30.8.19

Idem (short stories #153)


PJ Harvey, “Good Fortune”, in https://www.youtube.com/watch?v=gDBZZ3uvimE
          O encarcerado, restringido ao exílio da alma, falava contra as paredes laceradas pela humidade. Não se arrepende de nada. Não se mortifica. A maldita educação, e a convivência com o que se convencionou cunhar “más companhias”, embeberam-no num orgulho irremediável. Não há dia que não diga, de viva voz (para surtir o efeito do não esquecimento), “antes quebrar do que torcer”. Sente uma voz a interrogá-lo; parece que a voz está escondida para além das grossas paredes que o encarceram: “se tivesses a oportunidade, repetias o crime que te condenou ao degredo neste presídio?” Não hesita; não cede à teórica tentação do arrependimento motivada por todos os contratempos tatuados a tinta-da-china na memória: “sim!”, em forte exclamação. Se fosse libertado agora, voltava a cometer um crime. Os mesmos, ou outro qualquer. É à custa da tendência para a reiteração, este demencial monólogo em que diz para si mesmo, até à exaustão, “idem, idem, idem, e idem, e mais idem”, que se lembra de ter sido diagnosticado como “sociopata incurável”. Volta à voz interlocutora, completando a resposta à interrogação: “um sociopata incurável não se arrepende do que já fez. Não reconhece o desvio de comportamento. Por isso, se insistires na pergunta, ó voz desconhecida, e em abono da minha impecável coluna vertebral, te direi sem rebuço: sim, voltava a fazer tudo outra vez. Igual ou diferente – mas seria sempre contra as normas, rompendo o estabelecido. Eu sou o homem que diz, até à exaustão, idem, idem, idem, e idem, e mais idem. Idem, as vezes que preciso for”. Dissipada a voz, sobrava o silêncio da sua respiração. Parecia ofegante. Alterado pela interpelação. Não quis admitir, que o maldito orgulho pesava mais, mas talvez fosse o caso de contrariar o diagnóstico e não fosse o sociopata que repetia, com a crueza das mãos que roubaram vezes sem conta e que assassinaram um par de vezes, “idem”.

29.8.19

A pertença não é a aritmética da identidade (short stories #152)


Os Golpes (com Rui Pregal da Cunha), “Vá Lá Senhora”, in https://www.youtube.com/watch?v=8BrTp2ZpMMI
          Num daqueles momentos emblemáticos de férias, animação noturna em modo karaoke. Os bravos que mostram as suas (quase sempre) ineptas vozes são uma amostra da constelação de nacionalidades que descansam no hotel. Dois lusitanos empunham o microfone e esgalham uma música também ela tipicamente lusitana. Inebriados com o desempenho, um deles termina em viva voz com um sentido apelo à pertença: “boa noite, Portugal!”, seguindo-se uma exclamação sintomática (do estado de excitação e de uma certa portugalidade sobretudo intramuros): “carago!” Alguns patrícios presentes no evento soltaram sonoro aplauso, não sendo indiferentes à convocatória. Contrariando a maré dominante, fiquei indiferente. Não é o género de convocatória que desate a minha comoção. Não percebo a ostentação da nacionalidade quando se está no estrangeiro. É corrente entre muitos concidadãos quando estão no estrangeiro, sentindo uma necessidade irrefreável de mostrarem “o que são” (por referência à nacionalidade que trazem a tiracolo). No dia seguinte, esquadrinhei meticulosamente as varandas e janelas dos quartos do hotel, não fosse estar a bandeira lusitana hasteada num deles (ou em mais). Não era o caso. Talvez por não ser ano das estultas competições desportivas que põem os países uns “contra” os outros. Não deixei de pensar naquele ingénuo apelo pátrio. Parece que sentem uma súbita falta do ar pátrio quando pisam solo estrangeiro. Paradoxalmente, serão, muitos destes personagens, os primeiros a abjurar os seus concidadãos quando estão em casa. O que se devia cuidar é do conceito aplicável quando nos vemos como indivíduos inseridos numa comunidade política. As vistas curtas destes personagens grotescamente nacionalistas impedem que vejam para além da comunidade política mais óbvia (a nação), ignorando outras que se situam num plano inferior ou superior – e ignorando que, acima de tudo, somos todos feitos de ossos, carne e sangue. São os que respondem: “sou de Portugal”, quando seria mais sensato responderem “venho de Portugal”. Faria toda a diferença entre o pertença e identidade. E evitaria momentos embaraçosos de que nem se dão conta.

28.8.19

Velocidade de cruzeiro (short stories #151)


The Strokes, “Last Nite”, in https://www.youtube.com/watch?v=TOypSnKFHrE
          Quando é a velocidade o barómetro da usura? Ninguém sabe. Ou melhor: sabe-o, a posteriori. Não se iludam as almas sedentas de certezas. As respostas só amanhecem no restolho dos acontecimentos. Nessa altura, saberão se o passo determinado foi a contento. Se foi veloz ou vagaroso. Se colheu os proventos no tempo considerado certo, ou se foi extemporâneo, por atraso. Talvez a fortuna esteja em não conferir importância ao passo dado, à sua velocidade. O tempo não tem medidas quando os conceitos se jogam no diapasão oferecido contra o tempo. Não há medida universal. Diferentes pessoas vivem a diferentes tempos. Em diferentes escalas do tempo. As circunstâncias moldam-se, umas vezes a favor, outras vezes contra, na aleatória desmedida que passa a medida consagrada. Os olhos repousam na bruma matinal e interrogam os deuses que caucionam o tempo. Não é de estranhar que não recebam resposta. (Os que a obtêm ficam reféns de uma irredentista ilusão: a resposta é uma miragem da audição.) O melhor critério é a tentativa e erro. Sem a hipocrisia das ambições desmedidas. São um atentado contra os humores que se sentam no regaço de quem os tutela. Estão condenados ao malogro. Quem desiste das pretensões insensatas de medir o tempo certo da existência conquista o remédio da velocidade de cruzeiro. É a medida que não tem medida. Conceito que credita a velocidade. O que supõe que não se interrogue se a velocidade imprimida é por excesso ou por defeito. Quem não coloca a interrogação encontra a virtude da velocidade de cruzeiro. Imune à irritabilidade dos apressados, os que acabam sempre por se considerarem atrasados ao que chegam. Despojada de freios dos constantemente atrasados, penhores do temor de haver alguém que consiga a proeza de chegar depois. As curvas sinuosas aplanam-se no dorso sereno da velocidade de cruzeiro. É quando o sortilégio do tempo se incendeia na fogueira que nos devolve a liberdade de sermos sem o estigma do tempo. 

27.8.19

Uma direção (short stories #150)


Grizzly Bear, “Three Rings” (live on KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=mLrCGH7zAjA
          A aba do chapéu escondia o que queria ocultado do olhar. A aba descaía sobre o olhar, mesmo a jeito de turvar o horizonte. Não fazia nada para que fosse ao contrário. Desconfiava que uma visão desembaraçada não era a caução que precisava. Já fora assim. O olhar desimpedido era um paradoxal estribilho que impunha uma censura angustiante: quanto mais clara era a luz, mais se adensavam as sombras e as nuvens no parapeito dos dias. E os dias eram transfigurados em noites que pareciam perenes. Muitas eram as vezes em que parava no miradouro e perguntava ao horizonte que direção devia tomar. Havia um certo sentido de desorientação, algo que o sobressaltava. Nunca encontrou respostas. Talvez não fosse o propósito, se as coisas forem vistas de outro ângulo. Em sossego das perplexidades, admitia que não houvesse vivalma a poder garantir ter uma direção linear, sem tergiversações pelo caminho, encruzilhadas sem resposta. Não era diferente dos outros. A semelhança não o apaziguava. Não é através dos males alheios que afivela os seus próprios. Só sente as suas apoquentações. Essas é que devem ser consideradas no turbilhão das sensações que se entrecruzam nas veias ardentes. Uma direção; se ao menos houvesse uma direção por onde seguir. Não era o caso. Sabia ser soldado raso nos interstícios do destino (fosse lá o que fosse o destino). Era mais uma peça avulsa nos lugares avulsos onde até o tempo era jogado ao acaso. Se calhar, a ausência de direção geograficamente determinada é a direção que pertence a todos. Não é tempo que se mereça perder com a demanda. Vamos ao acaso, que o acaso combina com o sortilégio, um sortilégio qualquer, de desenhar as bissetrizes. Esqueceu-se de desafios, de contendas, de alternativas, dos pesares pelos logros, dos mapas estendidos em cima do estirador à espera de cuidada verificação. Tudo se resumia ao alvorecer e a deixar-se vogar no caudal em que fosse embarcadiço.

26.8.19

Arranha-céus (short stories #149)


Dead Can Dance, “The Ubiquitous Mr. Lovegrove”, in https://www.youtube.com/watch?v=qbaKEt5BtHo
          Não é farta a abundância: das doenças maiores é cobiçar o que se não tem. Dizia, de cada vez que esbarrava numa história de vida em que alguém quis ser maior do que a própria medida. Depois, jogam-se os adágios a preceito (outra excrescência, como os lugares-comuns que se soerguem de cada vez que alguém assobia um par de palavras a propósito): “quanto mais se trepa, maior é a queda.” Por isso não entendia os arranha-céus. Não os há muito cá pela Europa. Dera de caras com eles em cidades americanas e em algumas megapolis asiáticas. As ruas ficam sem céu, enfurnadas entre a miríade de arranha-céus. Melhor se diria, em vez de se lhes chamar arranha-céus, que estes altos edifícios são açambarcadores dos céus. Crescem em direção aos céus, como se estivessem a arranhá-los – ou não fosse esse o seu nome de batismo. Depois de instalados, os arranha-céus locupletam os céus. Do chão, nessas ruas acabrunhadas onde os arranha-céus têm morada, as pessoas mal conseguem deitar os olhos no céu. Nunca deixou de pensar como a panóplia de arranha-céus é a moeda da desmesura dos homens. Não gostam de viver raso ao solo. Edificam em altura e em altura expressam uma medida da grandeza humana. É como uma nova forma de colonização, na vertical, a colonização do céu pelo emaranhado de aço e vidraças. Medram numa espécie de espaço sideral que adeja sobre as cidades. Estão de atalaia e, empossados nesse papel, arvoram-se de uma sumptuosidade não reconhecida nos edifícios que não conseguiram ser arranha-céus. No avesso certo das cidades, amontoam-se estes emaranhados onde as pessoas são triviais peões. Os arranha-céus podiam viver sem gente; do alto da sua imponência, ganham vida própria, são a prova viva do fausto da cidade. E a cidade, as suas pessoas, enriquecem-se de identidade na admiração constante aos arranha-céus. Assim como assim, não é todos os dias que o Homem desafia os elementos e conquista um pedaço do céu. Metaforicamente falando. 

23.8.19

Amotinado (cortina de ferro) (short stories #148)


Metronomy, “Walking in the Dark”, in https://www.youtube.com/watch?v=AKUv4vwthGc
          À má fé: a estocada assestada contra as boas convenções – mas quando a fé é má, que ninguém espere cavalheirismos. Já tinha idade para ter aprendido. Continuava, contudo, ingenuamente esperançado na boa têmpera dos seus semelhantes. Desta vez, não se condoía dos golpes baixos. Já aprendera. Talvez fosse a ocasião para mudar. Em vez de esperar pacientemente pelo golpe baixo, devia antecipar-se. Como fazê-lo, se a má fé é bolçada sem pré-aviso? É como nos cataclismos naturais: ninguém está preparado para lidar com eles. A voz da experiência galanteava-se nos interstícios da alma, murmurando a necessidade de se refugiar, de ser amotinado. A cada contratempo (como acontece com os sismos), jurava que tinha de edificar uma cortina de ferro que o isolasse das ardilosas contrariedades exteriores. Era do domínio público. Mas o divórcio entre a teoria e a prática é perene. Os figurinos não se congeminam nos estiradores onde as teorias fruem da especulação. É preciso uma reação quando os episódios conspiram contra a serenidade da alma. Contrariando o manual dos engenheiros sociais, são irrisórias as tentativas de antecipar os contratempos. Eles têm sempre um desenho insólito e não avisam com antecedência. Atacam, à má fé. Por isso, amotinar-se é cautelar. Descer uma cortina de ferro para que nada seja visto de fora para dentro. A reserva total é o predicamento que protege de intrusões e que pode fixar um cais a que mais ninguém tem acesso. Se estiver sob fogo cerrado, a cortina de ferro é o hermético pedestal que protege do exterior. Os sobressaltos experimentados lá atrás afinal tinham alguma serventia. Amotinado, passa a ser o intermediário que se antepõe perante o exterior, uma densa camada que o reserva para uma privacidade cúmplice de si mesma. Não tinha era resposta para outra interrogação que secretamente figurava no pano de fundo da memória: como se proteger das feridas que abrira em si mesmo? 

22.8.19

Radiografia do frigorífico (short stories #147)


The Flaming Lips, “Do You Realize?”, in https://www.youtube.com/watch?v=lPXWt2ESxVY
          Uma revista pergunta a “notáveis” o que têm guardado no frigorífico. Os notáveis, com a sua irremediável sede de notabilidade, abrem as portas do frigorífico e desnudam-nos aos súbditos. Ficamos a saber dos apetites dos famosos. Das coisas mundanas, pois é de alimento e de bebida que se trata e até os notáveis comem e bebem (confirmando os prognósticos). De caminho, nós, os súbditos, instruímo-nos com os frigoríficos bem guarnecidos e as opções gourmetou menos gourmetdos influenciadores. Só não se sabe quem encena a sessão fotográfica que radiografa o frigorífico e os hábitos e preferências gastronómicas dos notáveis. Ou seja: ninguém sabe se os frigoríficos foram municiados de propósito para a sessão fotográfica, porque fica sempre a preceito colocar determinados alimentos e bebidas nas estantes; ou aqueles que são mais genuínos e não fizeram uma operação de maquilhagem para os súbditos se deliciarem. Tenho uma suspeita. (Que, como todas as suspeitas, são infundamentadas até prova em contrário.) Suspeito que as radiografias dos frigoríficos dos notáveis são precedidas de cirúrgica montagem, pois cada notável não perde a oportunidade para se destacar numa prova encenada (logo, uma farsa) de que se distinguem dos demais. Além disso, a sede de exposição pública não quadra com a vulgaridade. Um notável não pode desnudar o seu frigorífico se passar a imagem que é uma pessoa banal como as pessoas banais de que se julgam idolatrados. Não se pode deitar a perder uma imagem por causa de um frigorífico mal radiografado. Nem que seja preciso gastar uma pequena fortuna com produtos que quase ninguém conhece (talvez até os próprios notáveis), pois é assim que se marcam as influências. Um dia destes, perguntam pela cor e marca da lingeriee os notáveis não hesitarão em deixar-se fotografar, talvez em pose lasciva, para gáudio do olharvoyeur, como o deles.

21.8.19

Cisma (short stories #146)


The Clash, “Lost in the Supermarket”, in https://www.youtube.com/watch?v=qsrEAWcAvRg
          Dizia: tenho uma cisma com um emérito académico coimbrão. Tenho outra cisma com um “músico” – assim se dá a conhecer – que não é de longe de Coimbra. Não tenho cisma com Coimbra. Tirando os rapazes de tunas que se perpetuam nos estudos, sem se saber se é por serem mandriões ou se por estultícia. Já estudei em Coimbra. Não posso ter cisma com Coimbra. Mas fico a cismar como se fazem as obras do aproveitamento hídrico do Mondego e, mesmo assim, as terras baixas ficam inundadas quando chove copiosamente. Fico a cismar por que se chama Coimbra B à principal estação ferroviária. E cismo, muito, com as ideias vesgas do emérito académico. Gostava de cismar, nem que fosse em sonho, com um cisma nessa escola que o tem como patrono, mas intuo que mais depressa cai um nevão em Coimbra. Não cismo com as belezas que retratam Coimbra, os seus caminhos estreitos e alcantilados, a orografia escarpada, a cidade velha e amiúde degradada. Mas cismo com o fado de estirpe coimbrã, vetustamente elitista, na adulteração do fado original, nascido nas tavernas de Lisboa e interpretado por castiços e castiças que mal sabiam ler e escrever. Cismo com a nomenclatura gongórica, espécie de fala em circuito fechado, dos seguidores do emérito académico. Cismo como abdicam do pensamento próprio e singram na exata proporção das genuflexões ao decano. Dizia: não cismo com o Jardim da Sereia, nem com o edifício da Faculdade de Direito (onde estudei), ou com a doçaria tradicional. (Não cismo com nenhuma doçaria tradicional.) Cismaria se o emérito académico, depois do seu passamento, fosse proposto para o Panteão. Julgo que nessa altura seria a minha vez de decretar um cisma. Contra a portugalidade. Era quase como se o mencionado “músico”, quase vizinho de Coimbra, entrasse para a arqueologia da música popular. Cismaria contra a música popular. Ainda bem que não tenho de cismar e de cismar.

20.8.19

O que queres ser quando fores pequeno? (short stories #145)


Fat White Family, “Fringe Runner” (live at The Lexington), in https://www.youtube.com/watch?v=RTWap6oStfY
          Na azenha sobranceira ao rio claro, uma voz cerziu a interrogação: “o que querem ser quando forem pequenos?” Olharam uns para os outros. A voz era gutural, misteriosa, como a voz que se revelava sem rosto. Não estavam a contar. Não é costume formular a questão nestes termos, terão pensado. E eles já não iam para novos, menos sentido fazia a pergunta. Um tomou as rédeas do exercício contrafactual e disse: “eu quero ser guitarrista.” Os outros ficaram ainda mais perplexos. Se havia certeza que podiam ter, é que nenhum ia ser pequeno no futuro que começava daí a uns instantes. Como podia alguém ousar uma resposta a pergunta desprovida de sentido? Outro, não ficando atrás, disse: “eu quero ser sinaleiro, daqueles que agora já não há.” Outro acrescentou: “eu, desempregado, com direito a subvenção vitalícia.” (Este era um homem da direita rude, que desdenhava da segurança social.) Outro não se ficou: “quando for pequeno, quero ser dono de um restaurante.” Já só faltava a outra metade para a curiosidade da voz anónima ficar saciada. Os outros quatro estavam relutantes. Os que já tinham respondido olhavam para os renitentes, à espera da confidência. Um deles, incomodado com tantos olhares intrusivos, anuiu: “quero ser...quero ser...um déspota.” Foi seguido de outro comparsa, que admitiu querer ser “marinheiro, mas só no inverno, quando os navios ficam resguardados no porto.” E mais uma reação: “quando for pequeno, eu quero ser grande, para não ter a ambição de não ser aquilo que não posso ser.” Só faltava um dos comparsas. Demorou algum tempo, até que decidiu tomar a palavra: “eu quero ser apóstolo.” “Apóstolo?!”, exclamaram três ou quatro, em uníssono. “Sim”, respondeu sem pestanejar o aspirante a apóstolo, “tenho tantas ideias que quero espalhar.” Ao fim de umas horas de intenso colóquio, todos perceberam a pergunta. É que vamos para pequenos. Não é assim que os velhos são tratados?

19.8.19

Amanhã há boas notícias (short stories #144)


Nick Cave & The Bad Seeds, “Straight To You”, in https://www.youtube.com/watch?v=CYbOHXMtelU
          A primeira boa notícia, é que amanhã não demora. Se hoje foi caso de abundantes más notícias, a boa notícia é amanhã não poder ser pior. Tudo se conjuga para um ar rejuvenescido que vem com o fresco da manhã, o que acalenta a hipótese (em elevada probabilidade) de amanhã haver boas notícias. E por que queremos boas notícias? Alguns vociferam contra a degenerescência do mundo. O sinal são as notícias que se põem com má cara, a condizer com o rosto sorumbático do mundo. Como podemos ficar imunes? As más notícias não são apenas más para os seus intérpretes; são para todos os que tiverem sensibilidade e se sintam, por simpatia, afetados pela dor excruciante que uma má notícia provoca em suas presas. Mas amanhã vem depois e traz boas notícias. É uma confiança firme. A certo ponto, as circunstâncias que se jogam a favor de más notícias ficam exauridas. Ou amanhã somos nós que estamos cansados de más notícias, só vamos abrir as janelas às boas notícias. Seremos mais rigorosos no filtro que decanta as más notícias das boas notícias. Se sobrevierem más notícias, metemo-las entre parêntesis. Não as ignoramos; retiramos a importância que elas queriam possuir. Na separação heurística, ficamos com as boas notícias. Um nascimento. O amor. Um casamento. Uma promoção profissional. Uma invenção com lucro imaterial para a humanidade. Uma guerra que cede o flanco ao desejo da paz. Um governo que cai (o que é sempre uma boa notícia, de acordo com o manual do anarquista). Um amigo que celebra uma proeza. Um trafulha apanhado e sujeito ao juízo da justiça. Um livro de poesia. Uma peça de teatro. A música (com as exceções que se constituem irremediáveis más notícias). A sinceridade de quem errou e profere público arrependimento. Amanhã é amanhã e só teremos olhos para as boas notícias. Estas e outras que passem pelo crivo da imaginação. Nem que seja a fazer de conta.

16.8.19

Punk em part time (short stories #143)


Ty Segall, “Self Esteem” (live on KCWR), in https://www.youtube.com/watch?v=x3CsHzm4TKs
          Das nove às cinco: fato e gravata, sapato italiano dispendioso, linguagem de financeiro, a preceito de quem transaciona ações e derivados nas bolsas internacionais, um código de conduta dos hipocritamente cavalheiros que pontuam no mundo da finança. Punhos de renda ao almoço, com o chefe e três possíveis investidores de um país emergente, ele fazendo uso do impecável inglês com indisfarçável sotaque de Cambridge (mercê dos estudos pagos a peso de ouro pela família endinheirada). À medida que a tarde avança e se aproxima a hora de marcar o ponto, vai sentindo uma vagarosa transfiguração. Só por dentro. No exterior, mantém a pose fleumática e o rigor da conversação, como é exigível no mundo da finança. Cinco horas: à saída do sumptuoso edifício, a gravata já não aperta a jugular. Cinco e dez: chega ao carro e a fralda esquerda da camisa já se sobrepõe às calças. Liga o automóvel; liga o aparelho onde tem armazenada a biblioteca musical: The Stooges, escolha aleatória. O gel que abrilhanta a silhueta de financeiro já desapareceu e o cabelo ostenta-se, desgrenhado, caótico. O automóvel moderno está hermeticamente fechado e devidamente insonorizado, mas as pessoas apercebem-se da música estridente. Agora, The Clash. Seis menos cinco: chega a casa. Os vizinhos sabem da sua metamorfose. Já vem com os sapatos na mão e meneia vigorosamente a cabeça em rima com a música que entra pelos ouvidos, debitada por uns auscultadores modernos. Sete e meia: prepara o jantar na companhia dos Jesus and the Mary Chain, com uma incursão por She Wants Revenge, Shame e Idles. Fez-se noite. Os colegas preparam o dia seguinte, lendo relatórios de fio a pavio. Dez e vinte: sai de casa. Embrenha-se na noite, nos lugares subterrâneos. Veste roupa escura e gasta. Onze e quarenta: assiste a um concerto de uma banda emergente. São de Aveiro. No moche, choca de cabeça com um indivíduo não identificado. Não há problema. No dia seguinte, depois das três horas de sono, pedirá a alguém para disfarçar o hematoma com maquilhagem. Nove menos três: entra ao serviço. Murmura umas estrofes de “Self Esteem”, de Ty Segall, enquanto dá umas ordens de compra no mercado de Tóquio. Está em condições de assegurar que não é bipolar.

15.8.19

Subalterno (short stories #142)


Eric Mingus, “Shake Up the World”, in https://www.youtube.com/watch?v=fjJP5jYEQJE
          Não sabia o que fazer à desarrumação da alma. Era como se por dentro das veias fervesse a promiscuidade de ideias, sobrepondo-se umas às outras, incapaz a lucidez de desenhar as fronteiras entre elas. Sentia-se subalterno. Não sabia em relação a quê, ou a quem; a subalternidade implica uma relação com um algo que nos é exterior. Talvez fosse o produto da desordem. Considerava este estado de desarrumação um contratempo. Ninguém gosta de sentir o frémito que fala em nome da avassaladora desordem interior. Por enquanto, o sono não tinha sido ferido. Mas nem essas horas, em que o pensamento aparentemente se desligava da corrente, eram medicinais. Com a manhã, não emergia o ar refrescante que costuma ser apanágio da alvorada. Lamentava que não pudesse usar esta metáfora, a crer nos mesmos quadros sombrios que se arqueavam diante de si, bolçando uma intensa cefaleia que o acompanhava pelo dia fora. Se precisava de convocar ideias, chegava a uma encruzilhada. As pontas soltas de fragmentos de ideias cavalgavam em sentidos opostos, parecia atacado por uma trovoada intelectual. Sentia-se órfão de ideias, porque não conseguia encontrar o fio de prumo. Já levava meses neste estado catatónico. Não conseguia escrever duas frases seguidas sem imediatamente se interrogar sobre o seu sentido, para logo concluir que eram ininteligíveis. As folhas arremessadas para o lixo eram o resultado do tumultuoso sobressalto. E o pior, é que a sensação de subalternidade continuava a acossá-lo. Não se queria sentir subalterno, de nada ou de ninguém. A independência era o que mais prezava. A imensa teia de ideias que se sobrepunha num estado caótico deixava-o sem lugar definido. Essa era a subalternidade que o povoava. Até que numa noite de insónia percebeu que estava refém de um equívoco: o eflúvio de ideias, muitas delas de sentido contrário, não era um garrote. Era um dom. O estigma da subalternidade cessou, sem adiamento. 

14.8.19

Este é o maior quilómetro quadrado (short stories #141)


Hot Chip, “Spell”, in https://www.youtube.com/watch?v=3cnzptceI4g
          Não foi o lugar tirado a régua e esquadro e a sua simetria parece um compêndio anárquico. Dizem que é um lugar estulto, afeado pela parcimónia com que mal recebe a luz. Dizem, as convenções, que os lugares têm de ser ungidos por uma luz feérica para obedecerem aos cânones da estética. Até dizem que podem ser lugares proscritos os que não quadram com a regra. Mas este lugar não foi tirado a régua (e esquadro): diriam estar contaminado pelo desdouro. Será incorrigível deformidade? Os juízes estariam na disposição de condescender e outorgar uma segunda oportunidade. No âmago da sua generosidade, desenhariam um caderno de encargos, as condições apalavradas para a exigível mudança para o lugar corresponder aos quesitos. Mas nós não queremos que o lugar suba a pináculo nenhum. Não queremos revelar os segredos deste quilómetro quadrado. Pois temos o lugar sob vigilância, para não se abrirem os periscópios em suas sondagens e do lugar tirarem as medidas, vulgarizando-o. “Este é o maior quilómetro quadrado que conhecemos”, dizemo-lo um ao outro, em murmúrio. Mas só nos o conhecemos. Não queremos a intuitiva partição, não somos tão altruístas. Podiam contrapor: mas um quilómetro quadrado tem a mesma medida em todos os lugares. Não queremos saber das bitolas mal fundamentadas, nem de esteiras por onde se movem os lugares-comuns. Sabemos do que falamos e no suave adestrar do idioma conjugamos verbos e substantivos com a volúpia que não se extingue. Insistimos: este é o maior quilómetro quadrado que conhecemos. Dir-se-ia, se for autorizado um lugar-comum a título excecional: como as palmas das nossas mãos, na cartografia quimérica onde repousam todas as rugas de que se compõem as mãos. Um quilómetro quadrado, porque foi essa a medida que definimos, no altar da nossa arbitrariedade. Sem remissão, escavámos o chão por onde tem cabimento o quilómetro quadrado. Ele é todo feito do nosso suor. Podia haver maior quilómetro quadrado?

13.8.19

Pressão atmosférica (short stories #140)


Rodrigo Amarante, “The Ribbon” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=PeqpKfK0la4
          Que não é o céu que nos cai sobre a cabeça: é este céu de chumbo, o ar pesadamente tropical, um fim de tarde paradoxal. Não estamos habituados. Ou temos sol e canícula, ou as nuvens tomam conta do dia e o ar sente-se ameno. A menos que as circunstâncias do tempo se joguem contra o tempo: a meteorologia conspira contra o tempo ditado pelo calendário e no tabuleiro joga-se a coincidência de pares que costumam ser alternativas. Não temos medo. O céu não vai desabar, por mais que o sintamos a apertar a jugular e a ficar próximo do chão por onde estamos. Pode ser que o céu de chumbo seja generoso e deixe em legado uma chuva rejuvenescedora. A chuva irá trazer um alívio da asfixiante quentura que é um embaraço para um ato tão rotineiro como respirar. Não estamos habituados. Não é a medida do tempo que o lugar nos habituou: esta meteorologia veio emprestada de outras paragens. Não temos medo. Como em tudo na vida, o quadro que consideramos normal admite feições de exceção. No mercado dos instantes, devíamos ter aprendido com a regra da escassez que os economistas ensinam. Quando temos entre mãos algo que é raro, devemos aproveitá-lo até sentir que o exaurimos. Sem termos medo de que nos acusem de delapidação dos recursos do ambiente, que este não é um caso desses. Sabemos que o céu de chumbo não cai sobre as nossas cabeças. Saímos à rua. Respiramos com todos os centímetros dos pulmões para aprendermos o ar torridamente húmido a que não estamos habituados. Se fôssemos enólogos do ambiente e sobredotados no quilate do ar que respiramos, diríamos do ar desta rara colheita: ocre com notas de canela e uns laivos laterais de noz moscada, vindo a pimenta rosa ao de cima no apuramento final dos odores deste ar estranhamente tropical. 

12.8.19

Sem soldo (short stories #139)


Sleater-Kinney, “Can I Go On”, in https://www.youtube.com/watch?v=pTZXBmRaQtw
          Um disse: “faço questão de pensar pela minha cabeça.” O outro contrapôs: “eu prefiro ler as palavras dos outros para formar as minhas ideias”. O primeiro ripostou: “mas, nesse caso, as ideias não são tuas. São tomadas de empréstimo, uma amálgama das palavras que lês.” O segundo defendeu-se: “Ninguém pode dizer que tem ideias próprias sem ter colhido inspiração algures.” E partiu para o contra-ataque: “se dizes que pensas pela tua cabeça, tudo o que pensas é apenas produto do teu pensar?” O primeiro cedeu o flanco: “eu não disse que não leio. Disse: o que leio não me expõe a essas palavras. Prezo a independência de pensamento.” Ao que o segundo acrescentou: “Admitir que se é influenciado pelas palavras de outros não hipoteca a independência de pensamento. Aquilo de que me acusas – o meu pensamento ser uma amálgama, e posso entender que não seja recomendável – é um pré-juízo que fermenta um prejuízo de análise. Posso dizê-lo, e com orgulho: o meu pensamento tem variegadas influências. Fui eu que o construí, na densidade das leituras que fui fazendo. Isso não compromete a minha independência.” O primeiro não desistiu: “não concebo estar assim a soldo de alguém. Se dizes que o teu pensamento herdou as influências retidas em leituras, acabas por ser um reprodutor de ideias de outros. Esse é o barómetro da dependência.” O segundo não acusou o toque: “Ainda estou para conhecer o homem ou a mulher que seja virginal em pensamento, desprovido de influências. Dir-me-ás, se ele ou ela existirem, a que planeta pertencem.” O primeiro não achou graça ao remoque: “Já não estamos a discutir com seriedade?” O segundo acalmou-se: “Estás a tresler as minhas palavras. Ficamos assim: tu, orgulhosamente embebido na independência do teu pensamento. E eu, admitindo que o meu pensamento recebe influências várias, sem comprometer a independência volitiva. Sou eu que decido que influências transitam para o meu pensamento.” E seguiram no entardecer, bebendo as suas cervejas, que estava um calor de ananases.

9.8.19

O agente secreto de porco preto (short stories #138)


Iggy Pop, “James Bond”, in https://www.youtube.com/watch?v=86aFnMzn7Cs
          Esta é a história (abreviada) de um personagem que se achava de si mesmo oráculo para as coisas que ele próprio adivinhava. No seu íntimo, encontrava a testosterona própria de um agente secreto. Não se coibia, em suas elucubrações – onde amiúde resvalava para a conversa de chinelo –, de deitar mão a uma retórica porcina, e aqui a evocação aos recos usa a metáfora que os compara com aqueles humanos que não ficavam descontextualizados se fossem apanhados a chafurdar numa pocilga. O agente secreto de porco preto – este é o nome de código – teve, em sua recente descoberta, uma epifania: os incêndios florestais foram uma conspiração de quadrantes políticos que ainda não se conformaram com a fórmula governativa vigente. E o agente secreto de porco preto, descuidando-se na retórica de quem não devia dar o flanco intelectual, parte para uma cascada de argumentos que prova, mas só dentro da sua patológica cabeça, que os incêndios foram orquestrados com mestria militar, com a intencionalidade de matarem, e muita, gente. Não há provas, a não ser as suspeitas que povoam a malsã cabeça do agente secreto de porco preto. Mas ele é tão obstinado que, pelo menos dentro da sua morbosa cabeça, suspeitas transfiguram-se em provas. Não se cansará de afirmar, pelo menos de si para si mesmo, como se fosse um diálogo onanista: “como estou convencido que foi isto que aconteceu, foi isto que aconteceu”. E enquanto uma teoria esbracejada com mal-amanhados propósitos estiver ao serviço de uma finalidade, ela substitui-se à realidade que está submetida à prova. O agente secreto de porco preto nem dá conta da inversão dos fatores: os argumentos põem-se à prova e só depois se conclui se validam a teoria; com o agente secreto de porco preto é ao contrário: temos a teoria avant la lettree depois congemina-se uma argumentação servida a preceito. Entende-se, agora, que o agente secreto de porco preto esteja afastado dos cânones da ciência.

8.8.19

Fortuito (short stories #137)


Queens of the Stone Age, “I Sat By the Ocean” (live on Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=rBM7z2y15uc
          Um acaso pode deixar de ser um acaso. A tribuna da memória, quando se joga em seu papel timbrado, di-lo-á. Os acasos que se enfeudam em si mesmos não contam para o engano das circunstâncias. São fortuitos, genuinamente casos fortuitos. Não se apagam do livro dos registos, a não ser que sejam tão irrelevantes que, na sucessão infindável de acasos, se dissolvem na textura da sua irrelevância. Quando um acaso tem lugar, ninguém sabe, naquele instante, se vai ficar emoldurado como acaso ou se os dados se jogam de modo a não o ser doravante. Esse é o sortilégio do desconhecido, da incerteza que nos pauta como meros atores incidentais das nossas próprias vidas. Estamos à mercê das contingências. Não é sensato alguém sentir-se domador de todas as variáveis que se combinam. A dose maior é exógena à vontade. É como se fôssemos peões num imenso tabuleiro onde se jogam as infinitas variáveis, os acasos, a relevância dos acasos, a sua possível transfiguração em matéria densa que transcende o fortuito. No encadeado de equações que se desmultiplicam numa rede interminável, somos pouco mais do que agentes passivos. Eis porque os planos são inconsequentes. Mesmo se soubermos as contingências que julgamos todas, outras, mais numerosas, medram no subterrâneo do desconhecimento, desligadas da vontade do ser. O mais certo, é os planos serem um logro. Por não acautelarem – não poderem acautelar – os fortuitos que sobram na rede lançada no mar das contingências. Ainda há quem persevere. Estão no seu direito. Convinha que os convencessem do exigível tirocínio sobre a incerteza, a elevada probabilidade de ocorrência de acasos que mudam o tabuleiro onde as peças se congeminam. Caso contrário, ficam reféns dos casos fortuitos e não cabe embaciar o olhar com uma tresleitura dos acontecimentos. Um acaso não é uma conspiração cósmica, ou algo de esotericamente parecido. É um acaso, apenas. Para ser digerido e materializado na matriz do pensamento.

7.8.19

Proteção (short stories #136)


Alen Tagus, “Time Passing By”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y_HmwjSKIFM
          Sob os auspícios da lua, em sua luz caiada, jogo a terra humedecida com as mãos. Entranho-as na terra e deixo vir o aroma ao de cima. Afasto o medo. Afasto as angústias que pudessem medrar na timorata convicção de mim. A cada minuto que passa, desenha-se uma constelação que fermenta o peito duro contra os contratempos em espera. Não há lugar aos arcanos lugares, nem às molduras onde se agigantam as memórias, espúrias. Alisa-se o chão que se oferece como leito para o corpo. Ainda sob o beneplácito do luar intenso, a noite prossegue sem a minha companhia. Não me escondo. O sono é uma fértil manta de retalhos onde se conjugam os diferentes modos do tempo (menos o presente). Se ao menos soubesse que o sonho é um pressentimento; mas – e depois? – os pressentimentos esgotar-se-iam na verificação do prometido, fazendo ruir pela base os mandamentos em que fomos instruídos. Pode ser que o mal esteja nos mandamentos. E o conservadorismo de quem os invoca seja a obstrução à lente diferente por onde as coisas podiam ser decantadas. Parece que não cessamos de buscar proteção. A lógica cautelar em que se embebem as vidas, que só em irrefreáveis sonhos se orquestra o dissídio dos rebeldes. Às vezes, quando a rebeldia sobe a palco e escurece o demais, o pensamento insubordina-se e interroga o vão profundo onde se congemina o manto protetor que confere a quietude de tudo. Não é suficiente – desafia o lado rebelde, talvez a metáfora para a vertente oculta da lua. Quase sempre, triunfa o instituído. O risco contempla a sua própria dose de aversão. Consome-se em seus fantasmas, quase sempre imaginários (como acontece com os fantasmas). Se, em delito das convenções, um dia se soerguer e no cálice vier à boca o desejo da rebeldia, asfixiem-se os mantimentos da proteção que forem esbracejados. Como condição prévia ao ciciar da luz caiada que se hasteia no lado oculto da lua. 

6.8.19

O Mercedes marxista (short stories #135)


Idles, “Mercedes Marxist”, in https://www.youtube.com/watch?v=2W6zK9givao
          A desgraça abatera-se sobre a impecável silhueta do marxista de velha linhagem. O opróbrio não vinha dos detratores, que com esses o marxista podia bem. Os críticos incomodavam-se quando o marxista de velha cepa protestava contra as obscenidades do capitalismo (o lucro como valor, a ganância, o individualismo que era apenas um eufemismo para egoísmo). O marxista tinha caído em desgraça junto dos seus apaniguados, e isso apoquentava-o. Agora já não tinha seguidores – e estes, perplexos com a perda de referências, estavam amadores no combate ao ignominioso capitalismo (e seus intérpretes). O marxista remetera-se ao exílio da casa. Há dias que não saía. Não queria ser confrontado com a vergonha. Não tinha medo de ser interrogado pelos detratores: esses eram o menor dos seus males, críticas vindas deles eram um bálsamo. O que não queria era o ultraje daqueles que outrora foram seus seguidores. Chamar-lhe-iam traidor. Acusá-lo-iam de ser um apóstata por ter sucumbido aos prazeres materiais que sempre combatera. Descobriu-se que o marxista se passeava num Mercedes, às escondidas, durante a madrugada. Visivelmente inebriado pelo que parecia ser o culto de conduzir um automóvel que era o epítome do consumismo que ele renegara durante toda a sua vida. O Mercedes custara sessenta e oito mil, trezentos e vinte e dois euros, devido aos extras de luxo que foram encomendados. Ao início, os prosélitos, ainda incrédulos, sugeriram a hipótese de ser um sósia do marxista. Afastada a hipótese – era mesmo o marxista que passeava o deleite no Mercedes – ainda se pensou que seria um automóvel tomado de empréstimo (o que não aplacaria o desvio de comportamento). Confirmou-se que o marxista era o proprietário do Mercedes. Por aqueles dias de julgamentos sumários do velho marxista (a quantas penas de prisão perpétua teria sido condenado, se todos esses julgamentos fossem compulsados?), só recebeu solidariedade de um adversário político. Este insurgiu-se conta o levantamento irado das hostes e denunciou a purificação moral dos julgadores do marxista. Só nessa altura – quando o outrora adversário perguntou: “quem lança a primeira pedra sem medo de estilhaçar os seus telhados de vidro?” –, o marxista ganhou direito ao sossego, deixando de bater repetidamente a cabeça contra paredes e mesas e tudo o que fosse objeto contundente.

5.8.19

Fire starter (short stories #134)


R.E.M., “Wicked Game”, in https://www.youtube.com/watch?v=kGh4r1sSU9A
          Levo à boca o suor doce, um pergaminho do teu corpo. Não sei das horas. Não quero saber. Agora sou penhor teu e tudo o resto despromove-se para o lugar da irrelevância. É preciso adestrar este fogo interior que nos deixa em ebulição. Levá-lo à boca de cena na quimera de um vulcão. E saber que as bocas que se insinuam ateiam as centelhas que nem disso precisavam; não se desaproveite a acendalha que abrilhanta a coreografia dos corpos. Sentimos aproximar-se a hora em que o tempo deixa de existir. O tempo que só nós sabemos de cor. Da sua cor, até. Não nos fazemos rogados na tempestiva safra dos corpos. Da pele tua sinto o ardor e a minha carne responde com rima. No santuário de onde nos entronizamos imperadores, só conta o desejo. O desejo desarmado de embaraços. É como se fossemos coautores de estrofes que costuramos na filigrana dos corpos. O fogo já não se interrompe. As veias latejam, febris, na ebulição uníssona. Só os deuses (ou seja: nós) sabem do esconderijo onde bruxuleia a voz túrgida que deitamos para fora. Os olhos não se escondem. Querem saciar-se no tumulto dos corpos. É uma maré que enche. Um mar tropical, quente. Não há armadilhas. Nem ardis. Ou fingimentos. Os corpos têm sua fala na moldura de um vulcão. Até que a lava faz o seu caminho, irrefreável. E repetimos: sabemos de cor cada vírgula do corpo outro. Podíamos desenhar um mapa, de olhos fechados. E não dizemos que é sempre igual. De olhos abertos, cicio umas palavras, as que tomam conta da boca, avulsas. Estremeces. Uma mão afaga o rosto. Desenha umas linhas aleatórias. Julgo que somos nós a dizer o que somos. Agora despojados, parece que somos deuses de vez. Até que queiramos redesenhar a nossa deificação, outra vez e outra vez.

2.8.19

A voz do crepúsculo (short stories #133)


Sébastian Tellier, “La Ritournelle”, in https://www.youtube.com/watch?v=30O92akDeJg
          Juntam-se as vírgulas num monte para onde são atirados restolhos. Não fraquejem as intenções. Os habituais pederastas da História arrastam seus ossos cansados contra a perenidade do tempo. Não se cansam os que cursam as aprendizagens por vontade própria. Se soubessem dos livros desconhecidos, não teriam escolhido essas artes, mas talvez outras. Mas não há lugar às contingências. Em surdina, uma voz eleva-se por cima do céu. Invade tudo em seu redor. Murmura umas palavras, indiscerníveis. Ao fim de algum tempo, desistes de tentar captar o seu significado. Tens esse murmúrio como a banda sonora que acompanha o entardecer. Como se fosse um filme, o entardecer, e tu ator arregimentado a seu favor. Podias supor que palavras escondiam o murmúrio. Dirias que era a voz do crepúsculo. Um pressentimento qualquer, em antecipação da noite que se desdobrava do crepúsculo. De repente, à imagem mental subia o retrato da escombreira para onde seriam atiradas as vírgulas. Não todas, que não pode ser o seu uso indiscriminadamente indevido a justificar a sua extinção. Apostavas que do murmúrio lânguido ecoava um protesto contra os atentados à gramática. Não sabias o que pensar. Por um lado, tens-te purista no uso do idioma. Irrita-te o uso descomplexado de vírgulas fora do sítio. Protestas contra as entorses que vírgulas desfasadas cometem à inteligibilidade das frases. Sabes que não podes fazer nada: a autoria das palavras não te pertence e não cuidas, nem cuidarás, de ser curador dos contratempos gramaticais dos outros. Por outro lado, pareceu-te excessivo aquele murmúrio constante que vociferava contra os ignaros que não sabem dar uso às vírgulas. E suspeito. Paradoxalmente, isso incomodou-te. Depois, conseguiste tirar a prova dos nove: o murmúrio era o ecoar da voz do crepúsculo, no fundo, um espelho nítido onde tu eras projetado. Saíste da noite admitindo que é onerosa a empreitada de nos vermos a partir do exterior de nós mesmos.

1.8.19

Elogio do vagar (short stories #132)


Radiohead, “Motion Picture Soundtrack” (live at Canal Plus), in https://www.youtube.com/watch?v=S_kOpU7k4XU
          Não é só pelas férias: começa a prosperar o descrédito da pulsão da voragem em que se consomem as vidas modernas. Tudo tem de ser feito depressa, e não é por campear a ideia sobre a escassez do tempo, de como as vidas são sempre manifestamente curtas; a voracidade hodierna é uma autêntica pulsão suicida. As pessoas querem apressar o tempo, porque têm medo de ficar com tempo de sobra nas mãos. Ou julgam que, no meio dos seus mil-e-um afazeres (outra doença da modernidade: somos todos reféns da azáfama), o tempo é curto, o que leva as pessoas a toureá-lo com a excelência da velocidade. Há uma tendência contrária que aspira visibilidade. Sublima o vagar, em todas as suas possíveis dimensões, como epítome da qualidade de vida. Não devemos ter pressa para nada, se não somos consumidos pela vertigem do tempo e acabamos por soçobrar na sua infinita fragilidade – que é o espelho da fragilidade de quem se empenha na sofreguidão de tudo. Há livros de filósofos que ensinam a vida pelo parâmetro do vagar (“O Elogio da Lentidão”, de Lamberto Maffei; “O Aroma do Tempo”, de Byung-Chul Hun). Não é só pela entrada em férias que se reivindica um lugar centrípeto para o vagar. Muitos de nós, que têm uma vaga lembrança de como a lentidão quadra com qualidade de vida, devem fazer interior contrição. Conduzimos depressa, não queremos ficar presos no semáforo vermelho, escrevemos depressa, queremos despachar tarefas antes do prazo marcado, dormimos depressa, comemos depressa, irritamo-nos com os que circulam com uma lentidão exasperante, tudo é um turbilhão onde somos presas fáceis do tempo. Talvez o reconhecimento do erro tremendo de querer ser depressa seja o começo para outro comportamento. Não foi a lição daqueles livros que me trouxe a esta ideia. Numa rua, enquanto ultrapassava um velhinho que circulava a passo de caracol, exclamei, a páginas meias com um impropério: “és bom para ir buscar a morte!” Logo a seguir, concluí que esta expressão idiomática é um equívoco grosseiro. Quem vai depressa é que tem pressa de ir buscar a morte.