30.6.21

Leme

Dead Can Dance, “Opium” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tFk0cPwULD8

Podia lançar à água mil navios sem as letras maiúsculas a debruarem o casco. Provavelmente, falharia. Mas a tentativa é todo um poema que interessa reter. O processo de intenções. A linhagem dos ardis precisos para alinhavar a proeza. Saber se se tratava mesmo de uma proeza. Antes de apurar os augúrios, confirmados ou não.

Precisava de um leme. As mãos precisam de solo firme, não se agarram ao vento promitente. O leme dar-me-ia sentido. Sem ele, são vãs as tentativas de lançar mil navios à água, ou qualquer outra empreitada. Precisava de saber se o leme foi devidamente polido. Se não tinha arestas que pudessem calejar as mãos, conferindo-lhes a anestesia que é o tear dos fingimentos. Para não mergulhar nas profundezas de uma ilusão, convencido de um rumo que traz a lugar algum.

Às vezes, parece que as empreitadas perdem sentido assim que são concebidas. Dissolvem-se num jogo de sombras que as torna uma miragem, sem contornos que permitam às mãos agarrar-se. O leme não precisa de coordenadas milimétricas. Mover-se-á por uma ordem espontânea, que não obedece ao rigor matemático de equações laboriosamente fixadas. Mover-se-á, sem saber para aonde. Os mil navios lançados à água são os seus plúrimos intérpretes. E os sonhos já não são apenas uma medida líquida, abstrata, mas o aval de um fado irrepetível.

Não há ondas temíveis a assombrar os mil navios lançados à água. O inventário dos medos será emparedado por operários diligentes, a soldo das ordens bondosas que confundem política com poesia. Ou talvez não: a poesia não merece tamanha contaminação. Os navios, os mil navios sulcando os mares inteiros, serão como estrofes desenhadas na cartografia dos oceanos. Dizendo-lhes, em sílabas docemente ciciadas, que os mares são apenas o avesso dos pés que se firmam em terra sólida. 

E o leme, à espera das intenções, luzidiamente inerte até que umas mãos sejam o seu depositário. 

29.6.21

O salva-vidas usava baton

Zero 7 ft. Lou Stone, “After the Fall” (live session), in https://www.youtube.com/watch?v=u55upGlscKg

O dia estava fresco, o sol levantara-se há pouco. Ninguém na praia. Não era preciso obedecer à sinalética que descruza os veraneantes consoante estejam de entrada ou de saída da praia. Não havia vivalma. Rareavam, até, os automóveis. A cidade acordava tarde. Deu ao dia umas horas de avanço.

Só os homens do lixo e um autocarro de passageiros aqui e outro ali tinham a ousadia de desterrar a noite que, ao que parece, entrara pelo dia adentro. Os mandamentos dos ensonados faziam fé na penumbra que se disfarçava de claridade matinal. Talvez a véspera tivesse sido de folia, uma daquelas celebrações próprias do início de Verão em que, a pretexto de consagrar um santo padroeiro, liberta as pessoas para o hedonismo. Mas a consulta ao calendário não revelou uma efeméride. Talvez fossem apenas as pessoas a adiar o começo da segunda-feira.

Parecia que o dia estava mandatado sob consignação. À espera dos primeiros bravos que se cansassem do sono tardio. Na praia, as primeiras almas começaram a sondar as sobras da maresia que sinaliza a humidade, aquela ponte entre a noite e o dia que tem o nevoeiro como mediador. O nevoeiro não tardava a dissipar. As pessoas começavam a não precisar de agasalho. À medida da sua temperada subida, o sol fazia sentir o abrasear. Era como se um chamamento silencioso trouxesse mais pessoas para junto do mar. Dizia-se: antes que esteja a nortada que afeia a tarde, aproveitemos o sol temperado.

O salva-vidas estava de atalaia à entrada da praia. A sua musculatura impunha respeito. Com um gesto firme, direcionava as pessoas para os lugares certos. A peste ainda amedronta os temerários. De acordo com o salva-vidas – devidamente instruído pela propaganda do ministério da tutela – os despachados que se aliviaram de medos devem ter o devido acompanhamento pelos mais esclarecidos. Ele estava entre os mais esclarecidos.  

Umas mulheres menopáusicas, em magote, estavam deslumbradas com o salva-vidas. Avivando memórias, segredavam desejos com o salva-vidas. Se soubessem que o dia não começa a meio da manhã, o rapaz talvez não as destinasse à indiferença. Não sendo assim, elas só puderam notar (descontadas as fantasias sem confissão) o baton nos lábios do salva-vidas. 

Deve ser umas destas modernices. Homens com laivos femininos – pressentiu uma das mulheres.

 - Não sejas parva. Então não se percebe que é baton para proteger do sol? – ripostou outra, mais conhecedora da indústria dos cosméticos.

Num salto no tempo, a véspera da noite, quando o entardecer desmaia no estertor da luz diurna, devolveu o lugar ermo que era a praia fora da estação alta. A nortada ainda não dera tréguas. O fim do dia era o sinónimo do vendaval. Àquela hora, o salva-vidas já não personificava o salva-vidas. À civil, devolveu aos lábios a sua cor natural.

28.6.21

O apóstolo da normalidade encontra-se com os seus paradoxos

Jack White, “Sixteen Saltines”, in https://www.youtube.com/watch?v=DsixWMdScUI

Da janela do escritório, as nuvens acasalam-se com o crepúsculo, antecipando a noite. Dizia: “lembro-me de ter estado num país nórdico no inverno. À hora do almoço começava a anoitecer. Fiquei cansado de tanta noite. Se pudesse, vivia ao contrário do inverno, só para ter mais luz diurna.”

Todavia, lamentava a canícula. Era só o mercúrio do termómetro subir um pouco além dos vinte graus centígrados e já estava um calor que não suportava. Dizia: “se pudesse, vivia dentro de um ar condicionado, ou de um iglô, se o iglô não derretesse. Ou então, pediria a uma divindade para boicotar o termómetro, se o gelo não compensasse.”

Mas era alérgico ao gelo. As outras pessoas deitavam gelo nas bebidas – porque o gelo funciona como ingrediente de algumas bebidas. Ele não podia. O gelo, ou as bebidas refrigeradas, intumesciam a laringe e ele ficava no limiar da apoplexia. Também não podia deitar gelo em entorses ou em músculos danificados que pediam gelo para a reparação.

Ninguém lhe podia falar em visitar hospitais. Estava traumatizado por visitas anteriores, quando mazelas de diverso grau e importância ditaram visitas a hospitais e, alguns casos, internamentos. Tinha pesadelos com enfermeiras em uniforme. Pesadelos com médicos pré-sexagenários, os decanos das equipas, com a sua pose arrogantemente aristocrática e o desdém com que se dirigiam aos pacientes. 

Paradoxalmente, considerava a paciência uma das suas melhores virtudes. Muitos feitos tinham sido possíveis porque soubera perseverar. Não era pessoa de desistir à primeira contrariedade. Sabia atalhar um não como resposta, limando as arestas que fossem precisas até o transfigurar no sim pretendido. Diziam que nasceu para ser diplomata.

As relações entre os países não eram da sua lavra, porém. Não tolerava a hipocrisia que campeava entre os diplomatas. Tinha medo de diplomatas, que confundia com agentes secretos a soldo de inconfessáveis interesses dos países que os recrutavam. Desconfiava. E não era só de diplomatas. Era das pessoas, em geral. Dizia: um desconfiado não pode ser diplomata.

Não se importava que os outros replicassem na mesma moeda e desconfiassem dele. “Como os percebo! É o ónus da reciprocidade. Se eu não confio, não posso pretender que seja de confiar aos olhos dos outros.” Era apenas um espelho da espécie retorcida em que nos tornámos. E ele, como representante anónimo da espécie, não se escondia da mediania. Não sabia de outra solução.

Não lhe pedissem para sufragar as suas fragilidades. Essas só lhe diziam respeito. Já chegava ter a noção que não era pessoa que recomendava aos outros para ser parceiro de vida.

25.6.21

I’d rather not (short stories #330)

Radiohead, “Weird Fishes/Arpeggi”, in https://www.youtube.com/watch?v=FcANFVcJeOM

          Antes que seja a armadilha a fala cantante. Antes que o medo colonize o sono. Antes que do desfiladeiro tenha a impressão como da cal viva sobre feridas abertas. Antes que os viveiros de profetas se escandalizem com o futuro que os recusa. Antes que feiticeiros a soldo desembainhem a artilharia contra os corpos sacrificiais. Antes que a boca experimente o ingrediente subjetivamente incomestível. (Podia ser trufas, ou hortelã, ou cominhos, ou sangue fervido.) Antes que a noite seja premonição de fantasmas à espera de serem esconjurados. Antes que o comboio encomende o fecho da passagem de nível. Antes que os frutos estejam tão maduros que esportulam a sua própria decadência. Antes que os olhos se cansem e deixem de ser testemunhas vivas de uma manhã vivaz. Antes que as bandeiras sejam apenas estilhaços e as pessoas consigam ser mais altas do que uma pertença. Antes que os despojos sejam incinerados pela maré seguinte. Antes que os beijos deixem de ser a gramática. Antes que as cinzas estiolem os rostos emoldurados nos vitrais. Antes que os relógios apareçam esmurrados. Antes que os labirintos sejam encerrados por crime de complexidade. Antes que as claraboias mostrem apenas o mundo puído. Antes que sejam as pontes as derradeiras fronteiras. Antes que os regentes sejam confiáveis. Antes que um salvo-conduto substitua os passaportes. Antes que o necessário seja eufemismo do ineludível. Antes que as braçadas no rio se afastem do cais e habitem um ermo. Antes que sejam gratuitas as compensações. Antes que se confundam as cores das palavras com paliativos. Antes que os poços voltem a ter fundo. Antes que seja herdada a meia-haste invencível para o futuro. Antes que amanhã seja apenas uma réplica dos muitos ontem: antes de tudo mais, o irrefragável desejo de ser partitura de uma moldura capaz.

24.6.21

Impoliticamente correto (sem ser boçal)

Nils Frahm, “Fundamental Values”, in https://www.youtube.com/watch?v=A-y-le7hPEw

Petição de princípio: como gerar a angústia sem acabar refém dela?

As modas são a pior prisão. Escondidas sob o verniz do “consenso”, aperaltadas como eufemismo da “imensa maioria” – com o que de discriminatório isso envolve, pois fica provado que a dissidência merece ser abjurada –, o pensamento dominante pode ser um catálogo de totalitarismo disfarçado. Sob pretexto de rejeitar discriminações, arrepia-se o caminho da discriminação. Não fica nítido se a discriminação que resulta da negação de discriminações é intencional, ou apenas produto de um excesso de voluntarismo.

E assim se expõe a não linearidade das propostas a concurso. Pode-se negar o racismo sem cair na exacerbação antirracista que contém em si o seu totalitário fermento. Pode-se recusar o discurso e a prática homofóbicos sem fazer sentir que a heterossexualidade é um comportamento de risco. Pode-se protestar contra um estar misógino sem perfilhar extravagâncias que, muitas vezes, colocam os homens no limiar do intolerável. Pode-se denunciar a xenofobia e as execrações nacionalistas sem normalizar as propostas que gravitam noutra esfera totalitária. Pode-se rejeitar a ditadura do politicamente correto sem deixar de ser impoliticamente correto.

 Há dias, um músico lamentava algumas canções do seu reportório que evocam a malparida superioridade masculina e levantam o véu sobre a mulher enquanto objeto sexual. Não interessa que esse músico seja conhecido pela sátira e por reproduzir, nessa sátira, um laboratório do que é a sociedade. Confessa que deixou de tocar essas músicas ao vivo, porque foi notando o incómodo que elas geravam em algum público e até foi confrontado com reações hostis. Não interessa que as letras dessas músicas sejam a sátira de um comportamento reprovável. Não fosse necessário fazer legendas para a cognição dos eruditos, dir-se-ia que a sátira opera como fator de censura do que é satirizado. A liberdade de expressão, vértice da criatividade artística, já teve melhores dias.

Um dos problemas do politicamente correto que se abate como código de conduta indeclinável é insistir no mesmo erro de outros setores que também são alvo dos seus arautos. Tal como os setores mais retrógrados da igreja, os mecenas do politicamente correto advertem os incautos que não se brinca com coisas sérias. O outro problema, é o devir totalitário que se derrama sobre o “cidadão consciente” – o cidadão aceitável: dizer-se, ou apenas deixar em forma de insinuação, que existe um código de conduta indeclinável é um cercear da liberdade que se insubordina contra os seus fautores. Ou que deixa à mostra o seu código genético.

Talvez a válvula de escape esteja no contínuo posicionamento crítico que recusa aquartelamentos herméticos. Os exageros, partam de onde partirem, são a má moeda. Antes continuar a ser impoliticamente correto.

23.6.21

Da água que dá de comer

Sault, “Free”, in https://www.youtube.com/watch?v=_xWmPGhqWRM

As flores experimentam a decadência, mostrando-se senescentes na jarra que é a sua morada. No fundo da jarra, os sedimentos angustiantes das flores que já não alcançam água. A água extinguiu-se. Os seus últimos mililitros, devorados pelas flores sedentas e perdidos na evaporação. A morada das flores tornou-se num ermo. Num lugar assassino.

Há quem não dê aval ao clamor silencioso das flores que agoniam. Há quem se impressione com o caule dobrado para trás e as pétalas enrugadas. Não querem que o quadro seja a expressão de um torpor. Querem reavivar as flores. Procuram a água de que as flores precisam para voltarem a ser vida. Não têm a certeza de que essa água consiga reanimar as flores. Não custa tentar despojá-las do coma. 

Na pior das hipóteses, as flores cadáveres saberão que alguém as tentou trazer de volta à vida. Um pensamento inútil. Quem assim elabora procura sossegar as dores interiores que são uma consumição. Sabem que em estado cadavérico nenhum ser vivo deita a mão a impressões, sejam quais forem. Talvez seja a forma de aliviarem a culpa dos outros que deixaram as flores em tamanha decadência. Ou talvez nada disso importe, a não ser uma derradeira tentativa de reanimação das flores.

Verte-se a água, vagarosamente, na jarra que é a morada das flores decadentes. Espera-se que o tempo faça o resto. Espera-se que a água dê de comer às flores murchas. E que elas voltem a ser vida. Não se sabe se as flores murchas cruzaram o limiar do inevitável e estão condenadas a esmaecer em seu leito de morte. Ou pode ser que ainda haja uma última centelha e que elas sejam resgatadas do estado comatoso. Espera-se que a água seja aquilo que dela se pensa. Uma fonte de alimento. O instrumento da redenção de um corpo vivo que se arrasta pelos corredores onde se pressente a morte.

As flores voltam à vida. Mostram, enquanto se saciarem na água periodicamente renovada, que são imarcescíveis. Enquanto o seu próprio ciclo de vida não tropeçar na finitude. Até lá, não são a prova da decadência, mesmo que assim se mostrassem pela incúria de quem delas cuidava.

 

22.6.21

Celebração (short stories #329)

Neil Young, “Harvest Moon” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xMjDc8MJotU

          Não sabíamos dos sortilégios escondidos no crepúsculo da memória por haver. Não era algo que nos angustiasse. A maldição do futuro é uma incógnita por revelar e que apenas se desfaz no dorso do tempo à medida que se transforma em acontecimento. Não ambicionávamos ser contrabandistas das marés vindouras. Sabíamos que era inútil esperar pelo olhar das marés consecutivas e pelas garrafas perdidas no meio do mar. Seriam garrafas abandonadas por marinheiros, na compensação da solidão. Sem mensagens por teor a fazer de vez do whisky que alegrou um par de marinheiros. Juntávamos as mãos na areia molhada e desenhávamos as palavras que dançavam na carne viva do pensamento. Palavras sempre avulsas. E por mais que delas não se colhesse uma frase notória, sabíamos que com essas palavras éramos poetas de uma vida inteira. Celebrávamos. Celebrávamo-nos. Sabíamos que, na nossa insignificância enquanto átomos pertencentes a uma constelação de rostos sem nomes, éramos como as árvores centrípetas que davam alimento às vidas que transformámos num destino. Não esperávamos pelo futuro. Não estávamos sentados no passado, que tivera um lugar na ossatura do tempo. Celebrávamos o percentil do tempo que nos era dado a apreciar. O tempo tangível, esse que se pode apreciar. Os instantes que sabíamos demorar. Outros diriam que esses instantes ficavam emoldurados numa partitura onde se compunha a identidade. Não era o nosso caso. Deixávamos as memórias aos penhores do passado. Sabíamos que as memórias, sozinhas, não são matéria suficiente para agradar ao tempo presente. Era esta a única ditadura que aceitávamos. Uma ditadura que não se impunha sobre a nossa vontade; era o produto da nossa vontade, para depois se depor nos nossos corpos e dela sabermos as costuras para desembaraçar as encruzilhadas sem salvo-conduto. A celebração é perene, enquanto de nós houver algo para os dias contarem. Se tudo correr como contamos, os tempos não têm fim.

21.6.21

Mito mumificado (atleta de baixa competição)

Yann Tiersen, “Poull Bojer”, in https://www.youtube.com/watch?v=dwW1bI6epno

Dizem: cara de poucos amigos. Mas que cara tem quem tem poucos amigos? Uma má cara? É por ter poucos amigos que exibe uma (má) cara? As hossanas à abundância continuam a fazer parelha com o mundo dominante. Distraindo os cidadãos, que são desconvidados das substanciais coisas que deviam importar.

É um dos muitos mitos cristalizados. Um homem tem de ter amigos. De outro modo, é misantropo. Não ocorre, a este sentenciar vulgar, que um homem pode não sentir afinidade com os outros. Pode, até, não se disfarçar na hipocrisia que é a casa comum de todos os que fingem tolerar os outros só para ganharem um lugar no grupo. Dizem que é o selo da pertença. Ninguém consegue ser eremita.

Se ao menos fosse rigoroso o reconhecimento da mumificação dos mitos. Não é um juízo de valor. Para ser um mito, é uma a prática que se enquistou. Faz parte da identidade e as pessoas nem chegam a intuir a camada submersa de onde poderiam interrogar o mito. Os mecenas do conservadorismo não admitem o questionamento. Os mitos recebem-se como património herdado. Aceitam-se. Não se acicatam. Remexê-los agrava as cicatrizes que disfarçam as feridas abertas. O mito é a maquilhagem que aplaca essas feridas.

Os compêndios instruem as almas carentes de ensinamentos: os mitos mumificados estão embebidos porque as pessoas reivindicam uma pertença. Grande parte do cimento dessa pertença encontra-se nos mitos avulsos que constituem um todo inorgânico. É algo de metafísico. Convoca a crença e redireciona para a dogmática. Dos mitos não se duvida para não contrariar o significado de um dogma. O raciocínio circular asfixia o pensamento autónomo.

Os dogmáticos deviam saber que os dogmas reduzem os destinatários a uma pertença acrítica. São intimados a acreditar no mito, quase apenas porque é um mito, levando pelo caminho parte importante do sentido crítico, que fica em estado vegetativo. As pessoas não passam de uma fração do que podiam ser. Sem darem conta, o que agrava o estado das coisas. 

É como se fossem todos – todos os que acriticamente se deitam com os mitos mumificados – atletas de baixa competição. Marionetas inconscientes de o serem. Sem imaginarem como são meros peões às mãos de interesses de outros que colonizaram a lucidez.

18.6.21

Espião escondido com o rabo de fora

PJ Harvey, “This Is Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=STxXS5lLunE

Os espiões não vestem uniforme. Para serem espiões e se fazerem passar como tal não podem ser reconhecidos como espiões. Devem ser como fantasmas: ninguém os vê, mas conseguem sobressaltar meio mundo. O espião aprendeu a cartilha toda. Debitava-a de trás para a frente. Não foi por acaso que teve vinte valores nas provas de aferição para a função.

Mas o espião era um distraído incorrigível. Esquecia-se dos objetos banais em lugares improváveis. Teve sempre a sorte do seu lado. Os esquecimentos e as distrações nunca o comprometeram. Era como se fosse espião por dentro de ser espião. Um bom espião – diz-se – consegue passar entre os pingos da chuva sem se molhar. Ele fazia-o melhor do que ninguém. A sua cotação entre as chefias era das melhores entre os seus pares.

Mas houve um dia em que o espião se enamorou (talvez não seja a palavra fidedigna) por uma mulher voluptuosa que entrou por acaso na sua vida – ou talvez não tão por acaso. A cada encontro, a cada palco onde a intimidade crescia, o espião e a apaixonada trocavam segredos encerrados nos túmulos que são as vidas das pessoas. A cápsula de ferro do espião estava resguardada. Ele sabia (fazia parte da extensa cartilha da espionagem) que há segredos que não se contam nem sob tortura. Os momentos passados com a apaixonada estavam longe de ser uma tortura. Que ninguém (os superiores hierárquicos, os interesses estabelecidos e a pátria) receasse que o espião comprometesse a sua diligência. A literatura teve os seus episódios de mulheres infiltradas que conseguem extrair os segredos insondáveis de espiões que se julgava serem à prova de bala. Ele estava ao corrente. Precaveu-se.

Uma noite de volúpia terminou com o casal apaixonado em total devassidão. Um cocktail explosivo de prazeres carnais extravagantes, bebida e drogas. O espião não conseguiu pôr um freio e deixou de ter as rédeas. A língua destravou-se na exata medida do oblívio da cartilha. O cocktail explosivo teve repercussões. O espião começou a falar, ininterruptamente. E, ela, fingidamente atónita, a registar tudo com a sua memória fotográfica. 

Na manhã seguinte, ela desertou da paixão arrebatadora, deixando o espião inconsolável. Restou-lhe saber que a formatação devia ter resultado: ele fora treinado para passar segredos que eram a antítese dos segredos que continuava a guardar. Soube, à data da reforma, que os segredos de que era tutor eram os tais segredos virados do avesso. Ele fora um espião infiltrado entre os espiões, um agente duplo virado do avesso. À custa das suas mentiras, muito a pátria (e os interesses instalados) tiraram partido à custa dos países adversários.

17.6.21

A elegância automática

 

God Is An Astronaut, “Infinite Horizons” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=V7I-33UgoDs

Aperaltados, os elegantes passeiam-se, ufanos de tanta elegância. Só as melhores farpelas têm concessão naqueles corpos. (Ou que se convencionou ter como melhores farpelas.) Estão convencidos que envergá-las é caução para a elegância automática.

Os elegantes acreditam que o leve cair dessas farpelas transfigura os corpos. Todos passam a ter a unção da elegância. Até os que são exagerados nas dimensões dos corpos e os outros que, disformes, são museus andantes da deselegância. (Aqui entendida como a antítese da elegância). Reconhecem nessas farpelas um sortilégio. Por um efeito que só forças sobrenaturais conseguem explicar, corpos que não se diria serem elegantes metamorfoseiam-se em paradigmas da elegância.

Os próceres da elegância frívola teriam de admitir que as mesmas farpelas podem aterrar no corpo de um boçal e que, por esse efeito, o boçal se transfigura num elegante. Dirão, em sua defesa (e sob juramento da sua própria incoerência), que a elegância não contrasta com a boçalidade. Sem perceberem, dão o flanco: pois a elegância seria sinónimo de castas superiores, não compatível a sua pertença com a admissão a concurso dos endinheirados boçais.

As contradições fazem o seu caminho. Os mandatários da elegância apavoram-se com as boçais exibições dos que não têm a devida linhagem. O dinheiro disfarça as fragilidades que, sem a sua caução, seriam obstáculo à admissão dos boçais no escol dos elegantes. Ficam longe da lucidez que seria advertência para a frivolidade da gramática da elegância. Afinal, ele há elegantes que começam por ser deselegantes mal abrem a boca ou se destratam em público. Mas usam as muito elegantes farpelas, que são o salvo-conduto da elegância automática.

Louve-se a magnanimidade dos jurados da elegância, aptos a admitir a concurso os que disfarçam a deselegância atrás do vitral da aparência. Democrático mais democrático, é difícil de inventariar. O democrático pesar não esconde os termos da contenda: quem quer ser elegante – nos termos dos curadores da elegância, ou noutros termos em que seja tratada a elegância – se a elegância é o idioma da frivolidade?

16.6.21

Vivo ou morto?

Darkside, “Lawmaker”, in https://www.youtube.com/watch?v=OhrOGV0mlT4

Nunca percebi por que motivo os cartazes que dão caça a um foragido são encabeçados por um título, em letras contundentes, em que se anuncia aos possíveis salteadores de foragidos que o fugitivo é procurado “morto ou vivo”. 

Morto, primeiro. E vivo, depois. Como se houvesse uma precedência lógica e a cadavérica forma fosse preferível à captura de um fugitivo vivo. Como se, através do cartaz, a pena fosse automaticamente aplicada – uma pena de morte sem contemplações. A vida de um foragido não vale por si mesma. O foragido vale tanto morto como vivo. Ou seja, antes morto do que vivo. Até porque, vivo, seriam ativados os mecanismos da justiça e toda a entourage ligada ao sistema teria de trabalhar, sendo dispensada só em caso de a captura do fugitivo coincidir com a sua morte.

O “morto ou vivo” ensina que há vidas que valem menos. Mas não é preciso evocar os cartazes que dão caça a foragidos para perpetuar a impressão de que há vidas menos valiosas. É só sermos espetadores do mundo que é uma deslição de si mesmo. 

Mesmo os piores criminosos, contra quem há provas de crime e se espera apenas condenação (ou aqueles que, tendo sido condenados, tiveram a destreza de congeminar a fuga), merecem que a vida seja preservada. Não se conte com aqueles lugares que ainda mantêm a atávica pena de morte. Nos outros lugares a morte não é estipêndio do Estado e dos seus agentes (ou de quem, a seu soldo, meta as mãos a uma encomenda). 

Dos cartazes devia constar “procura-se, vivo” – ou, na pior das hipóteses (porque o foragido pode dar luta ao sentir-se acossado), “vivo ou morto”, por esta ordem. Para aqueles que ensaiam a justiça como um ato vingativo, a sublime vingança sobre o criminoso é a que o obriga a dilacerar-se em privação de liberdade por muitos e maus anos. A morte é um favor que se faz ao foragido. Não se adivinha que estes julgadores pelas próprias mãos sejam amigos dos criminosos que fugiram da justiça.

Os que reivindicam a feição vingativa da justiça não percebem a contradição em que caem ao aceitarem qualquer meio (vivo ou morto) para se atingir o fim (a captura e sucessivo aprisionamento do fugitivo). É o défice de quem pensa muito atrás no tempo. 

15.6.21

Se o vento estiver de feição (short stories #328)

The Durutti Column, “English Landscape Tradition”, in https://www.youtube.com/watch?v=sIftmphqcSY

          A terra do gelo não trocava os beijos por nada. Não se falasse de degelo. O vento não se coibia: a toda a hora ciciava contra os monopólios opulentos em que as regalias se eternizavam. Não era disso que se falava. Parecia que ninguém se importava com o abismo entre os abastados e os demais, contrariando Marx. Todos esperavam pelo vento. Por mais que uns abencerragens insistissem que a luta de classes é o motor da História, os demais importavam-se com a morte. Com a ideia da morte. Como se pode ter a ideia fixa da luta de classes se todos morrem, sem olhar às diferenças de património? A todos, sem distinção, as maleitas mais hostis abatem-se implacavelmente. Podiam todos esperar pelo vento para saberem que novas vinham ungidas pelos deuses que guardavam as profecias. Estes nunca confessavam as profecias (nem sob tortura). O vento limitava-se a destapar o véu e a deixar a incógnita menos órfã. O segredo estava na hermenêutica do vento. Dependia dos narizes. Pobres dos que sofriam de anosmia. Eram deixados para trás na altura dos pressentimentos. Uma indústria de escansões do vento começou a prosperar. Era notório que as pessoas queriam ter uma ideia sobre o porvir. Desenvolveu-se uma concorrência feérica, com os predestinados dois passos à frente dos demais como distintos zeladores do vento que antecipava o provisório. As pessoas eram vítimas de dois logros: queriam saber das costuras do futuro e acreditavam no primeiro aldrabão (nunca tido como tal, contudo) que fosse exegeta do vento. Não sabiam que saltar por cima do tempo para agarrar o futuro a destempo era uma heresia. Sedados pelo apetite do futuro, tinham exaurido a reserva de lucidez para identificar os burlões do tempo a destempo. Ninguém queria saber do tempo presente e do vento a preceito. Eram vítimas colaterais de si mesmos.

14.6.21

Ácido acetilsalicílico

Trentmøller, “Shaded Moon”, in https://www.youtube.com/watch?v=VQBpvCM6hUQ

Não vão à montanha erma os espíritos decapitados de vontade. Se fossem candeias, em vez de sombras, a ditar o compêndio do comportamento, seriam triviais as desconfianças sobre o devir do mundo. Mas eles precisam da andança, como se fosse a sua interior peregrinação.

Os arranjos com os anjos avulsos não determinam ponta de serenidade. Os escombros não vacilam. Eles tomam conta da paisagem, numa espécie de despaisagem que desprotege os espíritos a soldo. As convulsões são a combustão do sangue, e não é pelos melhores motivos. As palavras de consolo não chegam a ser um bálsamo. O palco é frágil. O corpo que se abeira do miradouro não sabe que o lugar é sobranceiro a um abismo. Ninguém o precatou das vertigens.

E, todavia, é preciso atravessar uma demorada e aparentemente quebradiça ponte sobre o desfiladeiro. A ponte e o desfiladeiro não vinham assinalados no mapa. Dizem que é preferível ficarem no anonimato: se tivessem direito a ser cartografados, haveria muita gente a desistir da empreitada. Às vezes, as pessoas têm de ser confrontadas com os medos. Sem pré-aviso. Têm de arranjar as forças (ou apenas o critério) para se emanciparem dos fantasmas que as perseguem no limiar da vontade.

Os operadores das almas (que de si mesmos se têm como gurus espirituais – sem que lhes tenha sido comissionada a comenda) sugerem a terapêutica como prevenção dos medos que possam limitar a vontade. Não há outro remédio que não seja atravessar a ponte. Não o fazer é uma escolha entre dois males. E é difícil antecipar qual dos dois é o pior. Adverte-se para a improcedência da hipótese que faz avançar os peregrinos contra a surpresa do desconhecido mediante a sua prévia medicação. O pânico será uma hostilidade a destempo. É preferível que as pessoas sejam duramente atingidas por uma intempérie e tenham de desfazer as suas reservas mentais, o desembaraço como critério. Convidá-las a serem o pressentimento do medo devolve a contrapartida do medo antes do tempo. 

O tratamento de choque é o método aconselhável. A medicação fica para o que vier depois. 

11.6.21

Fuligem (short stories #327)

Goldfrapp, “Black Cherry” (live at iTunes Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=uuvgX1bA9Ok

          Uma filigrana desce sobre o sol-posto e povoa a névoa tardia. Os olhos cansados demoram-se na fuligem que toma conta do horizonte. O entardecer funde-se com a infância da noite. O corpo acusa o espaço indeterminado que cavalga no crepúsculo. Um copo de vinho testemunha o torpor. As pessoas passam na rua. Vão devagar, como se estranhamente quisessem demorar o dia de que estão cansadas. A noite não se entedia, dizem. Prepara-se para acolher as pessoas que têm na noite um balão de oxigénio que adia o estertor do dia. Pois a noite abraça dois dias: o dia que finda e o dia que nasce com o beneplácito da noite. Enquanto falam, traduzem a limpidez dos rostos que renascem nas esplanadas, nas mesas dos restaurantes, no cais sobranceiro ao rio, à espera de uma maré-alta. A fuligem é a moldura da noite, no desembaraço das silhuetas que corrompem as sombras. Não é preciso ter medo da noite. Os fingimentos disfarçam-se na lucidez que não desarma. Não entonteçam os atores que se investem na fuligem da noite. Antes que seja lei o derradeiro cansaço, a noite mergulha na madrugada. A fuligem desce como se precisasse de recolher o orvalho que nasce do chão. É essa névoa discreta que anestesia os corpos. Estão preparados para o dia posterior, cumprido o ritual do sono. As horas não amadurecem. Antecipam o passado que será lembrado ao acaso. Sê-lo-á com a caução da fuligem disfarçada, o povoar do frescor matinal que desautoriza a noite e os corpos que pedem sono. No estuário onde se compõem as palavras furtivas, o dicionário das almas cede ao deslumbramento. O enlaçar da noite à manhã é um sortilégio. É a ponte levadiça que permanece imóvel para que a véspera se abrace ao dia sucessivo. O maior sortilégio é as pessoas não darem conta deste sortilégio.

10.6.21

Remix (short stories #326)


 The Durutti Column, “Bordeaux Sequence”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ni5iUbV565Q

          Atira-se um formulário de reinvenção pela goela abaixo. Como se fosse preciso arranjar o detrimento do passado. A visível insalubridade não sai do alpendre onde estagia a alma. É preciso atuar. Sem um plano. Atuar com a confiança da espontaneidade; apenas conta a vontade momentânea. Não se fazem juras às fatias ulteriores. Nem às que atestem a validade do ato volitivo, nem para a combustão do arrependimento quando o saldo não é a preceito. É como ir ao passado sem o renunciar, dando-lhe uma nova moldura. A metáfora da cirurgia plástica às costuras da vida. Como se tudo o que contasse fosse tirar a esquadria do tempo de um palco onde ele volta a ser um zero à espera de aproveitamento – pois o zero é a casa da partida onde tudo passa a ser possível, outra vez. Ser um remix do que já se foi dita um ser diferente na projeção do vindouro. E, todavia, não se deixa de ser a casa de partiu de onde se saiu. Ensaia-se apenas uma transfiguração imposta pelo desprezo do tempo visível. Ensaia-se o eclipse de si. Não passa de uma farsa. Ninguém agarra com um simples gesto das mãos o vento remoçado que saiu de um sono incógnito. Uma máscara disfarça o rosto inalienável. Com um meticuloso manual de utilizadores, na farsa que nos torna anónimos, à mercê de uma alcateia faminta. A sede de um remix esconde a despertença de si mesmo. Como se fosse possível enfiar os pés numas botas que pertencem a outro número e continuar a andar. A digestão desagua na alucinação de si mesmo: quando se olhar no espelho, o remix não reconhecerá o rosto devolvido. Perde-se tudo. O eu que o foi no passado. E eu que deixa de o ser pela transfiguração que o abastarda.

9.6.21

Maré que dispensa esporas

Cassete Pirata, “A Próxima Viagem”, in https://www.youtube.com/watch?v=nDp_fFtbLzc

O tridente de Neptuno está escondido no mar fundo. Nem com a escotilha desembainhada se consegue alcançar o tridente de Neptuno. Mas nem todo o sal do mar chegava para espreitar através das paredes intransigentes da alma. Mas não queremos saber de Neptuno se temos Janus aninhado nas palmas das mãos. 

Somos viandantes perenes. Mesmo quando não saímos de casa. Não precisamos da paisagem que se oferece como inauguração. Aprendemos a cinzelar as paisagens com a doçura de uns dedos que se entrelaçam e deixamos aos mares as suas marés triunfais. O salitre vago emprenha-se na pele duradoura. Dizemos: é o mar, a sua janela que irradia o farto espólio de que somos mecenas.

Dão-nos um mapa. E nós, em vez de escolhermos o lugar próximo a merecer visitação, desenhamos o coldre onde deixamos as mãos vagas para guarnecer as paisagens. Vamos ao fundo das ruas e de mãos nuas enchemos a alma com os odores e as formas e os idiomas e as cores que nos são propinadas. Não precisamos de figuras tutelares; nestes preparos, não há ninguém mais ministeriável do que nós. Administramos os mistérios com a diligência pedagógica. Somos, por dentro do sortilégio que em nós habita, a viagem incessante.

      Guardamos os postais ilustrados. Para cada postal reservamos um poema módico, onde são vertidas estrofes chãs. Quando o tempo se condensa num verbete, voltamos aos postais ilustrados. Voltamos, com saudade já da viagem que está em demanda no tempo vindouro. Não refazemos as estrofes; preparamos os dedos para as estrofes que vierem a preceito da viagem depois. Sem sair do sítio, emprestamos os corpos e os sentidos ao mundo que se nos serve em amplexo. Prometemos ser zeladores do mundo que não pede meças à generosidade quando se lembra de nós.

   Cortejamos as paisagens diletantes que se enamoram do nosso olhar. Não juramos empreendimentos megalómanos. Apostamos: a devolver ao mar uma tabela de marés. Uma tabela que seja o tributo a todas as paisagens que cuidaram de nós e daquelas que se prestam a sê-lo.

8.6.21

Eu sei que tu sabes que eu não sei (Ou: sobre as obras de arte que só existem na cabeça do autor)

 

In Público, 07.06.21

Acreditem em mim: na minha cabeça fermenta uma obra-prima que deixará a “Ilíada” de Homero, ou “Crime e Castigo” de Dostoiévski, ou “À Espera de Godot” de Beckett a léguas de distância, reinventando os cânones da literatura (ou, pelo menos, parte deles). Acreditem. Já tenho o enredo, os capítulos estruturados, muitas frases na moldura da memória, para não se perderem com o emaciar do tempo. Vamos a leilão: quem oferece o mais elevado lance pelos direitos de publicação deste livro com quatrocentas e vinte e cinco páginas cheias de vazio?

Não acreditem, que é mentira. O que não é mentira é uma obra de arte que apenas existe na cabeça do autor e que foi vendida por uma soma astronómica. O autor jura que a obra tem existência dentro dos seus quadros mentais, mas não se transubstancia em matéria visível. É apenas um quadrado afixado ao chão com fita adesiva, para delimitar o espaço que corresponde à obra que só existe por dentro da imaginação de Salvatore Garau. 

Não gostaria que a minha – como dizê-lo, sem ferir suscetibilidades? – perplexidade fosse tida à conta de um conservadorismo sem remédio. Não queria que me deitassem ao lago onde os atávicos são devorados por jacarés progressistas. Não é essa a conta em que me tenho. Em minha defesa (caso seja necessário fazê-lo), invoco a abertura de espírito para as diferentes artes e para modos pouco convencionais de as manifestar. Sou um assíduo consumidor de cultura. E se ela for o produto de um desassombro, de um salto criativo que faz avançar a espécie, melhor ainda.

Estou ao corrente da importância do elemento conceptual para a delimitação de uma obra de arte – e para o seu reconhecimento enquanto tal. Porventura, o desassombro do artista, ao comunicar que nasceu uma obra de arte dentro da sua cabeça e que só por dentro da sua cabeça é que pode ser visitada, é o elemento conceptual que serve de caução para ser reconhecida como obra de arte. Quem se lembraria de proclamar que dentro de um quadrado preenchido pelo vazio está a obra de arte que só o seu autor consegue ver? Eis a originalidade, o travejamento da obra de arte. Enquanto a ciência não avançar ao ponto de nos permitir participar nas sensações que percorrem o interior dos outros, ficamos à mercê destes caprichos.

(Só a ideia deste avanço da tecnologia, o que ele poderia permitir, é dantesco.)

O que nos atira para outro aspeto que passa a ser o fiel da balança: a confiança no artista que proclama qualquer coisa a propósito da sua obra de arte. Ou da arte enquanto manifestação fiduciária, exigindo este elemento do destinatário para subir ao olimpo da arte. Quem se lembrar da manifestação mais original de arte está quase a ganhar o troféu. Se conseguir convencer a audiência do argumento mais improvável, o triunfo fica assegurado.

(De repente, recordo-me de duas manifestações deveras originais que deram brado – e muito dinheiro – aos seus autores: um imenso cubo de esperma congelado; e um artista que destruía a sua obra, deixando que os vestígios fossem a nova obra de arte nascida da destruição.)

Eu gostava de estar presente na sala do mecenas que, orgulhosamente, gastou quinze mil euros para adquirir esta “escultura imaterial”. Gostava de o ver a mostrar aos amigos, tão decerto embevecidos quanto ele, a ousadia da obra exposta. Ou então, de imaginar estes eruditos, e a sua proclividade para caprichos que a abastança propicia, a imaginarem o que é imaginado pela cabeça do autor. Tanta erudição junta não se prova; também é uma questão fiduciária. 

(Já agora, anuncio que o espaço em branco sobre o qual este texto repousa é a minha conceção de uma obra imaterial. As silhuetas e as formas e as cores e o modo como o espaço é preenchido são um exclusivo da minha lavra. Está aberto o leilão para a aquisição desta obra de arte.)









7.6.21

Pedra e cal

Iceage, “High & Hurt”, in https://www.youtube.com/watch?v=DQgQrcJDsbc

O edificado dá provas de ser sólido. Sem saber quem foi o arquiteto e os homens que levantaram o edificado, uma inspeção ao exterior deixa uma impressão da robustez. À prova de sismos e de outros cataclismos que a natureza, nos seus caprichos, espalha avulsamente para colocar os Homens à prova.

Os cálculos foram devidamente feitos. Por gente cadastrada para não se enganar nas contas. Os materiais, escolhidos a preceito pelos maiores conhecedores. Mesmo que um terramoto sacuda os alicerces, não é de esperar que eles caiam. E pese embora este não seja um lugar dado aos terramotos, os peritos não arriscam: é melhor prevenir a ocorrência e investir na resistência dos materiais, escolhendo só os de melhor cepa.

Podem vir a passar décadas a eito, talvez até séculos, sem que o lugar seja sobressaltado por um sismo que pode arrancar casas pela raiz. Podem as pessoas julgar que o investimento foi extravagante, dada a ausência de histórico de sismos e de outras ocorrências que teatralizam a vingança da natureza iracunda no Homem. Poderão protestar contra a usura de recursos, quando não havia justificação para tão excessiva prudência. Só se for por inábil desconhecimento da História. A estatística confia na imagem herdada dos tempos pretéritos. Mas a estatística está desligada do tempo futuro, esse de que ninguém sabe (nem sequer os que invocam a seu favor oráculos sem chão). A incerteza não é domesticável através das tendências do passado. Pois o futuro pode não ser apenas uma repetição do passado.

Os acasos não se aprovam se não houver quem os adicione no espartano diálogo das equações em que se entretece a prospetiva. É o “fator de risco”. A rebelde incógnita que nunca se faz anunciar. A incerteza que, nos seus termos catastróficos, será a pontuação errante de arrependimentos que se materializam depois da incerteza se traduzir numa catástrofe.

Tudo só será de pedra e cal se o pior dos cenários, por mais improvável que seja, for acautelado. Para não correr o risco de não ter sido precatado o risco que é inato à existência. E, depois, um caudaloso mar de lágrimas de crocodilo que se derrama na enchente de estéreis arrependimentos.

4.6.21

Ponto e vírgula (short stories #325)

Jeff Buckley, “Lover, You Should’ve Come Over” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vLHcHWDvgfQ

          O assunto não está terminado. Vamos só fazer um desvio, tomar aquela estrada lateral e prometemos que depois regressamos à encruzilhada. Não é um ponto final. Enxerta-se outro capítulo na conversa e assim temos matéria-prima para enriquecer o assunto principal. Ou podemos apenas estar equivocados. Podemos fazer um desvio que é isso mesmo, um desvio que arruma o essencial e escolhe o acessório. Podemos ser apenas fautores de um novo ponto de Arquimedes e, mesmo sem ser intencional, invertemos os nomes das formas: o principal é desvalorizado ao patamar de acessório e um acessório qualquer transforma-se em prioridade. Por isso, metemos um ponto e vírgula na frase. Adiamos o seu estertor. O que interessa se a frase tem um epitáfio? Não acontece com todas as frases, o seu epitáfio silencioso que passa ileso no reconhecimento das pessoas? Somos contra estertores. Prolongamos a vida útil da frase. Depois do ponto e vírgula, usamos dois pontos e depois um travessão se quisermos ser fiéis depositários da frase que se demora. Provavelmente não sabemos que estamos a arrastar a frase, deixando-lhe uma herança de hermetismo que não capitaliza a favor da sua clareza. Porque somos – quem sabe? – contra a morte das coisas e não queremos ser os algozes que as condenam à sua finitude. Que a empreitada seja deixada a outros e nós, ingenuamente, recolhidos ao fingimento da perenidade. Podem-se suceder pontos e vírgulas, numa eternização loquaz da frase. Não metemos as mãos no abismo sucessivo. Transigimos na farsa que se levanta do nevoeiro em que a frase se enreda. Oxalá não houvesse tabus. Oxalá não fossem os medos os tiranetes que nos obrigam à dissimulação. Seríamos capazes de olhar de frente para a frase, dissolvendo os seus caprichos (e os nossos, por igual medida). Desistiríamos, a tempo, do ponto e vírgula.

3.6.21

Deus dos canhotos

God Is an Astronaut, “Forever Lost” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=27NKNgV9_k8

Os canhotos, estruturalmente discriminados, juntaram-se em sindicato. Queriam que ser canhoto não fosse fonte de uma discriminação social. Não queriam ser obrigados a tomar o lugar em carteiras de escola que foram feitas para quem escreve com a mão direita. Este foi o exemplo escolhido para a campanha que inaugurou o sindicato dos canhotos. 

Os canhotos acusavam deus de se ter esquecido deles. Primeiro, porque lhes deu uma genética que se arruma contra a maré dominante, deixando-os escravizados a uma despertença. Segundo, não contente (ou, talvez, apenas distraído – hipótese em que seria de recusar o mito da omnipotência de deus) –, deus não foi tecedor das recomendáveis compensações aos canhotos. Deus terá deixado os canhotos ao deus-dará. Não foi ele que inventou a discriminação positiva.

Os canhotos não perceberam o oximoro contido no seu raciocínio. Se deus tivesse existência comprovada, nem eles seriam canhotos (não os haveria, o mundo ungido por uma portentosa perfeição, à imagem de deus) nem, na hipótese de terem sobrado para o logradouro dos discriminados (por serem canhotos, aproveitando-se da distração divina), seriam vítimas da organização do mundo que não os tem em conta. Ainda assim, convocavam a figura tutelar de deus. Porventura na esperança, não vã, de que deus os viesse acautelar a desoras.

Parecia uma demanda condenada ao logro. O sindicato dos canhotos não fazia chegar a voz aos ouvidos dos cidadãos comuns e dos poderosos. Continuavam a ser o que sempre foram: pessoas cobertas pela infâmia do oblívio, com o conspirativo beneplácito de um deus por acordar. Imersos nesta deslembrança geral, os canhotos urdiram um protesto sublime: acusariam deus de não ser perfeito, erodindo a mitologia que anda de braço dado com deus. Só um deus imperfeito podia caucionar os canhotos como vítimas do esquecimento da sociedade – do esquecimento do próprio deus, assim e confirmando que, para além de não ser omnipotente, também não é omnipresente. As imperfeições dos canhotos seriam as arestas das imperfeições do próprio deus.

Do outro lado da barricada, os devotos de deus apostrofaram os canhotos. Confirmava-se que os canhotos eram uma discreta aberração da espécie. E se canhotos havia, não era por distração de deus, que deus não se distrai – nem a própria noção de deus é compatível com a ideia de imperfeição. Os canhotos foram desafiados a deixarem de ser piegas e de endossarem para deus o fardo da sua inadaptação. Assim como assim, eles conduzem pelo lado direito da estrada e nunca se queixaram do síndrome britânico que se manifesta na sensação desconfortável de quem viaja no lado errado da estrada.

2.6.21

6am (short stories #324)

Cocteau Twins, “Carolyn’s Fingers” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=coT7o4IN-CE

          Um carro dos serviços camarários lava a rua. Aproveita o silêncio para tirar das ruas os despojos de uma noite tardia. As pessoas mal sabem que há quem madrugue para que as ruas finjam que estão alindadas para a sua visita. Nem dão conta que as ruas foram lavadas, a não ser que sejam madrugadoras e notem o chão molhado sem que houvesse previsão de chuva. Dariam conta que as ruas eram montras de lixo? Provavelmente, sim. Se há diferença que sinaliza um par de degraus subidos na escala da civilização é que as pessoas se apoquentam com o cisqueiro que contamina o olhar e invade o faro. Eis um raciocínio circular: as pessoas importam-se com os resíduos que afeiam as ruas e os serviços camarários começaram a ser zelosos na limpeza das ruas. Dizem que é para isto que serve a democracia, os representantes a cuidarem dos cuidados dos representados. Ou pode ser o contrário: os serviços camarários três passos à frente dos cidadãos, educando-os na cidadania ambiental. Não haverá concordância quanto ao ponto de ignição. Só se sabe que às seis horas da manhã, está o sol quase a dar de si ao céu que o convocou, os camiões rociam as ruas com uma água condimentada com detergente e lixeiros avulsos percorrem-nas metodicamente à procura dos vestígios que os últimos hunos deixaram à sua passagem. Quase ninguém conhece esta safra. As pessoas ainda dormem, ou estão para sair de casa. Não reconhecem este trabalho invisível que é um bem intangível para que não sintam que vivem num chiqueiro. Em tempos, um cidadão regressado de um país do terceiro mundo (segundo as suas palavras) confessou que só agora, que tinha regressado, é que dava valor à salubridade urbana. Disse-o, enquanto mostrava fotografias das lixeiras a céu aberto que eram as ruas.

1.6.21

Bailado, ou balística?

This Will Destroy You, “The Mighty Rio Grande”, in https://www.youtube.com/watch?v=fbszJJr9I9U

Não pedissem ao homem dos pés grandes que participasse numa dança. Não era o seu propósito. Tomando o pulso às limitações, ele sabia que não era boa a figura que ficava para memória futura. Não o acusassem de incúria: o homem dos pés grandes prestou-se ao papel de desastrado dançarino, mas avisou, em devido tempo, que a estética podia ficar ressentida. 

A culpa do homem dos pés grandes era indireta. Quem o mandava apalavrar-se a solenes cerimónias onde o bailado faz cumprir um ritual? Ele sabia que a sua missão secreta era parecida com a de um diplomata, e os diplomatas (entre outros misteres) devem comparecer a estas soirées animadas. E, comparecendo, o homem dos pés grandes não podia escapar a cada milímetro do ritual. Umas senhoras conspícuas estavam à espera de um par para ensaiarem o donaireartístico do bailado. Elas ajudavam a disfarçar o hediondo da diplomacia, não deixando que a diplomacia fosse o alforge da hipocrisia.

O homem dos pés grandes não tinha culpa do seu corpo. Não podiam pedir ao homem dos pés grandes para ser bailarino – e não lhe pedissem para ser um arremedo de diplomata. Ninguém consegue disfarçar as impossibilidades atrás de uma pose que se nobilita a cada palavra escolhida com precisão milimétrica, a cada gesto que exsuda charme. Ninguém consegue ser parte do ritual se não se desembaraçar a preceito das exigências do bailado em que terminavam as soirées

Se houvesse um caderno onde fosse anotada a destreza para o bailado, o homem dos pés grandes reprovava. Não tinha remédio. A cada soirée, a cada dança empreendida, o homem dos pés grandes acertava com os seus grandes pés nos pés pequenos das senhoras. Elas não escondiam o esgar de desprazer e, sem demora, punham termo ao bailado. Queixavam-se dos pés grandes do homem, de como ele não nascera para levitar o seu corpo pesado e desengonçado no tabuleiro da dança. Os seus pés grandes eram o obus que desmentia a diplomacia.

O homem dos pés grandes não ficava triste. Muito embora a sua má fama começasse a ser popularizada, saía da função convicto que fizera diplomacia. Era esse o propósito do estipêndio que lhe pagavam. Só as senhoras que foram suas vítimas é que murmuravam sobre os pés grandes do homem como o selo da sua balística. Mas não fazia mossa no homem dos pés grandes. A converseta não passava do setor feminino.