiras à mostra e promete a suspensão do tempo.

5.10.21

Lei das probabilidades

Moderat, “Reminder” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=Q1FQOqVYICY

O carrossel espreita pela ombreira, promete a vertigem inacabada. É como uma praia visitada por um tubarão, pese embora ninguém saiba das intenções do tubarão. Este é o maior exílio interior: desenhar, com a precisão da régua e do esquadro, as intenções presumidas porque, sendo presumidas, não são da nossa conta. 

Um dia contaram a história do velho que não deixava de montar a ruidosa motoreta no poço da morte. A audiência ficava extasiada com tanta audácia, o velho certamente tomado pelas forças exauridas desafiando a lei da gravidade. Alguém disse um dia, ao saber da rotina do intérprete do poço da morte, que era o homem que desafiava a morte. Todos os dias, que ele não tinha direito a descanso semanal. Não era a morte que o desafiava. 

Se algum dia fôssemos penhor de uma coisa qualquer, e se a pudéssemos escolher, que diríamos? Esta é uma das muitas perguntas sem serventia que os apóstolos das hipóteses tecem para matar o tempo. Que absurda expressão: matar o tempo. Como se não fosse o tempo o nosso algoz, quando sabemos, de fonte certa, que o gastamos sem nos podermos remir. 

Passamos pelo carrossel que só nós podemos retratar. Às vezes, demandamos precipícios como se por dentro uma irreprimível loucura nos comandasse. Como se pilotássemos uma motoreta decadente a desafiar a morte e a motoreta se embebesse na ferrugem inacabada. Não seremos dignos do tempo que nos foi encomendado. Despistá-lo como úbere de um fingimento é a confissão da nossa contumácia. Faltamos à chamada. Outros diriam, pesarosos, que no martírio da morte saberemos como delapidámos o tempo sem sabermos da sua urgência. Mas esses são os que contam presenciar as suas próprias exéquias. 

O tempo malparado não se cobre de lantejoulas quando a sua extinção foi selada. Com um pé no carrossel e outro no poço da morte, experimentados, seguimos o sortilégio que banaliza o bem maior. Perguntem ao velho do poço da morte se sabe dedilhar as sílabas da morte.

4.10.21

O rosto sem fronteiras

Idles, “The Beachland Ballroom”, in https://www.youtube.com/watch?v=t7aktt5cDqs

Aparecia cabisbaixo na fotografia, o rosto mergulhado sobre o chão, anónimo sob a sombra do chapéu. Era como se tivesse medo da luz que dominava o dia – ou medo do dia, de todos os dias. Para exorcizar o medo, escondia o rosto no véu proporcionado pelo chapéu. Quem o visse com demora, não conseguia desenhar a silhueta do rosto.

Contudo, era um rosto sem fronteiras. Os traços indistintos desdobravam as possibilidades. Podia ser um cenho fechado ou um sorriso disfarçado (incomodava-se com o sorriso da moda – o sorriso na moda – das estrelas artificiais da televisão, que até a dormir exibem um sorriso que tem tanto de perene como de ardiloso). Quem reparasse no rosto escondido pela sombra do chapéu, não conseguia desenhar os seus limites. Era como um mapa impossível, por ausência de bússola motriz.

Não se importava. Fazia questão de aparecer em público na companhia dos chapéus de que era tutor de uma farta coleção. Quando sentia que alguém o olhava de frente, tentando discernir a atalaia do rosto, descia-o para ficar sob a tutela da sombra do chapéu. Havia quem dissesse que era uma imagem de marca. Outros anuíam que o rosto semicerrado à mercê da sombra da aba do chapéu era o seu rosto a sério. Se dele se fizesse uma caricatura, só seria possível observar a boca e o nariz já apenas uma penumbra deitada sobre a esfera protetora da sombra do chapéu.

Podia haver quem protestasse contra a persistente sede de anonimato. Depressa condescendiam. Ninguém deve ser obrigado a oferecer a integridade do rosto ao desanonimato.

Um dia, precisou de renovar o cartão de cidadão. Apresentou-se na conservatória na posse de um chapéu indefetível. A funcionária advertiu que a lei obriga o rosto inteiro na fotografia do documento de identificação. Protestou. Exibiu o cartão de cidadão que estava quase a caducar: “veja a senhora pelos seus olhos, nesta fotografia apareço de chapéu. A senhora não me pode obrigar a revelar a totalidade do rosto se essa não for a minha vontade. Informe-me sobre a lei.”

Intimidada pela convicção do protesto, a funcionária permitiu a fotografia de um semi-rosto. Ela não conhecia a legislação do foro. Se fosse diligente nas suas obrigações, e se tivesse conhecimento de causa das leis, teria obrigado o rapaz a posar diante da câmara com o rosto como é só conhecido dos espelhos em casa. Ela não sabia das leis aplicáveis, nem sabia que o rapaz do chapéu permanente era perito na arte do bluff. Um farsante de corpo inteiro – e não apenas do rosto refugiado no disfarce contínuo.

1.10.21

Uma teoria sobre a abjuração dos heróis

David Bowie, “Heroes”, in https://www.youtube.com/watch?v=lXgkuM2NhYI

Este texto podia começar pela seguinte interrogação: quem precisa de heróis? Ou, talvez numa declinação, encerrar alternativa formulação: por que são precisos heróis?

É recorrente o sentir maioritário do povo que se apazigua quando, numa encruzilhada do tempo, um herói desembarca no palco onde todos convivemos. Os heróis serão necessários para desempoeirar o desalento que goteja na modorra que traduz os tempos normais. Ou para dissolver a ferrugem que se apodera das fundações que cimentam o grupo à custa de uma crise de personalidades que endossa um sentido de orfandade ao grupo. Os homens providenciais são bem-vindos. São eles que dão rumo ao futuro, inventando as oportunidades que estavam encerradas pelas sombras que se haviam apoderado do horizonte.

Quando as pessoas atravessam um período que se assemelha à confirmação de um apocalipse, a urgência de heróis é epidérmica e heurística. No meio da desorientação, do caos que magoa a mais funda ossatura, os homens e as mulheres salvadores são a candeia que promete extinguir as trevas instaladas. A pandemia encaixa-se neste retrato. Sobretudo quando as vacinas foram descobertas e começaram a ser inoculadas, inscrevendo na agenda mental das pessoas uma data para o lento regresso a alguma normalidade (da normalidade a que estavam habituadas). Impunha-se um plano para ninguém ficar para trás (entre os que quiseram ser vacinados). Era a franquia da muito prometida imunidade de grupo, à boleia das explicações técnicas dos peritos e de elas serem convincentes para a população restante. 

Ao início, foi escolhido um homem do aparelho do partido do governo para definir e comandar a estratégia. Não levou muito tempo a ficar patente a sua incapacidade (e os malefícios da endogamia partidária). Seguiu-se um militar da marinha que pôs o processo nos eixos. O país passou para o top das estatísticas da vacinação que nos punha longe do ferrão do vírus. O militar começou a cativar a simpatia da população. As declarações de agradecimento multiplicaram-se. A comunicação social, sempre atenta às preferências do povo, não ficou indiferente ao vice-almirante. A sua vida começou a ser esquadrinhada porque era preciso traçar o seu perfil. As entrevistas de cariz pessoal e intimista também conheceram os seus dias. O vice-almirante fundia a pose militar com a lhaneza de um homem que é tão homem como os outros, vulgares e cheios de fragilidades. A admiração pelo vice-almirante quase não tem precedentes. Seria preciso um grande esforço para lembrar tanta admiração por uma personalidade na História recente.

Para os que acreditam em deus, e para que que precisam de acreditar em deus, os heróis são os embaixadores de deus. Visto de fora, pouco os pode diminuir mais. A confissão da nossa fragilidade não pode alimentar o messianismo em que nos depomos. 

(Uma derradeira observação: não é um lugar confortável o exercício especulativo de nos colocarmos no lugar do outro, mas as lições da filosofia não se perdem quando a teoria teima em não corresponder à prática. Isto para especular – outra vez – o que faria se minha fosse a posição do vice-almirante quando sentiu a voz unânime que o entronizou na condição de herói e leu as hagiografias escritas a seu respeito. Não deixaria que os outros me colocassem nesse pedestal. Não me exporia assim, nem deixaria que outros assim me expusessem. E se insistissem, pela carência urgente atrás identificada, seria, se preciso fosse, de uma brutidão inapelável só para se convencerem que estou na antítese da heroicidade. Um homem não pode negar a necessidade de heróis nos outros se não recusar os apelos para que aceite ser herói.)