30.9.19

O mapa da vontade (língua forte)


Patrick Watson, “Luscious Life”, in https://www.youtube.com/watch?v=uc6xbXpMrLU
Não sei das datas esquecidas na intempérie da memória. Os penhores assim credenciados perdem a garantia, esvaziam-se na maciez das mãos que não querem ser promitentes. Elas preferem ser agitadoras, atuar como se fossem um abalo sísmico, despentear a serenidade que se conjuga com a geografia estabelecida. Desmentindo oráculos.
Dou por mim na frágil condição dos vacilantes, desfazendo frases feitas com pontos de interrogação. Podia-se adivinhar a inveja dos que estão cercados de certezas e são capazes de matar por elas. (Faltaria saber se também estão na disposição de serem mortos por elas.) Não é ciúme o que corre nas veias: é comiseração; um profundo apetite de cevar a medula com conhecimento, emprestar todos os pedaços da geografia que for possível. 
Por dentro do mapa da vontade, terçam-se os lídimos versos que são capazes de uma catarse. Às vezes, é preciso uma catarse. Mesmo quando não é preciso: a indulgência disfarça-se na planura onde os corpos tomam lugar, mas esse estado de tranquilidade é paradoxalmente algoz. Deposita à ordem um gordo cheque endossado pela inércia – e nada se confunde pior com a inércia do que a sede de nada fazer por convencimento de que as forças interiores estão exauridas, à mercê dos imperativos laborais. 
Não sei das datas esquecidas na intempérie da memória. Por mais que interrogue a memória, à procura das frases que seriam o perfume salvífico do horizonte. Tenho a impressão que devia procurar outra tenência. Não deixo que os logros disfarçados de apetites atraiçoem a vontade. A vontade precisa de um mapa. Com a perícia dos melhores cartógrafos. Eu dou as coordenadas. Empresto as luzes de que o mapa da vontade está à espera. Na embocadura da fala, terei de atirar as palavras gordas para sublinhar a visibilidade do mapa. Quero que o mapa diga que nada se sobrepõe à vontade. E que a vontade não obedece a regras desenhadas num qualquer estirador. A vontade não se mutila. Só se cala perante o clamor da vontade que a comanda. Como se houvesse um princípio geral da vontade de onde dimanam as vontades parcelares que se jogam quando um determinado equinócio marca lugar.
Não cuido das demandas exigentes. Não arremato os predicados do porvir em formulários bacteriologicamente puros: não cuido de saber os alinhavos de um tempo desmultiplicado em múltiplas dimensões, nem sopeso a importância cabalística do devir. Prefiro a lógica intemporal que se baliza na vontade instantânea. Se há coisa que já devíamos ter aprendido, é que a exaustão da vida não tolera adiamentos ou os majestosos ornamentos que se encomendam a um tempo ausente. 
O mapa da vontade não sabe dessa página. E essa é a língua forte que ele domina.

27.9.19

Quantos chapéus usamos? (Redoma)


Public Image Limited, “Rise”, in https://www.youtube.com/watch?v=Vq7JSic1DtM
Quando somos atores, porque temos de ser atores (uma contrariedade?), falta saber que chapéu usar. A análise não admite falhas, para que o diagnóstico cumpra a função: as capacidades interpretativas do momento e da circunstância exigem perícia, sob pena de o chapéu escolhido ser um equívoco. O melhor critério é guardar na arrecadação do pensamento um número considerável de chapéus, em número que nunca seja por defeito, não vá acontecer que fiquemos destrunfados de chapéu por defeito de análise.
Verificada a análise, sobra outro desafio: saber combinar o diagnóstico com a análise. O viés não pode ser descartado. O chapéu escolhido pode ser o errado. Aparecemos com um chapéu que não combina com a ocasião. O sobressalto é interior, pois não se aceitam as dores pungentes que sobrelevem por ocasião da perplexidade levantada pelos outros ao serem testemunhas da escolha errada. O sobressalto é interior porque, ao dar conta de termos escolhido o chapéu errado, sentimos a desarmonia de um chapéu que não casa com a cabeça, que pedia outro chapéu. A empreitada é sensível e complexa. Ela é tanta a subjetividade que é elevada a probabilidade de se desacertar no chapéu.
Na hipótese de se sucederem os erros (de análise ou de diagnóstico, ou ambos), sucedem-se os chapéus descontextualizados. A cabeça fica em desmoda. Não será o fim do mundo, a menos que a apoplexia tome de assalto o indivíduo ao saber que os outros dele desdenham pelo equívoco da escolha (o que não deve ser causa de apoplexia). A dificuldade está na elevada subjetividade da escolha, mas não é o único embaraço: o catálogo abundante de chapéus não simplifica a tarefa. É um dos males dos modernos tempos que são estes: quando os cânones ensinam que a concorrência é um dom por aumentar o leque de escolhas, o maximizar da concorrência traduz-se numa miríade de possíveis escolhas, ramificando a confusão. Vamos à caça e acabamos por ser presas. É um sinal de outra toleima da modernidade: a pulsão patológica para tornar as coisas complexas.
Não seria má ideia repensar. Ignorar as convocatórias da complexidade, o torniquete das ardilosas interrogações, aquelas que soam a artificial, as que se acotovelam num lugar exíguo porque o posicionamento filosófico assim exige. É preciso revisitar a arrecadação do pensamento e fazer uma depuração dos chapéus, emagrecendo o inventário. Não precisamos de ser a desmultiplicação complexa de nós mesmos. Não precisamos de trazer a tiracolo, para eventuais manobras de emergência, uma chapelaria abundante. Repensar exige simplificar a personalidade. Saber fazer uma triagem do que interessa, recusando as demandas acessórias ou incidentais. 
O que está em falta é sabermos descobrir a redoma que há em nós, para nos isolarmos das falsas demandas lubrificadas pelos estetas da modernidade. Não se trata de um conservadorismo pueril, ao recusarmos esta modernidade. É um erro trazer o pensamento por corredores tão binários. A redoma em falta é um momento de lucidez. Uma bússola necessária para quem perde o sentido das coordenadas. Na redoma, só cabe um punhado de chapéus. Porque temos de simplificar a personalidade que há em nós.

26.9.19

Povoação (short stories #161)


The Smashing Pumpkins, “Mayonaise”, in https://www.youtube.com/watch?v=MElfYleGIVU
          Desaprendo os alicerces gastos que foram tirocínio excessivo. Se o entardecer me diz algo, procuro emoldurar as palavras em passeios alindados pelas árvores floridas fora do tempo, procuro guardá-las num recanto da memória. Passo as mãos pelas paredes onde estão embebidas páginas e páginas da História. Talvez sinta melhor os vestígios da História, para dela ter melhor entendimento. Olho demoradamente para as mãos. As linhas tracejadas são um mapa, mas não consta que a cartografia das mãos tenha mudado por ação das paredes embebidas em História. Dizem-me que os olhos revelados traduzem as palavras indecifráveis, um caleidoscópio que se revela pela manhã. Dizem-me: que essa é uma linguagem universal, não precisa de gramática nem de tradutores. É possível que a linguagem dos olhos seja essa quimera. Mas as pessoas parecem fugir dos olhares. Furtivos, os olhares reproduzem um vazio, ou uma imensidão que se restringe a quem tutela esse olhar. É como nas povoações. Vemos o casario do lado de fora, como se o casario fosse os olhos de um todo. Mas é o casario que nos observa, porque os nossos olhos de observadores esbarram nas paredes que escondem o pano de fundo, as vidas que se vivem dentro das casas. Não é que seja dever esquadrinhas as vidas alheias. Contentamo-nos com a superficialidade das paredes das casas, o autêntico bilhete postal da povoação que demandamos. Os passeantes arpoam o seu anonimato, recíproco, equânime. A povoação é feita de habitantes, mas quase todos se desconhecem. É o sortilégio que precisamos. Consagrar a povoação e desaproveitar os soezes convites à autópsia das vidas alheias, seguida de juízo a preceito. O casario amontoado verifica a estética. Quando chegamos à povoação, aprendemos o casario e não sabemos das vidas dos moradores. Quando deixamos a povoação, saímos mais ricos pela estética do casario passada a pente fino. E sabemos que há um crescimento interior na cartografia dos sentidos que recebe a indulgência dos lugares visitados. Nem sempre as vidas das pessoas colhem a riqueza que interessa, se disso depender sondar os recantos dessas vidas. 

25.9.19

Filiação


Mão Morta, “É um jogo”, in https://www.youtube.com/watch?v=CJ-TAt2bEJ4
Guardo no peito o sismo em que me fiz gente. Discordo do que tenho de discordar, imperturbável na idiossincrasia singular. À noite, não me avassalo na transfiguração dos ascetas; prefiro deitar o olhar nas sombras que invadem o quarto desde a janela, desenhar-lhes os contornos que julgo apresentáveis e nas entrelinhas congeminar as estrofes inauditas. 
Não tenho por tença os bolores, nem os que são ramificações que exortam o reavivar de outras vidas. A química linear não me deixa transbordar do leito em que me refaço, e não o vejo como torção conservadora. Contam mais os olhos, o que conseguem ver entre a miríade de imagens que se despejam sobre eles. A decifração das almas não corre por minha conta. Se me exigem palavras, devolvo o silêncio. Se me pedem o silêncio, guardo para mim a prosa heurística. 
Dizem que procuramos a árvore matricial. Procuramos a filiação, qualquer género de filiação, porque somos humanos e os humanos desaprovam a orfandade. Dizem: a vida com os semelhantes é imperativa e que somos obrigados a subscrever os códigos de conduta, assimilá-los como fazem os bons estudantes, sob pena de arrostarmos o peso de um cadáver antes do tempo. Não me configuro pelas coisas que se abatem contra a vontade. Tenho-as por extemporâneas, um punhal que se aviva na carne que não o pediu. Uma ingerência, escusada como acontece com as ingerências. Dantes, pensava que errava pelas ruas nómadas da cidade: não conseguia descobrir uma árvore sequer entre a floresta de cimento, quanto mais uma a que fosse atribuído o papel de árvore centrípeta. Desmentindo os preceitos, não sabia o verbo da orfandade.
A filiação medra dentro de cada um. À vontade de cada um, sem regras – ou com as regras afiveladas sob a batuta da vontade individual. Com as representações, necessárias ou oportunistas (não interessa), que se configuram nos figurinos desenhados pelo pensamento. Desconheço filiações forçadas, seduzidas de fora para dentro, ancoragens que não terminem numa qualquer modalidade de dependência. A dependência que encerra um viés, adulterando a pureza do ser quando se expõe aos outros, contaminado. 
Insisto: a filiação medra dentro de cada um. E cada um escolhe a filiação onde coabita um suporte de vida. De pessoas e de ideias. E de sentimentos. A filiação assim orquestrada só tem sentido se for exacerbada. Com as regras sem espartilhos exteriores, apenas ditadas pelo consenso dos atores que intervêm na peça que se amotina, incapaz de pactuar com anestesias.

24.9.19

“Lavo as mãos todos os dias”


Jens Lekman, “Become Someone Else’s”, in https://www.youtube.com/watch?v=yoWHNDgGtbg
“Como são duras as feridas enquistadas nas mãos”, lamentava-se, enquanto percorria as imagens mentais das acusações que sobre ele pendiam. Tinha a certeza que não havia, não podia haver, piedade na batalha em que se metera. Os adversários, como ele, queriam vencer o pleito. Para muitos, o poder é um anátema, e isso talvez ofereça uma teoria geral para a demissão da cidadania. Não importavam, essas elucubrações. Haveria, por uma vez, de não se entreter com as reticências da teoria e olhar de frente para as coisas pragmáticas da vida, para as demandas que tinham alvorada com o seu acordar e nem acabavam por se deitar. 
Ele queria experimentar o poder. Sabia do preço que tinha de pagar. O que mais doía eram as acusações em que não se revia: mentiroso, desonesto, oportunista, arrivista, corrupto. Esta era a pior, a que tocava na medula. Com isto, não admitia que as outras acusações tivessem um fundo, mas acontece que em certos aspetos da vida tudo obedece a uma questão de grau. “Assim como assim” – perguntava a si mesmo, com a necessidade de se atribuir algum crédito na eventualidade de um deslize – “quem nunca mentiu, quem nunca teve ao menos um decaimento na desonestidade, quem nunca tirou partido de uma oportunidade em proveito próprio, quem não ambiciona subir na escadaria do reconhecimento social?” Admitia: que já mentira, já fora (só um bocado) desonesto, já fora credor de oportunidades que soube procurar, e que não desdenhava o estrelato.
O que não aceitava, era o labéu de corrupção. Ficava fora de si. Uma vez, um adversário disse-o na televisão, com todas as palavras, à sua frente, arrastando-o para a lama da corrupção. Perdeu as estribeiras. Foi a única vez que aconteceu em público. E uma só vez chegou para destruir a sua reputação fleumática, da serenidade com que se dirigia ao público, como olimpicamente fazia de conta quando os adversários usavam ardis para o apanharem em falso. 
Daquela vez, toda a gente ficou atónita. Com a reação desabrida e com as palavras que deixou escapar em defesa da sua honra: “Corrupto, eu? Ora repita, repita!”, enquanto esbracejava e os olhos pareciam querer sair do lugar. E como o adversário estava a deliciar-se com o prato servido, correspondeu à demanda e repetiu: 
Queira vossa excelência saber, e para que conste, que é um corrupto da pior igualha. Tem as mãos imensamente sujas. 
Sem demora, retorquiu, para gáudio dos adversários e da boa disposição, em geral: 
Pois saiba vossa excelência que não tem fundamento a imprecação que me dirige, pois se todos os dias trago, e bem, lavadas as mãos minhas.

23.9.19

O amor não é ainda


Andrew Bird, “Harvest Moon” (Neil Young cover), in https://www.youtube.com/watch?v=MqgOBZ7wGPg
(Mote: Neil Young, “(…) Because I’m still in love with you (...)”, in Harvest Moon)
O amor não rima com a palavra ainda. Não pode rimar. O amor é de uma exigência tal, que dizer “eu ainda te amo” peca por defeito. O “ainda” supõe que o amor murchou. Que vai a caminho da extinção, provavelmente. Ora, por dentro da sua totalitária exigência, o amor não admite o arrefecimento que transporta a palavra “ainda”.
O amor é, que se conheça, o único totalitarismo de boa estirpe. Exige muito dos amantes. Não é que cada amante possa exigir do outro. Se assim fosse, haveria um cerceamento da liberdade que não é aceitável na grandeza intrínseca do amor. É um desafio para cada um dos amantes. No seu âmago, enquanto se entregam no altar sublime do amor. Quando alguém diz que ainda ama o outro, é como se houvesse um arrefecimento do amor e ele já não fervesse com a mesma intensidade. O amor não se mede numa escala de intensidade. Ou existe, ou está ausente. Como é totalitarismo de boa estirpe, é também dos poucos domínios onde se tem de aceitar o pensamento binário. Ou existe, ou está ausente.
Pode acontecer que as pessoas enamoradas que admitam este seu estado de espírito não tenham consciência da utilização das palavras. Dá-se uma certa banalização da linguagem, com a adulteração de palavras que, com o uso corrente, se reinventam com um novo significado. Dificilmente parece ser o caso da palavra “ainda”. Ainda é, ainda e sempre, ainda. Não está aberto a uma reinterpretação através de um uso adulterado. Sai reforçado o equívoco em que laboram os que deixam cair a palavra “ainda” na frase “amo-te”. Ou então, esses amantes declinados precisam de uma reconfiguração do amor, do significado do amor.
Dir-se-ia que declarar “eu ainda te amo” é preferível à ausência da declaração. Dir-se-ia que os amantes precisam constantemente de se recordarem um ao outro do que os cimenta num uníssono. Mas os amantes não dão conta que declarar “eu ainda te amo” é uma frase que pode corresponder ao suicídio do amor. O amor não suporta a teoria do arrefecimento global. O “ainda” que se funde na declaração de um amante arrepia caminho ao congelamento do amor. Com o risco de não haver processo de descongelação que o valha.

20.9.19

(Descobrira) A sensatez como método de engate


The Sisterhood, “Giving Ground”, in https://www.youtube.com/watch?v=SX5cfMMM-LI
Foi por acaso. Um dia, pediu-lhe uma opinião sobre um problema pessoal. Ficou perplexo. Lida mal com problemas pessoais, a começar pelos seus. Os dos outros são um corpo estranho e, ao contrário do que estava vulgarizado (dizem: é mais fácil resolver os problemas alheios, porque não são os problemas próprios), ele sentia-se sem jeito quando sentia esta cumplicidade existencial como uma intrusão. 
A custo, esboçou uma teoria sobre o problema e, usando as suas reconhecidas capacidades de organização do pensamento, entreteceu um fio condutor que ia da análise ao diagnóstico. Por cautela, concluiu advertindo que seria assim que procurava resolver o problema se ele fosse seu (sem ter a certeza do que dizia) e que, ainda assim, não tinha a certeza do que acabara de sugerir.
Foi como se o clique tivesse desatado e ela, inebriada com tanta sensatez (“não estou habituada a que os homens tenham sensatez”), passou para o papel de seduzida. Ele era capaz de jurar que não puxara pelos galões da sensatez para a seduzir. Ou melhor: não recusava a possibilidade de um affair, mas não usou a sensatez como estratégia para a seduzir. Assim como assim, ele nem se tinha em boa conta como tutor da sensatez e muito menos lhe era dado a saber que havia mulheres que davam o flanco (por assim dizer) quando banhadas na água da sensatez exposta por quem a elas se dirigia, sobretudo se elas se participassem à luxúria.
Não se fez rogado; um homem que se preze – e ele prezava de o ser, no âmago de uma certa masculinidade que hoje se convenciona adjetivar “tóxica” – não deixa passar uma possível conquista entre os dedos. Naqueles tempos mortos, em que o espaço era dado ao pensamento, continuava surpreendido como o dom da sensatez podia ser o detonador de um engate. 
(Confirmando a masculinidade tóxica, pois o termo é denotativo de unilateralidade, quando a sedução exige reciprocidade. Mas essa era uma análise a que ele não conseguia chegar, dada a educação que tivera e a convivência com homens que, de uma certa forma, “coisificavam” as mulheres.)
Estava atónito. Ele há mulheres de vários géneros, como homens de vários géneros. Como a lascívia de uma relação carnal era compatível com a sensatez como seu detonador, era algo que não conseguia explicar. Porventura, porque todos temos um pouco de contrários, procurando através da sensatez o equilíbrio que propositadamente desaparece quando os corpos se enredam. 
Aprendeu: a sensatez dava frutos. Recolhia esses frutos, a preceito com a sua imensa masculinidade, e do passa-a-palavra sobressaía, pelos testemunhos dos amigos mais próximos, o sucesso da estratégia. Elas não diriam ser uma estratégia, mas tão pouco sabiam dos processos interiores do raciocínio. Talvez apenas se importassem com a volúpia e se entregassem a uma posição inicial de fragilidade, como quem está carente de sensatez como ponto cardeal para o demais. 
A páginas tantas, estava cansado de ser um farol de sensatez. Não estava cansado do demais.

19.9.19

O guarda-redes de hóquei em patins que tinha uma interminável confiança na bondade dos Homens


Joan as Police Woman, “The Magic”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZPqVig-ggMw
“Todos deviam pôr os olhos no guarda-redes de hóquei em patins”, advertia, sem querer passar por tutor da moralidade ou impositor de um imperativo categórico que todos tivessem de cumprir.
(Porventura, o “todos” na frase podia ser considerado excessivo, se as suas intenções fossem treslidas. Se preciso fosse, ele esclarecia que “todos” não convoca uma interpretação literal.)
O guarda-redes de hóquei em patins tinha um depósito sem fundo na espécie humana. Era como se fosse o banco central da humanidade, com conta aberta, e a descoberto, sem limite de fundos, a favor da bondade intrínseca dos Homens. Em cada episódio que soava a soez desvio de uma alma humana, o guarda-redes de hóquei em patins congeminava uma teoria justificava do comportamento desviante. Ele teorizava, partindo deste princípio: se o comportamento era desviante, algo de exterior ao indivíduo estava na origem do desvio. A pessoa, sozinha, nunca era culpada de nada que a retirasse do plácito da bondade.
Houve um caso em que um homem foi acusado de vários assassínios. Em julgamento, não se arrependeu. Confessou tudo e, provocando os costumes, anunciou que se o tempo voltasse atrás faria tudo igual. O guarda-redes de hóquei em patins investigou. Chegou ao seu conhecimento um punhado de circunstâncias (que não quis revelar, para não violar a lei geral de proteção de dados) que era o lastro para o comportamento desviante. No final, revelou que o criminoso foi vítima das circunstâncias que o sitiaram. Fosse o guarda-redes de hóquei em patins o juiz e a absolvição teria sido consumada.
Noutro caso, um casal (homem e sua amante) urdiram uma armadilha para retirar do mundo dos vivos a consorte da segunda. A sociedade insurgiu-se, censurando o estratagema e punindo o homicídio em dobro – pelo homicídio em si e com a agravante de a trama ter sido montada por dentro do adultério; e a sociedade dos bons costumes não tolera o adultério, sobretudo quando é cometido pelos outros (essa deletéria reticência). O guarda-redes de hóquei em patins saiu em defesa do casal ostracizado. Exortou os concidadãos a despojarem-se do preconceito e a sublimarem o amor que levou o par a extravasar dos parâmetros convencionados. Fosse o guarda-redes de hóquei em patins o juiz e a absolvição teria sido consumada.
Depois, o guarda-redes de hóquei em patins arranjou explicações para um político que tinha sido apanhado em contumaz mentira. Quando já o político tinha caído em desgraça, arrastando o seu cadáver (político), o guarda-redes de hóquei em patins, que nunca votou neste político, explicou, uma por uma, as razões da mitomania. As mentiras estavam perdoadas. Fosse o político a votos outra vez, teria o voto do guarda-redes de hóquei em patins.
“Vejo sempre o guarda-redes de hóquei em patins com um sorriso no rosto. Sempre. É o mínimo denominador comum – a pior das hipóteses. Vê sempre o lado cheio do copo semivazio. Não aceita a maldade dos outros. Prefere encontrar os rudimentos da bondade. Não se cansa de defender que a bondade é intrínseca. Já o ouvi dizer: ‘se o Homem tivesse sido criado para a maldade, não tinha sido dotado de razão. Não se distinguia dos outros animais’. E assim segue pelos dias fora, amanhecendo em rima com o sol radioso.” E depois percebeu que o guarda-redes de hóquei em patins tem esta inata condescendência por causa da função: “assim como assim, o guarda-redes de hóquei em patins está habituado a ser a muralha que impede os golos do adversário. E dá o peito às bolas, sem tergiversar.”

18.9.19

Petição de princípio (short stories #160)


New Order, “Ecstasy”, in https://www.youtube.com/watch?v=2jLVV-eOiAw
          Pertenço a uma casta sem paradeiro. Não deixo que as páginas amareleçam nem que sejam assaltadas pelo tempo estrénuo. Se duvido, persisto na consagração da pergunta, como se fosse um banquete para alma. Leio. Observo. Pergunto outra vez. Sem o sono ausente, que é embaraço. Dizem que ao avançar na idade precisamos de menos sono. Sobra o tempo; mas todos protestamos, em coro com a moda dos assoberbados, que faz falta ter mais tempo para o que se não tem tempo. Aproveito o mar para tirar notas. O luar para decifrar músicas. Dou às mãos a maresia que se insinua desde um lugar distante e se faz cais na minha morada. Da noite não espero nada, se não sonhos. Um património imaterial. Os sonhos que vêm de uma fábrica de prodigalidades. Às vezes, não sei que palavras encontrar. Não sei que palavras escolher, depois de satisfeito o dilema precedente. Revolvo o processo desde as fundações: pode ter acontecido que as palavras encontradas sejam órfãs, o que contamina o processo de sua escolha. Não importa. É sempre preferível ao silêncio, menos quando o silêncio é a poesia que se contempla na embocadura da janela. O vento frio tutela o corpo. Não tenho frio, apesar de atestar tratar-se de vento frio. No meio de um nada, um vestígio é uma fortuna. Esse é o sortilégio: demandam-se os pequenos nadas que se transfiguram em fortunas desmedidas. No palácio da escassez, um pequeno rudimento aromatiza a literatura de que somos intérpretes. Os pequenos nadas não se compadecem com as empreitadas soberbas. Amo o amor como o amor me traz por amo. Sou estuário largo, com uma distância de perder de vista. E, todavia, só albergo quem tomo por amor. Ocupa todo o estuário que sou. Com a noite a meio, repousando no ombro lateral, só para sentir a pele macia que me devolve o sono pouco. E desses poros extrair, como ouro maior, a impressão digital que faz de mim bússola.

17.9.19

Confissões de um pária


The White Stripes, “Seven Nation Army”, in https://www.youtube.com/watch?v=0J2QdDbelmY
(Mote: em momento introspetivo e, ao mesmo tempo, de uma, porventura, excessiva autoavaliação, uma pergunta de partida: pode um intelectual escrever sobre o que sentiu ao ser espetador de um jogo de futebol sem diminuir os seus pergaminhos?
Já não ia ver um jogo de futebol há muitos anos. Nos estádios, nunca fico satisfeito com as condições do lugar: se é próximo do relvado, perde-se a noção do espaço; se é num lugar altaneiro, perde-se a emoção de estar perto dos intervenientes. É um espetáculo caro, sopesando a qualidade com o preço que se paga. E depois há a audiência. É o pior de um jogo de futebol. Gente invariavelmente de cabeça quente, incapaz de ser imparcial, incapaz de não destratar o adversário – é num jogo de futebol que por tanto destratar o adversário mais se aproxima do conceito de inimigo, o que é um paradoxo no desporto. O desporto foi concebido nos antípodas da guerra.
Fui ver um jogo de futebol da equipa que sempre foi a minha favorita. Não ganharam e jogaram mal. Do mal o menos. Como fui desaguar num sector do estádio onde estavam acantonados os adeptos da equipa da minha preferência, levei um banho de adeptos da minha equipa. A páginas tantas, senti uma pulsão interior e quase irreprimível – mas também indizível – de apoiar o adversário. E não era por causa da má figura da equipa da minha preferência. Era por causa dos adeptos da equipa, primatas, boçais, entoando incansáveis (na perspetiva deles, apenas) cânticos que, entre outros dislates, juravam que o maior amor que sabem existir é dirigido à equipa que dizem “amar”. Como o jogo não estava a correr bem, os adeptos eram esquizofrénicos. Tão depressa eram capazes de “dar a vida” pela equipa como, após uma jogada mal terminada ou um ato falhado de um jogador, partiam para o insulto fácil. 
No fim da contenda, ficámos retidos pela polícia quase meia hora. Para evitar querelas entre os apoiantes das duas equipas, se acaso dessem de caras uns com os outros à saída do estádio. O que é sintomático da irracionalidade que ferve no sangue desta gente, que não percebe que um jogo de futebol é apenas um jogo de futebol, como uma vitória, ou um empate, ou uma derrota são apenas isso mesmo, vitória, empate ou derrota. Nessa quase meia hora, os adeptos entraram em conciliábulo. Devo ter conhecido, só à minha volta, uma dezena de catedráticos da especialidade. Se houvesse dúvidas, ter opinião quase sempre não quadra com entendimento. 
À saída do estádio, estava encanitado. O mau humor não provinha do empate da equipa da minha preferência. O mau humor fora requentado pela minha incapacidade de identificação com o clube da minha preferência quando tenho por perto uma turba que partilha comigo esse elemento. Apeteceu desapetecer de ser a equipa da minha preferência – fiquei vacinado, espero que de uma vez por todas, para não empregar o termo “adepto”. E tal aconteceu pela antinomia com os adeptos que foram ao estádio apoiar a equipa que eu também fui apoiar. (Expressão que é excessiva. Sou um espetador fleumático, não entro no coro dos cânticos tribais e nem sequer dou um salto da cadeira quando a equipa da minha preferência marca um golo.) Da próxima vez, prefiro assistir ao jogo ao lado dos adeptos da equipa adversária.
O mal de tudo isto pode ser meu, admito. O que me deixa sossegado.

16.9.19

Bolsa de valores


Killing Joke, “Eighties”, in https://www.youtube.com/watch?v=x1U1Ue_5kq8
“Bondade, humildade, mansidão e paciência.” 
Apanhado em falso (assim acontece com a única missa a que não posso faltar), as palavras do sacerdote ecoavam em repetição. Dizia o preclaro cura, “estas são as virtudes em recessão, as virtudes que estão caras”. Já tenho idade para não atribuir importância às palavras dos pregadores de templos religiosos, pois o agnosticismo é o magma da identidade. Não consigo. Na missa a que não posso faltar, devo ser a pessoa mais atenta ao discurso do sacerdote (que os restantes assistentes da eucaristia perdoem o atrevimento). O padre insiste que só chegamos a deus se formos intérpretes daquelas virtudes. Caso contrário (não o disse, mas pressentiu-se), seremos almas sob zelosa inspeção divina, e não é de crer que a incomensurável bondade de deus chegue para a redenção de todas as almas tresmalhadas.
(Por esta altura, senti comiseração dos crentes. Como são humanos e têm um impecável cadastro de imperfeições, suponho-os sobressaltados pela elevada probabilidade de não conseguirem chegar a deus. Esta é uma vantagem comparativa dos agnósticos: não querem chegar a quem não admitem existência. Podem ser sossegadamente imperfeitos.) 
O discurso dos valores é uma moda protagonizada por alguns tutores da moralidade: os valores, os bons valores que cimentam uma boa sociedade, estão em crise. Sobretudo entre os mais novos. Não concordo que as gerações mais novas estejam em falta com os bons valores. Se o problema existe (o que, insisto, é suscetível de contestação), ele vem do passado. É legado das gerações mais velhas. Quando alguém pede aos mais velhos para ensinarem valores aos mais novos, mais parece uma pulsão redentora dos ensinadores (ou de quem lhes encomenda a empreitada). 
Por hipótese, considere-se a validade do levantamento que convoca o ensinamento dos valores aos mais novos. Somos nós, os mais velhos, a arcar com a tremenda responsabilidade de os subtrair à orfandade de valores. Caso contrário – e sigo o que julgo ser o raciocínio tácito –, os jovens vão crescer sem valores, construindo um futuro que tende a desconstruir-se na anomia interna em que, já não jovens, vão enformar as suas existências. 
Para ser um ensinador de valores, teria de perfilhar o diagnóstico anterior. Não é o caso. Admitir que os jovens precisam de um banho de valores é pressupor que a educação na escola foi superficial, banal, um desperdício. Mesmo que partilhasse este diagnóstico pré-apocalítico, não faria de corretor desta bolsa de valores. A função pertence ao meio familiar e depois aos próprios que procuram (ou não) valores que os conduzam. Por outro lado, os valores não são objetiváveis. Não posso ter a pretensão de ensinar o que considero serem os meus valores aos outros (se existirem, os valores). É uma intromissão na esfera individual alheia. Não gostaria que, enquanto jovem, fosse sujeito passivo de uma formatação de valores. Se não aceitaria estar no lado passivo desta relação, não concebo a hipótese de me colocar no lado ativo. 
A bolsa de valores é uma teia complexa onde se sopesam muitos elementos: o substrato familiar, o ambiente em que crescem as crianças (também expostas ao meio escolar, umas às outras), a envolvente cultural, o desenvolvimento das suas personalidades, as circunstâncias, os acasos, as contingências. Ensinar valores é dar por adquirido que os (vou chamar-lhes assim) valores adquiridos, um certo cimento do coabitar social, são os valores certos. O que pode não ser o caso, através da lente de quem os observa. 
A bolsa de valores convoca à autoaprendizagem. Um processo que dispensa uma intervenção exterior carregada de paternalismo e de uma formatação dispensáveis.  

13.9.19

A mulher é o futuro do Homem?


Portishead, “Glory Box” (live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=SVX2adpyInM
(Antecipação da conferência com o mesmo título na Casa da Música, em 14 de setembro de 2019)
         Como posso fazer uma incursão no assunto sem me acusarem de misoginia? Como posso explorar o tema sem me acusarem de conservadorismo?
(Que se há coisa que não sou é misógino e conservador – e nem aceito que me digam, com um paternalismo indulgente, que sou, mas não dou conta de o ser, que não reconheço legitimidade a julgamentos que sentenciam de fora o que sinto por dentro de mim.)
Como posso elaborar sobre a interrogação sem cair nos excessos marialvas que abjuram o feminismo de taberna, nem incorrer no discurso moderno e bem-pensante da “filosofia de género” contaminada por generalidades e pensamento intelectualmente frívolo?
(Que ele há um terreno imenso entre os dois campos e, todavia, os que apascentam em ambos campos recusam a admitir a sua existência.)
Como posso não ser treslido se argumentar que esta lábia binária é reducionista, que atenta contra os próprios pressupostos de algum pensamento de vanguarda no contexto da “filosofia de género”, ao teorizar sobre formas alternativas de identificação sexual que não se reduzem aos arquétipos da “mulher” e do “homem”?
Como posso interrogar as construções conspirativas que endossam para a geração presente a fatura das atrocidades cometidas pelas gerações antepassadas, para provar que não é razoável imputar responsabilidades aos “homens” de hoje (generalização limitada, concedo) pelas inaceitáveis desigualdades de antanho?
Como posso encomendar aos marialvas, em suas praças de touros acantonados, o silêncio antes de arrotarem dislates que desprezam as mulheres, mas que os apoucam mais a eles?
Como pode alguém tirar um oráculo da algibeira para responder à pergunta que é a casa da partida (deste texto e do debate na Casa da Música)?
Como posso denunciar o maquiavelismo que se insinua na inversão de papeis? Como posso adivinhar que “a mulher” pode ultrapassar “o homem”, sendo essa a condição imprescindível para um futuro habitável? 
Como posso garantir que “a mulher” corporiza os valores benévolos, catalisadores, heurísticos, que são recusados “ao homem” enquanto patriarca da espécie? 
Como posso admitir a mulher é intrinsecamente propensa à bondade mercê da sua condição de mãe (existente ou potencial), se essa argumentação naturalista é a que serve de ponto de partida para recusar as diferenças biológicas entre mulheres e homens como esteio de uma desigualdade caucionada pela natureza?
Como posso ser convencido que “as mulheres” são diametralmente opostas “aos homens”, se este discurso incorre num vício ontológico que nega a validade da retórica que denuncia a desigualdade entre homens e mulheres, estribando-se num pressuposto (a desigualdade) que é o objeto que essa retórica pretende combater?
Como posso antecipar que a transfiguração de papeis, com a “matriarcalização” da sociedade, devolve a pureza sanitária à espécie, sendo condição de partida para o restabelecimento do otimismo antropológico? 
Como posso ser levado a crer que a substituição do “Homem” pela “Mulher”, como sinónimo da humanidade, é o perfume em falta para erradicar os tremendos erros congénitos que são o lastro da história da humanidade?
Como posso perfilhar uma grelha de leitura que diagnostica “a mulher” nos antípodas “do homem”, se somos todos feitos da mesma massa, de sangue e carne e ossos e emoções?
Como posso não ser assaltados por pesadelos que evocam a aranha viúva-negra, que mata o macho como corolário da cópula, quando pela tela mental passam imagens de feministas exacerbadas (sem ser, outra vez, acusado de misoginia)?
Concluo que o melhor critério é deixar todas as interrogações sem resposta (como se fosse um coito interrompido).

12.9.19

Outubro não pode esperar (short stories #159)


Nils Frahm, “Human Range”, in https://www.youtube.com/watch?v=akYE_PAZ5Bg
          Alvorada. Assim como assim, o sono já fora banido há algum tempo. Preciso de um soro que avive o sangue. Preciso de precisar de alguma coisa. O calendário em cima da mesinha-da-cabeceira funciona como uma guilhotina. Lembro-me de coisas várias, avulsas na sua ordenação, sem ligação entre elas. Abro a janela. Já sinto um aroma a outubro. Não sei descrever o aroma a outubro; sei apenas que este é o aroma a outubro. Falta muito para outubro? Olho para o calendário, que me dá a resposta. Ainda falta. Determino que outubro não pode esperar. Não podem esperar as árvores que esperam as folhas caducas. Não podem esperar os rostos melancólicos dos que entram em outubro como a antecâmara da tortura que pressagia o inverno. Não sou como eles. Recebo outubro preparado para o abraçar demoradamente. Agradeço. Outubro consagra o fim do tempo quente. Decreta o fim do suor ansiolítico. Talvez migrem os pássaros que, como as pessoas (calculadas em sua maioria), desprezam o outono sombrio, as primeiras chuvas que se instalam, o ázimo da luz baça, o mar tempestuoso que anuncia intempéries sem amparo. É alvorada e eu ainda aqui, como se estivesse despojado na cama a pensar no que devo pensar, sem saber que o pensamento pode transfigurar a indolência. Não deve ser preguiça (sussurro, em autocondescendência). Não tarda a tarde e não me parece que tenha feito do dia uma utilidade. Sinto-me cercado por um insólito pesar: tenho a impressão que alguém conspirou contra o calendário e as suas folhas diárias ficaram imóveis. E outubro nunca mais chega. Diria que as folhas do calendário andaram para trás e fez-se agosto, outra vez. Pode ser o sono a entaramelar-se na lucidez e já não sei da linha exígua entre lucidez e sonho. Pode ser que haja uma data inscrita numa pedra, a data centrípeta de onde tudo desabrocha. E a data se agigante ao ouvir dizer que outubro não se demora. Contra as profecias dos almirantes do desassossego, os galanteadores doestio, que vociferam contra outubro, acusando-o de ser extemporâneo. Estão errados. Outubro não pode esperar. Faça-se outubro em setembro.

11.9.19

As palavras que não são ditas


Nick Cave and the Bad Seeds, “Magneto”, in https://www.youtube.com/watch?v=I4aF-MDumFg
Escolhem-se as palavras tangentes àquelas que consideramos impronunciáveis. Não é tabu; dir-se-ia ser a compostura, essa diplomacia disfarçada, a fazer o seu caminho, travando a consciência antes que ela perca as medidas. Há as palavras que não dizemos. O pudor, ou a interiorização das suas más consequências, ou apenas uma irritação semântica, um nada que, todavia, se faz um tudo, tanto que a palavra é travada na falésia da boca. 
Ou podem ser palavras que não importa dizer. Importunam. Ferem – ferem quem as profere, ferem quem as ouve. São archotes lançados contra a lama onde decaem os inocentes que por elas são arrastados até a esse lugar. Por assim serem, são palavras que congeminam a indecência de quem as tutela, o que pode ser capaz para conter a sua irradiação. 
Ou podem ser inoportunas, porque a dança em que se combinam tempo e circunstância não é legado para a sua revelação. As imagens são fortes e podem causar dores pungentes, inscrevendo essas palavras no dicionário das palavras que são proscritas, propositadamente proscritas, sem que haja qualquer laivo de censura. Diz-se: às vezes, mantém-se o silêncio como cura antecipada para os males que o seu contrário podia semear.
Ou podem não ser ditas as palavras porque não apetece dizê-las. Há um sortilégio sem teoria na escolha das palavras. Um dia, uma certa palavra não se coíbe de aparecer, resplandecendo no vocabulário. Noutro dia, por mudança de estética (ou apenas de humor – ou outro critério), a mesma palavra submete-se ao exílio forçado, pois quem a tutela não quer que conste da gramática do momento. O exílio nunca é perene. A qualquer momento, as preferências jogam-se noutro sentido e não é de estranhar que a palavra banida seja resgatada do degredo a que foi condenada. 
Existem palavras que sejam património imorredoiro do vocabulário em exílio? Há pessoas cavalheiras, de fina educação, que não usam o calão. Não se coíbem de o usar quando perdem a cabeça, ou em privado, o que não abona a identificação do calão como vocabulário exilado. Há palavras que não são usadas por pertencerem ao exterior do vocabulário conhecido – delas não se pode dizer que são palavras que não se dizem, pois não são ditas por delas haver desconhecimento. E depois há as palavras que não são ditas no diálogo estreito entre duas pessoas, porque essas são palavras que esbofeteiam o outro, ou imprimem a transgressão (quando as pessoas são autoimunes à transgressão), ou fermentam a provocação (e os seus efeitos são nocivos).
Há sempre palavras que não são ditas. Mas não há, na constelação que são os falantes de um idioma, uma única palavra que deixe de ser dita. A menos que esteja por inventar.

10.9.19

Discos perdidos


dEUS, “Slow”, in https://www.youtube.com/watch?v=h9OILKwaFNA
- A memória é uma representação.
Consideravas um desprestígio, a caução ilícita do tempo que davas por perdido. Falavas do passado. Mas falavas dele como se o abjurasses, não por dele teres vergonha, mas porque mergulhar nas memórias era equivalente ao ultraje do tempo animado. 
- E mais digo: aqueles que não se desligam das memórias deviam ser condenados ao seu próprio cárcere. Quero dizer: deviam ser condenados à privação do tempo presente. E tal devia ser visto como uma pena severa, por mais que estipulassem o seu contrário. 
Intuías absurdas, as memórias. Era das poucas coisas em que não admitias tolerância. Ele há tanta gente credora de tempo – as pessoas que morrem antes do tempo; as pessoas que se angustiam por terem a noção de que o tempo à sua mercê é uma medida por defeito; as pessoas que acabam por ser maiores do que o tempo que lhes é outorgado – que não se podem legitimar as lágrimas vetustas de quem regressa constantemente ao tempo pretérito. Se são reféns das memórias, que se limitem a vivê-las em privado. Não querias arrastar considerações sobre a iniquidade, porque percebias que as medidas do tempo não são lineares para duas pessoas e para as suas diferenças. 
- Por isso insisto que a memória é uma representação. Quero dizer: a contrafação do único tempo que não se desgasta na poeira ancestral, e que se perde em cada instante em que a memória responde uma convocatória e ultrapassa a respiração dos poros. É uma representação, a memória. O esbulho da transcendência do presente, que sucumbe perante o apelo do tempo puído. Uma autofagia. Os projetos que se devolvem ao tempo já gasto são o suicídio do presente. Uma indigna representação dos seus autores, fulgurados pela falácia do tempo irremediável.
Ficavas incomodado com a mnemónica do passado que se repercutia no tempo usurpado das mãos dos reféns da memória. Era como se projetassem no presente uma constelação de imagens retidas nos arquivos e pudessem pôr as mãos nessas imagens; era como se o tempo fosse repetível, com a conjugação de todas as suas incontáveis circunstâncias. O que sobrava era um imenso vazio: as memórias são exauríveis. Não conseguias discernir o apelo dos reféns da memória, se o tempo assim resgatado tende a esgotar-se à medida que eram repetidas as memórias. E perguntaram-te:
- Não guardas memórias? Não voltas a elas, nem quando te distrais nessa militância metódica do tempo presente?
Não demoraste a preparar a resposta:
- Eu sou a minha própria circunstância. O amplexo de que me dou conta no atapetado lugar de onde me construo, a cada estrofe do tempo. Não recuso o tempo que ficou para trás e tenho uma memória que não indefiro. Mas não lhe concedo a liberdade excessiva que tem noutras pessoas, pois temo que a memória como representação hipoteque o tempo que tenho entre mãos. Que é o tempo que elas podem tocar.

9.9.19

Quando a ciência passa a militância em tempos de urgência


Fontaines D. C., “Boys in the Better Land”, in https://www.youtube.com/watch?v=TNXrKBt76zI
Quando estudei, aprendi que a ciência deve ser imparcial. Procurei respeitar esse esteio no ensino de que sou ator. Como professor, ou como investigador, não devo manifestar preferências nem ideologizar os alunos. Isto tem acuidade neste tempo em que alguns, cada vez mais numerosos, não se escondem de umpensamento único que desagua numaTINA (there is no alternative). O pior é a cadeia de reações que uma modalidade de pensamento único e correspondente TINA provocam: o pensamento reativo não se limita a desmontar o pensamento único e a TINA que combate, desejando, em sua substituição, outro pensamento único e uma outra TINA a condizer.  
Há dias, num congresso, ouvi algumas comunicações que confirmam esta tendência. Tendo como pano de fundo o avanço de uma direita retrógrada e incivilizada (Trump, Orbán, Salvini, Bolsonaro, Boris Johnson) e da alt-rightque parece ser seu lastro, vi politólogos a fazer denúncias. Não me incomoda que se acuse esta fação atávica que atropela o que temos por valores civilizacionais; incomoda-me que sejam cientistas sociais, no âmbito da sua profissão, a fazê-lo. É que, ato contínuo, passam a ser atores interessados no jogo político, o que não quadra com o papel imparcial, desligado de juízos normativos que são o alicerce de preferências, escolhas e posicionamentos na paisagem política. 
Este arrebatamento denunciador convoca, por outro lado, uma insinuação: as entrelinhas murmuram que a direita tradicional (chamemos assim) se esvaziou, sendo o centro-esquerda sozinho (na versão moderada) ou acompanhado da esquerda radical (na versão mais incisiva) a única solução para travar a direita que se radicalizou. Argumentam que a direita tradicional se esvaziou ou por ter sido suplantada pelos novos atores que são intérpretes da radicalização da nova direita, ou porque a própria direita tradicional, movida pelo oportunismo político, se aproximou da retórica da direita radicalizada e dela tomou de empréstimo algumas das suas propostas. 
Esta generalização sinaliza é denotativa de uma agenda e de uma intencionalidade. Tomar a árvore pela floresta é o pecado original destes cientistas sociais. A alt-righte os seus gurus constituem um perigo à democracia plural. Também admito que alguns políticos da direita civilizada caíram no logro da aproximação à retórica radical. Todavia, a generalização que determina o esvaziamento da direita civilizada é exagerada e não inocente. Partindo de cientistas sociais que dever-se-iam manter imparciais, é algo que só surpreende quem não acompanha a militância e o normativismo ostensivo de certos gurus das ciências sociais. 
Não é de estranhar que o ambiente de um congresso esteja contaminado, pois é numeroso o exército de seguidores desses gurus das ciências sociais. Este é o seu pecado original. Tanto denunciam os desvios e a propensão autoritária da alt-right, como (talvez sintomaticamente) omitem os desvios e a propensão totalitarista dos radicais que medram à esquerda. Daí uma agenda e uma intencionalidade que inviabilizam a imparcialidade científica. 
Parece que a deriva radical da direita é um fato à medida destes alfaiates.

6.9.19

Medo de funerais (short stories #158)


Radiohead, “Nude”, in https://www.youtube.com/watch?v=BbWBRnDK_AE
          Não vou a funerais. Digo-me, a título de justificação interna, que o deixei de fazer depois do funeral do meu pai. Pode ser apenas um pretexto. Interroguei-me sobre o assunto enquanto lia “Em tudo havia beleza [Ordesa]”, de Manuel Vilas. O autor admite um transtorno que é, ao mesmo tempo, uma exegese por ter reordenado o pai na sua existência só depois da sua partida. Passa por vários outros familiares – a mãe, os avós, alguns tios – todos eles mortos; e repete, com melancolia tardia (o que pode encerrar alguma ironia negra), que não foi ao funeral de nenhum deles. Mortifica-se: não foi, e não vai, ao funeral de ninguém. Di-lo com arrependimento, daquele arrependimento que parece genuíno quando os acontecimentos são revisitados mas não podem ser alterados na ordem do tempo. Parece um arrependimento prestes a extinguir-se se o porvir reservar mais alguém destinado a um funeral. Eu fui ao funeral do meu pai. Vivi de perto a sua agonia, o estertor de uma doença implacável e indecentemente cruel (se é que uma doença pode ser decentemente cruel...). Nunca mais fui a funerais. Escondo-me dos funerais a coberto desta ferida sem cicatriz. Incomoda-me o clima pesaroso e pesado dos funerais. Sei que esgrimo um profundo egoísmo, porque as pessoas vão a funerais para fazerem a última homenagem a um corpo sem remédio– é uma norma de conduta que (dizem) faz parte da (dizem) imperativa socialização. Depois de ler Manuel Vilas, comecei a interrogar-me se seria essa a razão de fugir de funerais. Tenho a impressão de que um funeral é a antecâmara do nosso próprio funeral. Poderá ser esta imagem avivada à medida que nos afastamos do nascimento e avançamos pela idade fora. Eu tenho medo da morte. Não consegui encontrar os mecanismos interiores que me apaziguam com a ideia de deixar de fazer parte dos vivos. (Ia a escrever “ainda” na frase anterior, mas preferi omitir. Não sei se estarei à altura de mudar a maneira de encarar a morte. Não devo abrir a possibilidade – que justifica o “ainda” naquela frase – porque é uma hipótese exigente). Como tenho medo da morte, um funeral é a imagem antecipada do meu próprio funeral. O que me sobressalta. Talvez só encontre sossego na ideia de funeral se conseguir convencer os que me são queridos a não irem ao meu funeral.

5.9.19

Os exilados da praça velha (short stories #157)


Pixies, “On Graveyard Hill”, in https://www.youtube.com/watch?v=E2o-65chdoc
          Distinguem-se dos demais: não se incomodam com coisas comezinhas; nem se inquietam com as grandes questões da vida, as dúvidas existenciais que deixaram de ser património tangível. Não se sobressaltam com o mundano – o mundano é frívolo, irrelevante; as notáveis considerações ontológicas, não merecem que se perca tempo com elas. Encontram-se na praça velha, sem calendário fixo. Vão conforme o instinto os manda ir. De cada vez que um dos exilados assenta na praça velha, sabe que vai encontrar alguns pares. É como se comunicassem telepaticamente. Saúdam-se com um discreto acenar de mão. Sentam-se nos bancos envelhecidos do jardim sobranceiro à praça (não é por acaso que a praça se chama “praça velha”). Ficam em silêncio, quase todo o tempo. Ocasionalmente, um dos exilados balbucia umas palavras vagarosas: “as pessoas estão cheias de pressa.” O que o ladeia, anui com um leve acenar da cabeça. E continuam a apreciar o movimento da praça, das pessoas que passam de um lado para o outro e das outras que contrariam esse movimento. Outro exilado rompe o silêncio: “aquela senhora de meia idade, para onde irá? A uma consulta no centro de saúde? Trabalhar? Encontrar-se com o amante a desoras, para não levantar suspeitas?” O exilado que circunstancialmente se encontra na praça velha responde com mutismo e impassibilidade. Considera que as interrogações do parceiro são frívolas, logo, não cabem na visão discreta que pertence aos exilados. O outro percebeu. Manteve-se em silêncio. Se tentasse corrigir o lapso, seria pior. Não ficou sem interiorizar o acontecido: quem estabelece as baias do que é mundano e deixa de o ser? Ele sabe que há um código de conduta entre os exilados. Implícito, o código de conduta. Como se fosse telepático. E se o outro exilado se manteve impassível depois da derradeira consideração, é porque ela não quadrava com o código de conduta. O exilado que escorregou para aquelas interrogações não saiu convencido da praça velha. Um código de conduta não pode resultar de uma omissão unilateral de um dos participantes.

4.9.19

Quantas dioptrias precisas? (short stories #156)


Trentemøller, “Try a Little”, in https://www.youtube.com/watch?v=C6FHDwhjofg
          Não preciso de dizer uma palavra. Ou melhor: não precisara de dizer uma palavra, sequer, se não fosse a teimosia que embacia a lucidez. Pode ser erro meu. Se me pedes opinião, ajuízo que a tua opinião perde em cabimento, órfã de legitimidade, implausível no raciocínio. Se me pedes a opinião sobre a tua opinião, é certo; de outro modo, refugio-me no silêncio de quem não foi interpelado. (Já chega quando falamos de mais, o que acontece com frequência acima do razoável – é dos tempos modernos e do triunfo da democraticidade: todos temos opinião e ela deve ser proclamada com visibilidade, até com alguma ostensibilidade.) Não sendo o caso de me ser requisitado o silêncio, tenho a dizer que o teu argumento padece de um vício de raciocínio. Admito que seja meu o erro: laboro em pressupostos que são diferentes dos teus, e isso pode fazer toda a diferença. Se eu fosse a passar a pente fino o assunto que te traz à colação, o meu ponto de partida não era o teu. Não é de admirar que não subscreva o teu argumento. Partimos de diferentes casas da partida e seguimos por caminhos que não se encontram. Não há acrimónia no meu juízo. Não quero que fiques a pensar do mesmo modo que eu, por submeter o teu problema aos meus cânones. Tenho essa vantagem: quando fui convocado a ajuizar o teu argumento, não sabia qual era o meu ponto de partida; eu sabia do teu, e sabia-o nos antípodas do meu. Se estivesse no teu lugar, e se sujeitasse o meu argumento aos olhos outros, quem me dera que os demandados estivessem nos antípodas da minha casa de partida. Quem deseja um coletivo exercício de deferências multiplicadas, em que todos se elogiam a todos e todos reproduzem as mesmas ideias em circuito fechado? Termos em que, se permites, pergunto, sem desdém, sem arrogância intelectual (que posso ser eu a validar um erro de análise), se queres saber quantas dioptrias precisas para ajuizar o problema?

3.9.19

Cabeça sem coroa (short stories #155)


The Divine Comedy, “To the Rescue”, in https://www.youtube.com/watch?v=FyH6bnt56mU
          Já não havia império. Terras inférteis ocupavam o pensamento. Tudo o que sobrava era um cais remoto, o paradeiro às vezes indeterminado, por onde caminhava em exilio dos sobressaltos. Dantes – sussurrava num frémito – tinha coroa e não a soube usar. Talvez não estivesse preparado para os vulgares esteios do mundo e inverosímil fosse a representação que dele fazia. Acreditava numa ilusão e medrou por dentro dela. Era como se o pensamento tivesse via verde e se desprendesse do corpo, e este é que estava em sintonia com o que se passava lá fora. A coroa que usurpou sem protesto não fora generosa. Fora uma armadilha. Tudo o que fundou por dentro de si era um refúgio contra o sentido improvável da existência. Não queria ser cúmplice dessa contrariada malha onde as pessoas existiam. Custou-lhe entender os elevados custos de investir contra a maré dominante. Ainda assim, não tergiversou. Considerava que uma elevada estima de si mesmo e a ideia de que era reta a sua coluna vertebral era o que mais importava. Por maiores que fossem os danos inerentes à pertença – e aqui não estava em causa o sentido político da palavra, apenas o antropológico. As densas teias que se compunham eram o emaranhado que o aprisionava. Não conseguiu derrotar esse emaranhado. Mas insistia na sua demanda, como se fosse uma peregrinação. Apostava que a paga era a serenidade interior como juro da equação. Não tinha a certeza; era apenas uma leve desconfiança que se agitava no equinócio rude do mundo. Preferia medrar na ilusão da coroa repousando em sua cabeça, imperador do seu império exclusivo, de que era suserano e único súbdito ao mesmo tempo. Estava apostado em lidar com o ónus que se abatia sobre o pensamento, numa constelação de interrogações incessantes. Aos outros, a cabeça sem coroa, súbditos acríticos de uma vetusta ramificação de coisas destituídas de sentido. Ao menos, não tinha vergonha da coroa que só mostrava a si mesmo, no sereno ciciar do sono.

2.9.19

As datas que não falam (short stories #154)


Fontaines D. C., “Big” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=-hWTyG6jP4g
          O chão quente sob os pés: parecia um presságio, como se um vulcão estivesse prestes a despontar, inundando tudo com a sua lava lisérgica. Ou podia ser apenas uma impressão, o gotejar das ilusões a marejar entre as ruas tomadas pela fantasia. Fazia tempo que não se lembrava do que estava por inventariar na verticalidade da fala. Tornara-se monástico no adestramento das palavras. Incisivo. Escorreito. Já não usava adjetivos. Passara a considerá-los um ornamento inútil, uma defesa dos falsamente eruditos que usam um fartote de adjetivos para mascarar a bancarrota de ideias. Preferia as palavras curtas e repletas de significado. A simplicidade. Era como se pudesse dizer – até que enfim – que a bonança tinha tomado cais em si. Foi o pretexto para erradicar a monotemática das datas. Não sabia como o recusar, mas dantes era refém das datas que surgiam como símbolos. Quase como se fosse uma prova cabalística, a mnemónica para o porvir numa canhestra coligação com os vestígios de antanho. As datas perdiam espessura. Alisaram-se no novo mapa-mundo que era o lugar que arroteava na companhia de um heurístico desprendimento. Certas palavras tinham sido banidas do vocabulário (do seu vocabulário privado, não do idioma). Palavras outrora imperatrizes, num diálogo improfícuo com a coreografia das datas que se atropelavam em fragmentos dispersos no palco do pensamento. Sobrava a grandeza da sua pessoa. Sem as algemas determinadas pela vontade exterior, com a sua intermediação autofágica. Agora, ele era o fautor do seu próprio calendário. Se lhe apetecesse, um mês não tinha trinta dias, nem um dia cabia na fronteira de vinte e quatro horas. Era feito de uma leveza não sindicável. Penhor dos seus pensamentos. Já não havia correrias desenfreadas por temor da pressa em que o tempo se consumia. O tempo saiu da equação. Já conseguia ver-se de fora de si mesmo e apreciar o espetáculo que lhe era dado a assistir. O que era um feito.