31.3.22

A véspera da mentira

PJ Harvey, “We Float”, in https://www.youtube.com/watch?v=pY8n7uYT0mM

Às vezes, as palavras podiam ser apenas metáforas. Se necessário, com legendas no rodapé da fala para os menos lúcidos perceberem que palavras assim ditas não se candidatam a uma interpretação literal. Podia ser que nem sempre o desvio-padrão entre o dito e o intuído fosse recebido à conta de uma mentira. Por vezes, quem prestas contas à mentira é quem entende como tal.

O que dizer na véspera de uma mentira? Depende dos dotes de adivinhação de quem dela será feito refém. Depende de saber se uma mentira existe antes de ser pronunciada, ou omitida. Os mal-entendidos são a cal puída que se verte sobre as palavras arrancadas ao silêncio, ou dele extraídas quando pertencem a um mapa cacofónico. Os puristas, que não são cúmplices dos mal-entendidos, mantêm que as palavras deviam ser como uma rua de sentido único. Não sabem o que é a literatura. Não sabem o poder superlativo de um texto que se embebe nas entrelinhas, um sublime exercício de inteligência do recetor (e de quem o criou). A literatura vive muito para além da mentira das palavras. Não vive sem elas, mas serve delas na safra de mentiras que distorcem o sentido banal das palavras.

As mentiras são mentiras. Ostracizam quem as comete. Piedosas ou impiedosas, congeminadas para proteger quem as recebe ou cominadas como agressão irreparável, as mentiras esbarram na sua contumácia. Quando se enovelam num labirinto, mentiras que acamam em sucessivas camadas, os mitómanos deixam de certificar a fronteira que distingue a mentira da sua antítese. Fica toda a gente amarrada a um empate técnico: os mitómanos mentem a si próprios e aqueles a quem a mentira atinge ficam sem saber se a mentira existiu.

Se ao menos as palavras não viessem sitiadas por metáforas, não se emprestavam ao agravo da mentira. Só que uma mentira pode existir sem palavras. As mentiras que medram em silêncios não são povoadas por metáforas ou outras figuras de estilo que sirvam para as disfarçar. Para as mentiras, também deviam existir contratos-promessa.

Na véspera da mentira, não existem mentiras. Só o dia consecutivo dirá se houve véspera de uma mentira. E se os atingidos ficaram feridos com gravidade, ou se a mentira foi misericordiosa. De acordo com os cínicos, ela só ganha espessura quando é conhecida de quem é sua vítima. Amanhã é o cais que escrutina a mentira. 

30.3.22

Do sol embaciado

The Smile, “Skirting on the Surface”, in https://www.youtube.com/watch?v=_nmutqhuWFE

De cada vez que o sol perdia território para a bruma era como se um quinhão da soberania fosse roubado ao sol. O sol não se importava. Continuava a ser o suserano da sua própria criação. Não havia nada que embaraçasse o seu domínio.

Nos domínios terrenos, muitos dos mortais sentiam-se anestesiados pela cor baça que diminuía o sol. Contagiados pelo crepúsculo a destempo, ao corpo agarrava-se uma estranha forma de melancolia. Não eram preparos suficientes para prantos, ou para exageradas mortificações interiores (que esta era gente facilmente tomada por exageradas mortificações interiores). Admiravam a tonalidade desmaiada, levemente avermelhada, que tomava conta do céu, com o sol acanhado a adejar sobre os mortais como se estivesse mais longe do que era.

Alguém dizia, por estas alturas: 

Tenho inveja dos pilotos de avião. Mesmo em dia de tempestade, e ainda mais quando as nuvens ocupam o domínio do sol por dias a fio. Eles conseguem ver o sol todos os dias

Era a vingança do sol, só para uma casta que ficava mais perto do sol, deixando para os demais mortais o céu plúmbeo que descaracterizava o seu sorriso. Era como se definhassem durante os dias do sol escondido, condenados à clandestinidade, imputando a conspiração a demónios disfarçados de deuses que conseguiam trespassar o sol, nele semeando pesadas nuvens.

Havia dissidentes. Uns quantos mortais não protestavam contra a ausência do sol. Encontravam uma certa forma poética nos dias prostrados, na chuva que esbarrava contra as vidraças deixando-as cobertas com uma paleta de gordas gotas de água, no ocaso prematuro que encurtava os dias de inverno. Descobriam o encanto na ausência do sol – e não precisavam de agronómicos argumentos sobre a urgência da chuva para a satisfação das necessidades básicas.

Havia uma convergência entre os dois tipos de mortais, um lugar onde conseguiam consertar as díspares considerações sobre a epistemologia dos céus: era quando o sol se acobreava, tingido pela formidável recriação que uma fina camada de nuvens – ou, moda mais recente, poeiras importadas do deserto meridional – adstringia o sol. E este, nunca deixando de ser sumptuosa força genesíaca, aparecia amedrontado aos olhos dos mortais. 

Era quando uns e outros, desfazendo momentaneamente as divergências, sabiam que podiam ser testemunhas da fragilidade do sol. Para não se apoquentassem com as suas próprias fragilidades.

29.3.22

Dantes dizíamos Cochinchina

Sigur Ros, “Ágætis Byrjun” (Live in Vík), in https://www.youtube.com/watch?v=dtTJBEi3RIM

Dantes dizíamos “Cochinchina” quando um lugar se media pela lonjura. Não sabíamos onde era a Cochinchina. Só sabíamos que era longe, um lugar talvez inacessível. Se a alguém encomendávamos uma temporada na Cochinchina, não era bom sinal: essa não era uma pessoa benquista e o seu endosso à Cochinchina mostrava uma persona non grata.

Mas hoje não há lugar no mundo que seja ermo. Está tudo à distância de um dedo que martela na tecla do computador para mostrar, com a ajuda dos satélites farejadores, o lugar demandado. Os mais novos parecem atordoados quando se lhes menciona a possibilidade da existência da Cochinchina, como acontece com os ingénuos quando são convidados a participar na caça aos gambozinos. 

Mas dantes dizíamos Cochinchina e nem precisávamos de saber de geografia. De certeza que ninguém sabia onde era a Cochinchina se fosse desafiado a localizá-la no atlas. No fundo, éramos todos uns ignorantes da geografia, pois ninguém cuidou de saber onde era a Cochinchina. (Havia sempre uns quantos que se auto-imputavam um esclarecimento vanguardista e não hesitavam em inventar que a Cochinchina era para lá da China.) Todavia, não hesitávamos em encomendar os malquistos para a Cochinchina. Não sabíamos: se era um lugar feio, inabitável, onde as térmitas corroíam as almas dos exilados, perenemente invernoso, o chão todo feito de pontiagudas pedras, as pessoas que por lá andavam todas com alma de exilado, um lugar desgovernado. Só sabíamos que era para a Cochinchina que desencomendávamos as pessoas inaceitáveis. Não sabíamos que éramos tutores de exílios involuntários de pessoas que deixariam de gravitar na nossa órbita.

Hoje já sabemos que não existe a Cochinchina. Deixámos de nos aliviar dos indesejáveis porque não há sucedâneo da Cochinchina. A lucidez da geografia ajudou-nos a fixar os parafusos nos lugares certos. Não há gente que mereça o exílio. A Cochinchina deixou de ser um lugar. E o exílio ditado à força nossa, uma desobrigação.

Não admira que os mais novos desconheçam as coordenadas GPS da Cochinchina.

28.3.22

Os violinos perenes

Indignu, “Chovem Pedras do Céu” (Understage Rivoli), in https://www.youtube.com/watch?v=YN0WkAUb0Qw

Não façam das datas um porta-aviões sem paradeiro, um vulto emasculado que se pavoneia na pior semântica masculina, como se seu fosse o halo que gravita na periferia de deuses que não existem.

Não combinem o armamento impuro que colhe vidas prematuras.

Não falem com vozes iracundas se não têm argutas montanhas no precipício onde avultam os misantropos.

Não remedeiem os braços cansados que se antepõem diante do ocaso prometido.

Não recusem as estrofes que premeiam a perseverança dos argonautas.

Não tirem partido da fragilidade se não souberem inventariar a vossa própria fragilidade.

Não sejam piratas em mares alheios sem cuidarem das marés que alimentam a maresia.

Não povoem o palco com o dissídio.

Não cultivem a arbitrária colheita dos vindouros se não querem tutelar uma consciência tumultuosa.

Não fujam dos contratempos se eles são o avesso do tempo não evaporado.

Não se remetam aos escombros onde se esconde o passado da cidade.

Não arremetam contra os golpes pútridos da injustiça, pois dela não sabem os deslimites.

Não nadem nas intempéries nem se atirem no avesso dos remoinhos.

Não sejam meros habitantes de um tirocínio, convencidos da eternidade dos tirocínios.

Não olhem por cima do ombro para os segredos que vos desafiam desde um ângulo morto.

Não assobiem contra o luar se não souberem do dicionário no dorso no luar.

Não fujam do sangue patrimonial nem esqueçam dos verbos que cimentam as veias.

Não esperem de um crepúsculo um poema heurístico.

Não saibam dizer as palavras sem perderem uma sílaba.

Não finjam para deixarem de ser os atores em que foram entronizados.

Não desarrumem a alma para além das fronteiras do medo.

Não deixem que a música seja órfã da vossa ausência.

Não se extingam na exiguidade do tempo enquanto ouvem em surdina o ciciar dos violinos.

Não deixem de ir às armas se exércitos emproados na sua beligerância quiserem calar os violinos, para não desmentirem a perenidade dos violinos.

25.3.22

Mãos tremidas

Deftones, “Minerva”, in https://www.youtube.com/watch?v=mLa0-sQg1YM

Os suores desacreditam as mãos que se entregam ao dia restante. A inexatidão assoma com o ácido sabor de quem já não é domador do seu corpo. São as mãos trémulas que o sobressaltam. Em vez da madurez, soam os sinos da velhice. Afinal confirma-se que o tempo é juiz de toda a gente.

Repara nos espasmos das mãos, milimétricos, é certo, mas espasmos. Talvez quadrem com as rugas que ultimamente enfeitam a pele que cobria as mãos, como se fosse um mapa dotado de orografia. Devia ser esse o entendimento: ao menos, com a velhice e a pele esbulhada, o mapa das mãos é tridimensional. Os novos não podem dizer que albergam um mapa com orografia nas mãos.

Ou, porventura, estava só a disfarçar a angústia. Os gurus de autoajuda não lamentam o envelhecimento; dizem-se preparados para morrer, ela que venha a qualquer momento que já resolveram todas as pendências com a vida de forma a poderem habitar o seu lugar na morte. Ele evita estes pensamentos escatológicos. Já fora testemunha de umas quantas mortes e não o recomendava.

As mãos trémulas são o assentimento da idade. Como se fosse preciso encontrar uma argamassa para amalgamar toda a vida pretérita no povoamento futuro onde o envelhecimento é o mote. Tem esperança que a habituação às mãos trémulas faça com que essa condição deixe de ser um contratempo. Não é conspirador, como se ele próprio se insurgisse contra o tempo. Eram trémulas as mãos e sabia que já não podia ser artesão, se esta vocação fosse achada a destempo.

Começara a perceber que ser ancião não era a inviabilidade de si mesmo. Era o caudal esperado, numa certa estação que, entretanto, teve tanto de voz funda que se hasteou no calendário. Não suplicou por juras nenhumas. Sabia que não conseguia encontrar o avesso das mãos, como se, por quimera, elas viradas do avesso deixassem de ser trémulas. O futuro não tem juros contratados.

 

24.3.22

Ter tempo para voltar a ter tempo

Sufjan Stevens, “The Only Thing”, in https://www.youtube.com/watch?v=adKEqin5SoI

As rédeas medem pouco tempo – dizíamos, em pose contemplativa, no absurdo funeral do tempo. À partida considerávamo-nos derrotados: o tempo era um algoz banal e estávamos à sua mercê. 

Podia não ser desse modo. Podíamos, se resgatássemos a vontade de um paradeiro incerto, ser procuradores de uma nova geografia do tempo. Seríamos os poetas de um novo contrato e todos os relógios passariam a ser fabricados de acordo com a métrica por nós determinada – como se a nós viesse o direito, divino, porventura, de estampar um novo registo que passaria a comandar o andamento do tempo. Seria um contrato feito para o mundo inteiro apenas composto por nós.

De fora, os arquitetos da rotina diriam sermos um desexemplo. De nós diriam as piores coisas: que tínhamos causado a apneia do tempo, como se a sua dilação resolvesse as moléstias que tomam conta dos desesperançados; insurgir-se-iam por apenas prolongarmos a agonia que é atravessada por tanta gente – para eles, o tempo vagaroso é equivalente a um suicídio que não ousam praticar.

Para nós, eram alegações desimportantes. Fazíamos gala em mudar de mapa quando sentíamos a reprovação a cair sobre os nossos ombros. Queríamos os ombros aliviados de contratempos. Por isso movíamo-nos entre os estreitos corredores de um labirinto ermo, propositadamente ermo para recusar a presença dos outros. Sabíamos que a nova métrica do tempo rimava com uma certa misantropia, e nós éramos a exceção à carnificina dos deuses fingidos.

Conseguiríamos a vocação: a nova métrica do tempo era a caução para termos tempo para termos tempo, outra vez. Era disso que se tratava. Um momento fundacional, que desmatava a inspiração para tudo pesar numa balança de que éramos tutores únicos. Cuidaríamos de ter tempo com o propósito único de termos tempo. Em vez de cedermos à lassidão dos habitués dos tempos madraços, arremetíamos com a reinvenção do tempo em rutura com a maré dominante.

Passaríamos a ser maestros da nossa orquestra. Sem concessões nem postergamentos, apenas lídimos suseranos da coreografia do tempo que se depositava entre as nossas mãos.  

23.3.22

Por que não existe uma praça da melancolia (short stories #378)

Idles, “Well Done” (live on SXSW 2018), in https://www.youtube.com/watch?v=Yqf8cDbsA3w

          O vocalista da banda pós-punk exacerba a voz, as veias do pescoço parecem explodir com a erupção da raiva mumificada na letra da música, batendo no peito com o punho fechado sem estar a fazer de conta. No fim da música, deixa cair o corpo na vertical e, naquele momento que parecia em câmara lenta, um sorriso exegético acompanha a queda no precipício. Permanece inerte no palco durante uns segundos, os olhos esparramados como se a fruição da liberdade estivesse fora da sua órbita. O sorriso dobra as sílabas num riso desacanhado. Não é um riso fortuito: a catarse baniu os escombros da melancolia que foram servidos na música. Foi a voz cava e a ira exorcizada no vulcânico esbracejar do vocalista que desarmadilharam a melancolia atravessada em todos os poros. O vocalista levanta-se numa medida inversamente proporcional da queda que fora em câmara lenta. Descompõe o sorriso. Fala a sério, agora que passou a envergar um cenho, contra as incúrias do mundo tão imperfeito que é este que nos acolhe como casa comum. Tartameleia uns palavras arrastadas, propositadamente arrastadas, para todos perceberem. Admite que não é dele a tutoria dos conselhos, pois dele se sabe que há privados vícios que o desaconselham para a moral convencionada. Não vai aconselhar ninguém: limita-se a desafiar os presentes para não desistirem das interrogações e para não capitularem como vítimas de um mundo cimentado a melancolia. Impetra que não deixemos de olhar em redor e sejamos leitores açorados, mas críticos, do palco em que nos movemos. A melancolia maior é a hibernação de quem cai no logro dos que preferem uma cidadania desligada do seu meio ambiente. Com o arquear do braço direito, como se fosse maestro, ordena a música seguinte.

22.3.22

40x50

Beach House, “Hurts to Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=N2N5ohmzo3k

Como pode uma pessoa inteira, em toda a sua riqueza sem medição, caber numa exígua moldura? 

E, contudo, quando nos pedem identificação é o que sobra das nossas pessoas, acantonadas a um rosto que enche a moldura que atesta, com os demais dados (agora biométricos), a identidade de que somos portadores. É como se o resto do corpo não contasse e todos nós não passássemos de um cortejo de rostos atravancados numa moldura impreparada para a diligência de cada um. De fora ficam a métrica do demais corpo, as cicatrizes tatuadas na pele, as rugas que tomaram posto, o mofo ou a janela arejada que são património incalculável dos corpos e das almas assim omitidos, todas as cortinas de fumo a que não interessa dar caução. 

Dirão: os organismos que inventariam as nossas identidades apenas querem uma amostra de nós. Não são exigentes; nós, descontentes com o resto do corpo e com a alma não reproduzível em fotografia que ficam fora da moldura, exigentes como somos, é que nos condoemos pela redução a uma moldura que, oxalá, fosse ao menos de quarenta por cinquenta. Em abono dos que se sublevam, não são tolerantes com o minimalismo que julgam ser uma contrafação de si mesmos e desejam ser mais do que a amostra a que são limitados. Acusam a irrelevância para que são atirados: cabem numa moldura exígua, como se este nanismo, aparentemente involuntário, não tivesse outro desenho hermenêutico.

Quando somos cuidados como uma amostra, uma grande parte de nós fica longe dos olhares bisbilhoteiros. Somos vítimas de um descuido de quem se eleva ao estatuto de nossa paternal figura e que, nessa medida, de nós devia cuidar. Para o autovoyeurismo já se capacitam as formas digitais de autopromoção, não é necessário que as autoridades exibam de nós o muito que fica escondido. Bem vistas todas as coisas, meter-nos numa pequena moldura não é dano maior. É um préstimo, talvez involuntário, de quem é geneticamente nosso invasor. Ficamos à mostra numa simples amostra do que somos. O resto guardamos em segredo, se essa for a exibição da nossa vontade.

A moldura que nos identifica extravasa os quarenta por cinquenta. A exiguidade a que somos reduzidos funciona como um seguro contra outros danos. De fora da moldura fica o que não tem tutela dos poderes: o genuíno eu que somos, sem curadoria a não ser a que cada um julgar apta. 

21.3.22

“Memórias de há atrasado” (redundância compulsória) #3: a mercearia do Sr. Costa se não fosse o que é

Tindersticks (ft. Carla Torgerson), “Travelling Light” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=PjSxvv_0CdY

(Recordatória de contextualização: em terra de marinheiros e de muito mar, costas há muitas)

Andemos com o relógio às arrecuas. Na reinvenção do tempo já imortalizado, finjamos que se pode mexer na História. Partimos no avesso do tempo, desconstruindo as suas marcas. Como aval do exercício, um dote especulativo: a função termina com um avatar das possíveis silhuetas do tempo pretérito, agora reinventado pelos nossos dedos não sortílegos.

Ato 1 – O Sr. Costa não foi mandrião nos estudos e perseverou uma bolsa de estudo para os estudos superiores. Perante a desconfiança metódica do pai, que não passou da instrução primária (como mandam os cânones do enredo). Não deu seguimento ao negócio da família, acabando o pai, caduco e pressentindo o fantasma da morte, por vender o estabelecimento comercial a um indiano que andava pelo Martim Moniz.

Ato 2 – O Sr. Costa não cursou Direito, como quase todos os que, na altura em que fez o tirocínio universitário, não iam para Engenharia ou para Letras. Entrou numa especialização recente, as Ciências Económicas. O pai criticou-o, asperamente. Pois isso das ciências económicas não se distinguia dos marçanos que cuidam da contabilidade dos pequenos negócios. “Se queres ser manga de alpaca quando podias ser dono do teu negócio, é coisa que me hás de explicar em devido tempo”, atirou, encolerizado e angustiado, o pai do Sr. Costa.

Ato 3 – O Sr. Costa não formou família com a prometida para a boda, depois de largo período de cortejo. À última da hora, caiu de amores por uma colega de Germânicas que tinha um corpo escultural e – dizia-se, à boca pequena – outros dotes inconfessáveis (por isso só se ventilavam à boca pequena).

Ato 4 – O Sr. Costa adestrou-se na arte do gualdipério. Fartava-se depressa das pessoas. E dos empregos, porque neles havia pessoas. Passou por muitos empregos em pouco tempo, contrariando as esperanças do pai, que o aconselhava enfaticamente a entrar para a função pública “por causa da segurança que te dá”, “já que não queres seguir o negócio da mercearia.”

Ato 5 – O Sr. Costa foi dos primeiros da geração e emigrar. Antecipou o início de uma guerra espúria que contrariava os movimentos de autodeterminação nas colónias ainda orgulhosamente empunhadas pelo tirano. Fez carreira no estrangeiro, pese embora o pouco à-vontade com idiomas não pátrios. Desde cedo a vocação para as relações públicas de si mesmo vieram à superfície. O Sr. Costa era exímio a cuidar da sua vidinha, nem que fosse preciso atropelar uns quantos que se amontoavam no caminho.

Ato 6 – O Sr. Costa regressou à pátria já era cinquentenário. Formara família com uma mulher de nacionalidade estrangeira, de quem se divorciou quando ela manifestou oposição a viver na pátria do marido. A descendência espalhou-se pelas quatro partidas do mundo, num cosmopolitismo verberado pelo Sr. Costa.

Ato 7 – O Sr. Costa, que era de ideias feitas, encasquetou que viria a ser nome reconhecido no meio dos negócios. Homem em contínuo concubinato com a sorte, investiu as poupanças na bolsa de valores antes de uma súbita explosão dos ditos cujos. Ganhou uma fortuna. E acesso aos lugares de acesso restrito, onde só os grandes magnatas, políticos amantes de vícios burgueses e arrivistas de carteira recheada marcavam presença. 

Ato 8 – O nome do Sr. Costa constava do erário público em vésperas da sua reforma. Recusava teimosamente a reforma. Não queria que a reforma inaugurasse a pessoal decadência. Como tinha um império para gerir e uma imensa coorte nas imediações, não podia dar o flanco. Não lhe falassem da reforma. A morte, quando viesse, cuidaria da reforma, inapelavelmente.

Ato 9 – O Sr. Costa queria o seu nome emoldurado na toponímia da cidade capital para a eternidade. Moveu influências e conseguiu que, por interposta pessoa, fosse encomendada escultura sua a ser inaugurada quando o seu nome viesse substituir o nome até então exibido na rua (um poeta qualquer do século XVIII, que só um punhado de eruditos conhecia).

Ato 10 – No dia da inauguração, a estátua estava impecável, os discursos de ocasião soaram a elegia a destempo (mas o Sr. Costa não se importou) e a populaça saiu à rua para a irrecusável genuflexão. À noite, o Sr. Costa estava ufano que nem um nababo.

Ato 11 – O Sr. Costa já podia morrer em paz. Assim como assim, a mercearia que fora do seu pai, e que comprara ao paquistanês que a havia adquirido ao indiano, estabelecera sucursais por todo o país e até no país vizinho. O Sr. Costa não se cansava de dizer em público que singrou na vida a pulso e só com o produto do seu esforço. Era um mestre na injúria do passado, perito no recondicionamento do seu lastro como se fosse um estalinista da pior cepa. Nos momentos de introspeção, nunca lhe ocorreu supor se o pai estaria orgulhoso das ramificações do negócio caso fosse chamado de volta à terra dos vivos.

Ato 12 – Hoje, octogenário e, todavia, ainda tutor de uma energia singular, sonha acordado com os termos da elegia e com o endosso da incumbência a uma personalidade de reconhecida consensualidade. Um herói merece as loas terminais da boca de um herói ainda maior. Uma vida maior não pode ter despedida que não seja se não a preceito. Ainda hoje acredita num esoterismo insólito: uma vida perpetua-se para além da sua morte se poder ficar selada na toponímia de uma cidade que se veja no mapa.

18.3.22

A fala que se arrasta (o diseur de poemas avinagrados)

Tv on the Radio, “Will Do”, in https://www.youtube.com/watch?v=dXLpXu9T7j0

Não dizia mais do que duzentas sílabas por minuto. A voz cavernosa, como se estivesse escondida sob um rochedo limítrofe, ecoava pelos poros das paredes. Elas ficavam tingidas com a voz altissonante. Os que o ouvissem de olhos fechados e não conhecessem o rosto diriam ser portador de estatura invejável (para os que gostavam de ser altos), um rosto encorpado assentando em estrutura óssea robusta, provavelmente uma barba hirsuta (e sabe-se lá que outros encómios a preceito). E, todavia, escancarados os olhos, deparavam com uma figura frágil, emaciada, um tanto desleixada, não escondendo a quadragenária condição um rosto algo imberbe (não havia vestígios de barba que se visse).

Locomovia-se em rima com a voz vagarosa. Às vezes, as pessoas exasperavam-se com a sua voz arrastada. “Não podes falar mais depressa? É que me dás sono!”, protestou uma outrora namorada que se cansou do vagar com que a vida tartamudeava ao seu lado. Ele contrapunha que não é por défice de entendimento do que diz que as pessoas não o compreendem. Se ia a um lugar onde um apressado debitava um impressionante número de sílabas por minuto (muito superior às suas duzentas, mas sem a possibilidade de as contar, tanta a rapidez da fala), depressa dele se ausentava. Não transigia com a fala gongórica, que se atropela a si mesma, responsável por um discurso trapalhão, ininteligível. Com falas dessas, o silêncio é terapêutico.

Bem cedo descobriram nele a vocação de diseur de poesia. Era preciso uma voz funda, que cativasse a atenção da audiência enquanto os poemas eram diligentemente manobrados pela voz. Pois o poema perde-se no espaço vazio da celeridade das palavras, quando assim é dito. Não transigia com o assassinato de carácter dos poemas. Continuava a acreditar que os poetas escreviam com o mesmo vagar com que ele declama os seus poemas. Uma fala-precipício exauria o poema, a voz sobreposta ao poema. 

A voz arrastada era contrariedade para os outros fora dos saraus de poesia. Incompreendido pelos seus congéneres, prosseguiu vida fora convencido que passava o dia inteiro a falar como se estivesse a pôr em voz um qualquer poema, dando-lhe vida. Talvez não tenha sido coincidência que nunca mais se enamorou, pois os poetas são eternos moradores do desamor (essa era a sua teoria). Para a sua teoria estar completa, só faltava ele ser poeta.

 

17.3.22

O perfume dos decadentes

Jeffrey Lee Pierce, “Love and Desperation”, in https://www.youtube.com/watch?v=_-A5se-ykWU

Se não fosse pelo sono, todo o húmus da terra seria mantimento válido. Como se fosse uma lava repousada que se embebeu em fertilidade e tudo o que parecia condenado a vegetar longamente tivesse uma segunda vida. Por vezes, é preciso interrogar o que temos por adquirido e mudar as voltas ao consentido.

Os decadentes não esperam indulgência. Atiram-se de cabeça nas águas onde fermenta a decadência e compulsam o estado irremediável que é seu património. Porém, angariam seguidores. Seguidores sem paradeiro conhecido, ou rostos que correspondam a identidades, mas seguidores. Os decadentes deixam à sua passagem um perfume inexplicavelmente sedutor. No paradoxal movimento que é atração de opostos: mandam os costumes que a decadência seja denunciada e, se possível, não haja transigência com os seus domínios. Mas uma vez atraídos para o território da decadência, o processo é de sentido único. A decadência não tutela avisos prévios nem consente arrependimentos.

Segundo as mais recentes estatísticas, o exército de decadentes atinge números nunca dantes conhecidos. Alguns peritos sugerem que esta é a fotografia do hedonismo triunfante. Outros pressentem que as pessoas se sentiram acossadas pela embotada bússola e entregaram-se à tirania do acaso, onde se situa o domínio da decadência. Os religiosos olham para o lado, uns derrotados pela cedência da metafísica aos prazeres mundanos, outros recusando a partilha de mundividência com tão numeroso exército de decadentes.

Especuladores de cepa diversa uniram-se para sondar a extração da essência do perfume derramado pelos decadentes. A sua avareza não colide com o que os advogados de defesa dos valores que gravitam na órbita da decência diriam ser a perdição onde habita a decadência. Na volúpia dos valores materiais que alicerçam a avareza, não se importam de comercializar o perfume da decadência se a sua fortuna aumentar. Eles próprios serão fautores da decadência, provavelmente sem o saberem. 

À sua volta, e dos genuínos decadentes, um perfume contagiante coloniza mais pessoas. Até que a decadência se vulgarize e seja tomada por um valor tão recomendável como os outrora valores agora depostos. Até que a decadência se reformule por dentro, num exercício semântico que esvazia a palavra do seu sentido pejorativo. 

16.3.22

A vodca é outra vítima colateral da guerra (a menos que seja polaca)

The Dandy Warhols, “Ever Day Should Be a Hollyday”, in https://www.youtube.com/watch?v=FuFtfhOipNQ

Aprende-se com a História: em tempo de guerra, não mantemos trocas comerciais com o inimigo, porque estamos a alimentar a sua economia de guerra. Desta vez, o axioma sofre desvios de comportamento. 

Primeiro, o ocidente está em tensão com a Rússia invasora, mas não chegou ao estatuto de beligerância que faça desatar as (sempre lamentáveis) trompetas da guerra. Segundo, e devido à constatação anterior, mantêm-se algumas compras à Rússia: petróleo e gás, porque a Europa foi no canto da sereia da Rússia e, adormecida, deu por si num estatuto de dependência energética que não se desfaz de um momento para o outro. Terceiro, à conta disso, Europa e Rússia mantêm uma hipocrisia. Apesar de acusar a Rússia de invasão e das piores atrocidades que o invasor comete, a Europa continua a comprar petróleo e gás. A Rússia ainda não fechou a torneira, porque precisa das receitas e porque sabe que essas receitas aumentam em tempo de guerra, quando os preços dos bens energéticos sobem à estratosfera. A Rússia mantém a Europa sitiada, mas consegue amealhar uns proventos à custa desse estatuto. 

Nos últimos dias, soube-se que o Reino Unido proibiu a importação de vodca russa. Não há notícia sobre os demais países europeus. Já se sabia que os Estados Unidos tinham embargado as importações de caviar e de diamantes com origem na Rússia. Como se uma guerra não fosse um mal suficiente, adiciona outros defeitos. O pior é a distribuição iníqua dos sacrifícios causadas pelo ato beligerante. Os que suportam o maior ónus são os que perdem a vida (civis, acima de tudo; mas também militares). Mas há outras vítimas colaterais. Aqui também, os mais pobres suportam os custos agravados. A inflação é um imposto escondido que tem mais peso na medida inversa dos rendimentos das pessoas. De uma forma ou de outra, o preço exorbitante dos derivados de petróleo vai ser sentido, e de forma dolorosa, nas carteiras de toda a gente. Serão os menos endinheirados a sofrer mais com os sacrifícios determinados pelo petróleo mais caro.

Também se estimam efeitos menores, sobretudo por quem não suporta esses efeitos – mas não pelos diretamente visados. A vodca russa deixa de ser vendida no Reino Unido. Provavelmente, o mesmo acontecerá nos outros países europeus, a menos que o lobby dos consumidores de vodca seja poderoso e possua representantes infiltrados nos corredores do poder. Da próxima vez que houver recordatória da guerra, abrir-se-á um capítulo para os boémios habituados a vodca, coagidos, pelos efeitos acessórios da guerra, a adestrarem a boémia sem a ajuda da vodca, ou a mudarem os costumes para sucedâneas bebidas. A guerra poderá ser uma dádiva para os produtores polacos de vodca. 

Há sempre alguém que fica a ganhar com uma guerra, o que torna a guerra ainda mais insuportável. Os comerciantes de armamento diverso, os que se mercam como mercenários, os produtores polacos de vodca. 

(Ou, de acordo com apóstolos da esquerda conspirativa, da esquerda que arrota o seu ódio antiocidental primário, a NATO – a maldita NATO e os interesses últimos a que esta dá cobertura: os interesses da “América”.)

15.3.22

À prova de fogo

Holly Miranda, “Waves”, in https://www.youtube.com/watch?v=rja3fo1uIw4

Nas terras duras, as rugas são o pseudónimo das pessoas. Diz-se que estão vacinadas contra as contrariedades que se jogam na metáfora da insularidade em que as terras estão sitiadas. Antes do progresso, eram terras quase inacessíveis. Só para lá chegar era quase uma dobra do tempo, o que chegava para demover a viagem.

Os rostos impenetráveis escondem os sobressaltos de quem se atira de cernelha contra a geografia amotinada. Como se a sua carne fosse amassada com os punhos das serranias alcantiladas, naqueles lugares que continuam por desmatar. Às vezes, diz-se que essas pessoas são boçais. Desconfiadas. Pagam o preço dos apuros até terem sido feitas adultas. Retiram a palavra “apuros” do vocabulário. Os demais não são culpados. São as vítimas colaterais das contingências orquestradas no mapa onde aqueles rostos impenetráveis disfarçam emoções.

Eles precisam de um dique para conter os penhores preparados na matriz do tempo. Não sabem o que é um chão alcatifado, um quarto aquecido na irredutibilidade do Inverno, a caça fértil e sem embargos, ou as estações amenas (que saltam aquele lugar). A fala austera previne as palavras inférteis – as palavras que costumam desaguar em arrependimentos tão espúrios como o que lhes dá origem. Comparam-se às cabras montesas que desafiam a gravidade nas veredas impossivelmente alcantiladas, como se elas fossem os étimos dos embaraços que são a tela onde se retesam. 

Levam várias voltas de avanço sobre os demais, os que não conhecem, a não ser na teoria sem teor plausível, os verbos arrematados naquela geografia. É como comparar um imberbe com um homem rijo, o primeiro agasalhado ao menor volteio de uma nortada fresca e o segundo de peito aberto enquanto é lenhador em proveito da comunidade e os flocos de neve agridem os antebraços nus que se entregam à função.

Eles são à prova de fogo, à prova da água abundante que sulca os seus próprios desfiladeiros, à prova das neves traiçoeiramente belas. Os corpos endurecem à mercê do quadro incomplacente que é a sua morada. Esse é o chão que alberga os seus corpos. Não podem protestar. Não o podem amaldiçoar. Não conhecem outro.

14.3.22

Uma ode ao desentendimento (ou quando é preferível não ser hermeneuta dos outros)

Moderat, “Easy Pray”, in https://www.youtube.com/watch?v=c71FWFOmSV0

(A propósito disto)

Deviam compor um hino às diferenças que existem entre as pessoas. Como se fosse a Constituição dos códigos de conduta e as pessoas soubessem que dos poucos imperativos aceitáveis é reconhecer que há ideias e opiniões diferentes das suas, sendo seu dever não as silenciar. Do hino devia também constar um patriotismo de divergência: no areópago dos argumentos, ninguém pode ter a pretensão que os seus estejam à frente dos demais. Desta constelação axiológica fará parte, ainda, a liberdade para desconstruir argumentos alheios, desde que não exista a ilegítima pretensão de aniquilar o potencial explicativo das ideias e argumentos rebatidos.

Por estes dias tumultuosos e cobertos de vergonha (em causa alheia, contudo), o viveiro de ideias e de argumentos que as suportam tem dado provas de uma vivacidade singular. Dir-se-ia que, paradoxalmente, os sobressaltos existenciais são o combustível de tantas ideias e argumentos; dir-se-ia, ainda, para completar a teoria geral do paradoxo, que arrefecemos a atividade intelectual quando estamos nos antípodas dos sobressaltos que nos empurram para o limiar de um precipício.

Têm acontecido ideias e argumentos que seriam improváveis não fosse a linhagem dos seus autores. Às vezes, apetece desconstruí-los, um atrás do outro, cientes que da nossa desconstrução não resulta um adquirido incontestável. Com a mesma liberdade que se ostentam esses improváveis argumentos e ideias, emerge a nossa liberdade de os rebater.

O código de conduta dos códigos de conduta devia também incluir uma válvula de escape: o direito a esquecer as ideias e argumentos lidos quando eles sabem a um punhal que se crava fundo na carne. Devia existir um qualquer mecanismo que, por ato de prestidigitação, ativasse um princípio geral de desentendimento que fosse limítrofe ao esquecimento de tais ideias e argumentos. Seria um favor com duplo sinal: para quem ativa essa válvula de escape e para quem teve a paternidade das ideias e argumentos que mobilizam o princípio geral do desentendimento.

11.3.22

Manual do esquecimento

P.J. Harvey, “Down By the Water” (live at Later with Jools Hooland), in https://www.youtube.com/watch?v=b1sG1-5gdes

A portaria da biblioteca escondia os fundos onde se postergam as memórias. As crianças brincavam como sempre o fazem, como se a sua pueril condição não tivesse a ver com as contrariedades que descompuseram os tempos recentes. Notava-se, nos rostos das pessoas, o desassombro da reinvenção da vida. Tinham estado sitiadas tempo de mais. Queriam ser elas a tutelar as vidas de que eram intérpretes, sem peias.

As esplanadas eram o viveiro destes tempos resgatados ao pretérito que antecedera os tempos de chumbo. As pessoas demoravam-se nas esplanadas, mesmo que as nuvens pesadas colonizassem o sol e o frio entanguecesse os corpos. Resistiam. Simbolicamente, resistiam. Jogavam-se contra o passado ainda fresco e a sua conspiração contra a liberdade.

O mar deixara de ser um lugar proibido. Como se os areais estivessem contaminados por uma matéria tóxica e as pessoas impedidas de saberem os sortilégios do mar. Agora era diferente – agora era como dantes (o que fora diferente foram os tempos de chumbo com as nossas jugulares sob o jugo de um fantasma encolerizado). As pessoas queriam voltar a aprender a textura da areia, queriam marcar encontro com o salitre do mar e o limo que cobria as rochas mais próximas do vai e vem das marés. A maresia compunha outros estados de alma, à medida que o esquecimento se levantava no dorso de uma maré a favor. Aproveitavam-se da efemeridade das marés para comporem os versos futuros das suas vidas.

Os corpos, dantes vedados uns aos outros, eram convidados mútuos na mais pura dimensão da humanidade. As pessoas já não tinham medo dos poemas, perdendo da memória os meses de tumulto que se encaixavam uns nos outros, numa saga que parecia interminável. Terçavam os olhares já despidos do medo. Iam ao mais fundo de si para trespassarem as algemas que foram alojamento involuntário, hibernando a sua liberdade. 

Nesta medição do sangue convalescido, o esquecimento era um compêndio centrípeto. Uma vez aberto, o compêndio era um imprevisto livro composto por páginas em branco, à espera de serem ocupadas pelas regras apostas pelos autores arrematados. O esquecimento prometia apenas um lugar diferente do passado ainda em fresca memória. Prometia que o porvir seria o que o acaso quisesse trazer até às areias molhadas pela maré mais recente. E as pessoas selavam o contrato com o esquecimento, emprestando o seu ouro às páginas entretanto ocupadas do manual. Fazendo do esquecimento a prova de vida da memória. Trazendo o esquecimento como renovação perpétua do tempo em espera.

10.3.22

O carrossel das bruxas

Band of Horses, “Warning Signs”, in https://www.youtube.com/watch?v=6iUt6h8XXf0

A maior indecência é das batatas dizer que não têm lógica. Se ao menos soubéssemos de tubérculos para tirar as medidas ao seu quociente intelectual. Mas não somos agrónomos ao ponto de o fazer. A menos que queiramos correr o risco de perpetuar injustiças sob o anonimato dos lugares-comuns que são o bálsamo do povo comum. 

As feiras nem sempre eram de vaidades. Cortejo não fúnebre de raparigas casadoiras, aperaltadas para a ocasião e excitadas com a ideia de encontrarem um príncipe perfeito, passeando-se em bando pelas ruas poeirentas da feira. Ao passar nos carrinhos de choque, olham de esguelha para os varões que posam com a pose típica da masculinidade tóxica – a pior pose que podem encenar. Elas não se importam. Foram educadas para obedecerem piamente aos que hão de ser maridos e nem sequer fazem a menor ideia do que é a masculinidade tóxica. 

Serão as esposas cientes da sua posição servil, quase escravas sexuais antes de a idade ser madrasta e se tornarem corpos disformes. Antes de os maridos perderem as suas capacidades em meretrizes avulsas e dos prostíbulos importarem maleitas venéreas que, todavia, não arriscam passar às consortes porque as deixaram de procurar. São elas que vão ser consumidas pelas angústias dos filhos atirados ao acaso perante a indiferença de quem se limitou a ser progenitor. 

Estas mulheres, vítimas de um mundo que se conjuga no masculino, serão os socalcos onde se pisam as uvas de vidas paralelas. E elas nem aos sonhos têm direito, diretamente atiradas aos caudais vertiginosos que se despenham num desfiladeiro sem aviso prévio, como corpos descartáveis por já não terem serventia de tanto terem servido o egoísta prazer dos consortes. São elas que se afogam nos prantos que rimam com a sua solidão enquanto os maridos apenas o são em estatuto, mergulhados numa cumplicidade de casta com outros varões de idêntica descondição numa peregrinação de tabernas e de vinho desqualificado. E eles, hasteados na boçalidade sociológica, arrotam com o ar ufano de quem conseguiu uma proeza enquanto as fartas barrigas de álcool escondem outras fragilidades agora esquecidas.

Estas são as mulheres que enviúvam e assinam juras de amor eterno aos maridos que dantes as maltrataram e de quem foram passivamente submissas. São elas que nunca mais despem o negro e carregam as olheiras de quem resgata os sonhos nunca atendidos, por falta de comparência de maridos idóneos. São elas que compõem o luto como nudez envergonhada. Ficando à mercê de bruxas que se transfiguram de deuses, enquanto as suas lágrimas preenchem o xisto onde escrevem os recados para do passado trazerem episódios consumidos num nada. 

9.3.22

Destatuagem

Thom Yorke, “Bloom” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EdmL835q9To

Contra o espelho puído, a vontade agiganta-se e faz do tempo uma vírgula remediada. A reivindicação dos verbos melhores não se joga contra os tumultos interiores que agitam as águas. Sem a redenção, não sabemos do paradeiro do arrependimento.

A lucidez compõe-se de uma constelação de peles que se acastelam umas em cima das outras. Ao longe, as carpideiras entoam prantos. Queria que esses prantos fossem órfãos. Que interessam os ossos desvalidos se deles não se encontra pilar capaz? Às vezes, as pessoas partem em demanda de um reduto sacrificial onde encontram os párias que dispõem a seu desfavor uma existência condoída. E não reprimem a pulsão autofágica, como se, pelo contrário, dela se alimentassem. As mágoas dos outros são mapas sem tinta para serem arroteados. 

Tudo se passa como se subíssemos a palco sem saber dar conta das horas em espera. A pele cobre-se de um disfarce que combina com o ar pútrido que é pior do que a malquista poluição atmosférica. Sob a pele, as tatuagens do passado somam-se em camadas. As imagens desfocadas, umas, e ainda avivadas, outras, ora desbotam ora mantêm os abcessos e os consolos emoldurados sob a tutela da perenidade. A pele procura a destatuagem para ser estátua de si mesma. Irradia a abastada vontade que se arpoa à promissória do futuro, esperando que os juros por vencer sejam a fotografia válida de um passado apreciado através da lente futura. Jura-se um passado que seja orgulho do futuro.

A pele sabe que não consegue erradicar todas as tatuagens de uma só vez. À medida que umas tatuagens se desapropriam da pele, outras esperam pela sua expropriação no sortilégio do tempo, para serem domínio reservado num centímetro quadrado de pele. Nesta substituição, a pele reinventa-se. Desarmadilha-se do torpor que pesa sobre os ossos doídos. Sem a pose envaidecida de borboletas campestres, antes como vegetação silvestre que povoa os baldios. Sem linhagem, apenas a vontade indómita de deslaçar as teias que aprisionam o tempo.

8.3.22

Forasteiro

TaxiWars, “Drop Shot”, in https://www.youtube.com/watch?v=Vi7HitLrVT8

Preciso do deslimite do espaço contíguo para não me saber forasteiro. Não há sextante que o consiga. No inventário dos meus sortilégios, não ser forasteiro nos lugares desconhecidos é uma doação mirífica. As terras demandadas, nunca dantes vistas pelos olhos atentos, trazem uma singular sensação de pertença. Talvez seja este o vínculo de uma pertença paradoxal: sou dos lugares que não sabia serem – e, ato contínuo, torno-me filho da despertença do lugar que se reclama minha identidade.

Dizem: é-se forasteiro num instante, cobrada a efémera despertença no conhecimento do lugar que entoava a sua estranheza. Um breve contacto e o lugar entranha-se na pele, como se na pele estivessem embebidas múltiplas tatuagens dos vários lugares demandados. Tão efémera é a condição de forasteiro como o é a pertença. Pois a mesma despertença que se alinhava no lugar que se convoca ao estatuto de identidade enreda-se na carne ávida de outros lugares. Como se acabasse por descobrir que não pertenço a lugar algum – e que a pertença é um logro que se afivela ao nosso pescoço, como um garrote que comprime a alma, condenando-nos ao um nanismo, todavia, invisível.

Talvez seja uma errância imorredoira que se levanta no horizonte. Dela se soergue a despertença que é procuradora do forasteiro irremediável. A curiosidade dos lugares por conhecer é a voz gutural que fica lacrada no magma que efervesce. Os braços atiram-se para a geografia sem conhecimento para dela trazerem um módico de pertença. Para, pretensiosamente, dizer que posso ser cidadão de todos os lugares, os habitados na memória e os que se lobrigam nos sonhos apalavrados. Se voltasse a ser criança, diria que queria ser forasteiro quando fosse adulto.

Da matéria não gasta se transfigura o sangue em espera. É como se o mapa estivesse por dentro das mãos e abri-las fosse o livro que conjuga os verbos desarmados com lugares em barda. Se pudesse, jurava ser curador de um álbum de fotografias que imortalizasse memórias dos lugares havidos. Noutra secção do álbum, a secção da memória futura: teriam lugar as fotografias dos lugares ainda sem paradeiro. À espera que deles pudesse dizer não serem jamais os lugares onde me acastelo, forasteiro. À espera que o calendário fosse feito de uma viagem sem prazo nem congeminações. 

O sonho maior, era sair sem mapa que me pudesse ensinar um destino.

7.3.22

A meias

Radiohead, “Man of War”, in https://www.youtube.com/watch?v=DXP1KdZX4io

Sem bússola, os passos pareciam a pedagogia da errância. Podia ser que estivesse a percorrer os mesmos caminhos, mas de vezes anteriores, ou por ser noite – ou por estar nevoeiro –, esse lugar parecia um lugar diferente. Um sonoro sibilar amparava um remoto sentido de localização. Antes que a rendição trovejasse sobre a teimosia desamparada, tentaria mais uma vez. Antes que continuasse a dissolver a paciência nos círculos que desenhava, pois acabava por desaguar na mesma casa da partida. 

Lembrou-se dos mapas de papel que o acompanhavam dantes, para que o seu paradeiro não fosse desconhecido. Sem bússola e na desmoda dos mapas artesanalmente figurados, o seu paradeiro era desconhecido dele mesmo. Era como se o corpo tivesse fugido dos seus limites e todo ele fosse um deslimite em petição de ordenação. Por mais que urdisse o metódico pensamento, não sabia se conseguia vencer o lugar subitamente inóspito. 

Os pensamentos estavam em ebulição. Tinha receio que a quimera de pensamentos, em toda a sua abastança, tivesse um travo de perda de lucidez. Às vezes, os pensamentos tornam-se gongóricos e a cacofonia derrota a consciência. Tinha medo de estar sozinho nesta demanda.

Uma tempestade estava por perto. Tinha de se abrigar da cólera dos elementos, que não tardava. Enquanto esperava que a tempestade fosse a correr para outros lugares, a revisitação do passado tomou conta do lugar exíguo que dera guarida. Deslaçada, a primeira memória libertou-se para avivar o hoje. Na grande cidade, parado num semáforo, um homem saiu intempestivamente do carro e, vociferando ao acaso, desferiu socos nos carros que estavam nas imediações. Os demais, atónitos com o destempero e talvez assustados com o estado iracundo do beligerante, ficaram inertes – até os que estavam nos carros que tinham sido vítimas da ira. Até que um dos circunstantes rompeu com a covardia coletiva e saiu do carro para dominar o homem acossado pela súbita loucura. Este, mal notou a intrepidez do outro que o desafiava, amansou e curvou-se perante ele, tremendo de medo. Tão depressa veio de louco a manso animal amestrado, prostrado em manifesta dose de humilhação auto-praticada. 

Enquanto o vento arremetia com força, trazendo a chuva copiosa a tiracolo, caiu em si. A errância por falta de paradeiro não o angustiava. Ao menos, naquele lugar ermo, sem vivalma por perto, não tinha de ser testemunha involuntária da loucura fermentada no destempero das cidades modernas. A tempestade haveria de passar. Se demorasse a encontrar o seu paradeiro na cordilheira que parecia composta por montanhas iguais umas às outras, não viria grande mal ao mundo. 

Da modernidade, não queria ser coautor. Preferia o exílio forçado numa metáfora de si mesmo, nem que fosse preciso fingir que a cidade era um ermo lugar e que não era feita da companhia de uma multidão. 

4.3.22

Corrosão (vidas resumidas)

Cammel, “Beautiful Stars”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ygy4kUwV2B8

Não são as ruínas que assustam. Não é a decadência que encoleriza. As mãos percorrem as paredes irregulares e encontram a ferrugem que se desprende do mosto metálico à mostra. A cofragem irrompeu entre o cimento e profetiza a corrosão. Mas nem assim as ruínas que se prometem acendem o medo. Pois há outros lugares que já não existem, depostos pela demência dos Homens. Outros que estão numa fase mais avançada de decadência, sem se poderem reger por si próprios. Outros, ainda, embebidos no medo da existência, sem saberem do paradeiro das ondas tumultuosas que se esmagam no seu dorso.

Outros: somos “nós e a nossa circunstância”, e ninguém se cuida por ser uma ilha, destinada à ausência dos outros. Não julgamos o lugar de onde nos projetamos sem arrematar a posição de outros que sobem ao oráculo da comparação. Somos satélites uns dos outros, sem sabermos ao certo qual é o lugar centrípeto de onde dimanamos. 

A corrosão é uma equação do tempo que não se suspende. As lavas atiradas sobre os dias desgastam o corpo. O pensamento torna-se baço, como se uma cortina encorpada se abatesse sobre o fio do horizonte e impedisse a lucidez. As vidas jogam-se contra a conspiração do tempo assim esgrimido. E nós, frágeis, somos os atores presos à passividade. A certa altura, reféns da corrosão que entorpece e nos torna conscientes da finitude. Já não há lugar à inconsciência de outrora, quando os anos eram ainda imberbes e ninguém admitia que a finitude estivesse em espera. 

A consciência da decadência precede a interrogação da morte. Contra os prognósticos sombrios e as masmorras da finitude como destino irrevogável, a flexibilidade do pensamento ousa desafiar o critério do tempo. É como se os relógios passassem a estar em compasso com outra dimensão do tempo e ele se medisse por uma norma diferente. A corrosão não averba a capitulação. É o presságio de uma transfiguração que convoca outra mediação no estatuto tangível da finitude. A janela que fica aberta à tradução dos olhares que se modificam na pele dura da mudança que exige mudança. É a prestidigitação à medida das mãos que não capitulam. 

A corrosão é a prova que nos foi dado arrotear uma medida do tempo que outros deixaram de saber sentir. Uma dádiva.

3.3.22

Os filmes que nunca vi

Ólafur Arnalds, “Fystra (Living Room Sessions)”, in https://www.youtube.com/watch?v=SDezzDQVy6M

Havia um tempo repudiado. Um tempo desconhecido, que só podia figurar como eclipse na geografia onde o corpo se entedia. Falavam de filmes que eu não conhecia. Era como se houvesse uma vida que me pertencia e de que fora ausente.

O pensamento rasurado albergava as interrogações sucessivas. Já era uma dádiva saber formular as interrogações. Não pedia que as vidas não vividas viessem ao meu inventário. Aprendemos a povoar as impossibilidades à medida que as marés se enquistam na memória, deixando atrás delas os estilhaços que nunca puderam ser apanhados. Se essas vidas não foram vividas, ao menos os estilhaços por elas derramados não eram cobertos pela significação da vida de que era testemunha. 

Às vezes, diziam que gostavam de estar no avesso das coisas para saber o que deles era dito pelos outros. Era a sua métrica, todavia não assumida, de entrar em filmes que esperavam na penumbra pelos olhos enfim atentos. O critério era um segredo mal escondido: se a génese fosse identificada com precisão, poder-se-ia enumerar os filmes que nunca víramos e que estavam à espera da nossa tutela. Deixávamos o resto à paciência e à disciplina.

Uma voz invernal lembrava que não podemos dizer que somos testemunhas da noite, porque a noite é consumida pelo sono. Mas, à noite, enquanto o sono a atravessa, não estamos sozinhos na hibernação. O sono averba-se nos sonhos e nos pesadelos que, sem critério, aportam no cais de que somos curadores. É nas entrelinhas dos sonhos e dos pesadelos que cuidamos da noite que dizemos ser uma ausência. Esses são os filmes que dizemos que não vimos e que colonizam os sonhos e os pesadelos guardados na noite.

A especulação colhe o seu terreno fértil: qual seria o nosso papel nos filmes industriados pelos sonhos e pesadelos para que somos arregimentados? Deixamos ao critério da indiferença, a menos que queiramos substituir o tempo presente, o tempo que vem ao nosso regaço, pela nuvem de Juno onde as paredes se liquefazem ao menor toque dos dedos. Povoamos os sentidos com a métrica do pragmatismo: se o tempo é macerado pela escassez, por que nos deixamos seduzir por um tempo especulativo, pela transigência com o corpo imaterial do imprevisível? 

Intuímos uma resposta entre duas pinceladas do sol desmaiado que habita o ocaso. A vertigem do tempo especulativo mobiliza-se contra a implausibilidade do tempo presente, contra as suas arcadas dominantes que motivam a nossa sublevação. É desse tempo sem mácula, do tempo que não chega a ser, enfim, dos filmes que não vimos e nem participámos, que se levanta uma pulsão indomável. Queremos que haja teatro, muito teatro, a ocupar o palco onde assentamos. Como sucedâneo do único tempo que os sentidos conhecem e preferiam desconhecer. Participamos no princípio geral do fingimento e sentimos inteiros com isso.

Os filmes que nunca vi são aqueles que arrematam as personagens impuras que não moram no hoje sem adesão possível. São aqueles que um tempo especulativo, um tempo desenhado nas suas desregras, trouxer à margem. Nem que seja como despojos, ou como acasos açambarcados na ilíquida quota que de mim se teça. 

2.3.22

Princípio geral da embraiagem

Massive Attack, “False Flags”, in https://www.youtube.com/watch?v=DilYs7scIgU

Os nomes deixaram de ser credenciais. São apenas isso, nomes, que é como quem diz, um número que nos identifica como tal, não como a pessoa que lhe dá origem. Através dos nomes parece que embraiamos: vamos em roda livre, a tempestade perfeita que anuncia o desastre. Dirão: mas um nome é o aval da personalidade que se é. Não se conteste a advertência. Temos de ir mais longe: os nomes serem indissociáveis das pessoas é o que as menoscaba enquanto tal. 

As provas torrenciais sugerem o contrário. São os nomes que entronizam as pessoas, que as corporizam como seres a quem são delgados direitos e deveres. E, todavia, a simbiose convoca o desenraizamento da pessoa: ela é enquanto nome que a identifica. Fala-se de identidade como um deslaçamento da pessoa a quem a identidade é uma outorga de direitos e deveres. No rescaldo do processo, é a pessoa que fica a perder. Perde para o nome que é seu procurador. Os nomes terçam-se numa praça infindável, onde se amontoam como se às pessoas deixassem de pertencer. Pois não há quem consiga saber de cor os nomes de todas as pessoas. Nem os arquivos, sem a ajuda dos algoritmos que inundam o processo de artificialidade.

As pessoas, deste modo esbulhadas do húmus da sua personalidade, são industriadas a colocar os nomes à frente das pessoas que são. Vão embraiadas, em roda livre, à mercê das contingências que supõem uma miríade de contributos alheios; à mercê dos sobressaltos originados no seu exterior e que elas não conseguem domar. Pois o binómio nome-pessoa não vale o mesmo para todos. Só um punhado de pessoas pode assegurar que o nome não é estranho para os outros. Os demais aprendem a saber que os seus nomes são irrisórios para os semelhantes, por não passarem do estatuto anónimo. Não se fale em igualdade enquanto esta desigualdade se mantiver.

Paradoxalmente, é uma desigualdade que se joga a favor da imensa massa anónima. Quando um nome adere a uma pessoa, essa pessoa fica permeável ao escrutínio dos outros. Podem ser de outro calibre as dádivas atribuídas aos que fugiram do anonimato, mas o reconhecimento público é o ónus que carregam. Os verbetes jogam-se, torrenciais, a favor da miragem da igualdade, como se a jurídica atribuição de um nome a cada pessoa fosse dela a sua garantia. 

Devíamos aprender que os nomes que carregamos são produto de uma tirania silenciosa que se abate, sem o percebermos, sobre a personalidade que nos tutela. A ninguém é dado reconhecer que a pessoa precede o nome. Ao contrário dos lugares-comuns que certificam a vinculação de sinal oposto.